Aurélio Pereira: “Se os nossos concorrentes nos seguiram, é porque estávamos certos”

No dia em que a Academia Sporting festeja o seu 15.º aniversário, o responsável pelo recrutamento dos “leões” explica o que mudou com o surgimento da infra-estrutura em Alcochete.

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DRO DANIEL ROCHA - PÚBLICO

Ostenta, com propriedade, o título de “senhor formação” do futebol português e anda há três décadas a descobrir talentos em nome do Sporting. No dia em que a Academia Sporting festeja o seu 15.º aniversário, Aurélio Pereira, o homem por detrás do sucesso da formação “leonina”, fala sobre a importância da infra-estrutura de Alcochete para o Departamento de Recrutamento e Formação que lidera, confessa que continua a não conseguir resistir em procurar talentos na rua, mas admite que não encontra explicações para a ausência de títulos nos futebol sénior.

Como surgiu o projecto da Academia Sporting?
Nos anos 90, o Sporting tinha um problema sério de falta de infra-estruturas para treinar e num jantar de consagração após a conquista de um título de juniores, o que já não acontecia há muito tempo, eu disse aos presentes, onde estavam José Roquete e Dias da Cunha, que o Sporting tinha uma grande equipa, mas treinava nos campos pelados do Sporting da Torre e do Águias da Musgueira. As pessoas ficaram incrédulas. Seria inevitável que algo se fizesse. Surgiu então a ideia de escolher um local para fazer uma academia. Primeiro pensou-se em Loures, depois Torres Vedras e, finalmente, decidiu-se que seria em Alcochete.

Quinze anos depois, a Academia é hoje o que idealizava há 15 anos?
Quando foi inaugurada, dei por mim num canto, com alguma emoção, a olhar para toda aquela gente. Mas o futebol juvenil trabalhava em horário pós-laboral e não podíamos continuar a fazer isto de uma forma amadora. Com um equipamento destes, tínhamos que partir para uma estrutura profissionalizada. Ninguém tinha ideia de como era uma academia. Colocavam-se várias questões. Mas eu sabia que com aquelas condições, não se podia manter o amadorismo, e que nada podia continuar a ser igual.

A principal mudança na formação do Sporting passou pela profissionalização da estrutura?
Quando há talento em jogadores como o Cristiano [Ronaldo] ou o Figo, resiste-se a todas condições e tempestades. Mas depois, há os outros que é preciso desenvolver com mais trabalho. Foi para esses que se sentiu a maior mudança. Nós, sem a Academia, formamos o Figo e o Ronaldo. Mas esses são espécies raras, como o Eusébio. São extra-terrestres. Talentos naturais. Os outros precisam de desenvolver um conjunto de técnicas de base e dão mais trabalho.

O que falta ainda fazer?
Respondo da mesma forma que respondo quando me perguntam o que o Cristiano precisa de fazer: manter. E manter dá muito trabalho. Foram feitas grandes melhoramentos na Academia com o presidente Bruno Carvalho, que é um entusiasta da formação. Era necessário arranjar mais espaço para treinar, mais ginásios e outras infra-estruturas. De tempos a tempos, tem que se avançar. Isto não pára.

Com o surgimento da Academia, o processo de recrutamento e prospecção sofreu alterações?
Em 1987 nasceu comigo o Departamento de Recrutamento e, em 2002, a Academia. O recrutamento fazia-se com milhares de captações, num processo arcaico, onde tínhamos que ver centenas ou milhares de jogadores em pouco tempo. Era mau para quem observava e era mau para quem tinha dez minutos para mostrar as suas habilidades. Perante este facto, o Departamento de Recrutamento e a Academia foram fundamentais. Ao fim de trinta anos, qual foi o sumo do trabalho? Se olharmos para a selecção nacional, estão lá 10 ou 11 jogadores detectados e criados no Sporting, entre os 11 e 15 anos. Ao sermos o primeiro clube a criar uma academia com dinheiros próprios, subimos ao patamar primeiro do futebol jovem em Portugal.

Quais são os critérios de admissão de atletas para a Academia?
Temos uma estrutura de recrutamento que durante todo o ano referencia em todos os escalões jogadores de todos os clubes de Portugal. A selecção é feita e depois temos um espaço no Estádio Universitário onde estão os jogadores dos 6 aos 12 anos, que recebem os primeiros ensinamentos e começam a beber a nossa filosofia. É um espaço muito importante e temos um objectivo definido: 75% dos jogadores que estão na Academia têm que vir do Estádio Universitário.

Essa separação entre o Estádio Universitário e a Academia acontece por necessidades estruturais ou faz parte da estratégia de formação?
Cerca de 90% dos jogadores que estão no Estádio Universitário são de Lisboa. Não fazia sentido colocá-los do outro lado. No Universitário é onde bebem o leite materno. Onde se identificam com a nossa filosofia e princípios. Quando passam para Alcochete, já chegam com conhecimento de muita coisa.

Continua a procurar miúdos na rua?
Isso está-me no sangue. Não consigo resistir. Estou activo e gosto de acompanhar as equipas mais jovens, como os sub-14 ou sub-16, para depois ficar com as minhas expectativas sobre o valor dos jogadores.

Esta época o Sporting voltou a ser campeão de sub-17 e sub-19, e desde que há 30 anos criou o Departamento de Recrutamento, o Sporting formou jogadores como o Futre, o Figo, o Quaresma ou o Ronaldo. No entanto, nestas três décadas, o Sporting foi apenas duas vezes campeão em seniores. Como se explica isto?
Eu gostava de encontrar uma explicação [risos]. Não foi por o Sporting não ter grandes equipas. Mas isso é outro campeonato. São coisas mais profundas. Cada clube tem os seus princípios. Há culturas em que se tem que ganhar a qualquer preço. O Sporting não tem essa cultura. Defende a transparência e princípios que às vezes não se coadunam com o futebol-negócio. Onde há dinheiro, normalmente há homens mal-intencionados.

Nos últimos anos, o Benfica e o FC Porto aumentaram a aposta na formação. É um sinal que o caminho que sempre defendeu é o correcto?
O Sporting, desde sempre, olhou para a formação de uma forma diferente. A concorrência é fundamental e respeito-a, e não olho para ela como um inimigo. Se os nossos concorrentes nos seguiram em quase toda a linha, copiando os nossos processos, é porque estávamos certos.

Essa aposta na formação não é, também, uma inevitabilidade devido às dificuldades financeiras que os clubes portugueses atravessam?
Não é verdade. Os treinadores que passaram pelo Sporting, apostaram nos jogadores do clube porque tinham qualidade. Recordo-me que quando o Jesualdo Ferreira, que é na minha opinião uma das pessoas que mais sabe de futebol, passou pelo Sporting, havia uma equipa de grande qualidade. E ele, ao fim de duas semanas, disse-me que estava ali uma mina de ouro, e foi jogar ao Estádio da Luz com dois juniores: o Eric Dier e o Bruma. Apostou neles porque sentiu que eram os mais capazes.

Essa aposta mantém-se? Há cerca de um mês Jorge Jesus disse que só a Academia não chega para ganhar títulos…
Eu percebo o que ele quis dizer. Quando os jogadores passam dos juniores para a equipa B, têm que encontrar no futebol profissional outros que os façam crescer em todos os aspectos. Nem o Barcelona pode ter 11 jogadores da formação. Isso é impossível. O que é preciso é trazer jogadores de grande nível para que os nossos possam crescer.

A formação académica é também uma prioridade? Acha possível num futuro próximo ter licenciados na equipa sénior, como é o caso agora do Francisco Geraldes?
Os clubes que apostam na formação também têm que ter nisso uma prioridade. Se vamos desafiar um miúdo de 14 anos, de Paços de Ferreira ou de Braga, temos que ter uma estrutura que acompanhe as preocupações dos pais para que a parte escolar não falhe. Seria desastroso que um jogador que não conseguiu projectar as suas aptidões para se manter, no regresso a casa vá descalço em questões futebolistas e académicas. Quando um menino não se porta bem, sabe no que no domingo seguinte o seu lugar no banco está garantido. Estamos em contacto permanente com a escola e para nós esse é um tema essencial.

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