Roma e Pavia… (A propósito do Rio2016)

Estou certo de que por cá temos vários “opinadores” que devem ser mesmo dos melhores que o mundo tem. Pelo menos ganhamos essa medalha… de cortiça!

O deleite maior para muitos de nós é, tantas vezes, a possibilidade de apreciar algumas das “maravilhas do mundo”, sejam as sobrantes do mundo antigo, sejam as do moderno, sejam as que, se ainda não necessariamente reconhecidas como tal, encerram o potencial necessário para nos pasmarem. Para mim o desporto é uma dessas maravilhas, mas encerra uma particularidade: a perenidade no tempo e a transversalidade nas culturas, nas sociedades… nos homens.

Que maravilha maior poderemos nós encontrar do que a permanente busca da transcendência humana? Ser mais forte, chegar mais longe e mais rapidamente do que antes? Conseguir o que homem algum alguma vez conseguiu: o recorde… Uma espécie de miragem irrealizável que, por isso, vamos reduzindo à nossa escala: se não o mundial, que seja o europeu, o ibérico, o nacional, … o pessoal. Mesmo que não seja recorde, que seja o melhor da época, ou… do dia: de hoje mesmo, porque ontem e amanhã são outros dias, outros constrangimentos, outras paixões, outras circunstâncias e outros merecimentos.

Sim! Atrevo-me a exaltar o desporto como uma das maravilhas de sempre; imaterial, mas às vezes bem tangível, sobretudo no que de esforço e dedicação comporta para que seja possível fazer-se o que nunca antes houvera sido possível. Trivial? Talvez só para quem o pense levianamente, como que jogando com um baralho de cartas sem ases e manilhas. De facto, se pensarmos como deve ser, não há nada de mais complexo que se possa vislumbrar nos horizontes da nossa cultura ocidental, judaico-cristã, neoliberal e fortemente determinada pela informação e pela tecnologia.

Veja-se que no desporto falamos da transcendência do homem saudável (mesmo se portador de alguma “incapacidade”, que desde que não ofenda “o completo bem-estar físico, mental e social(…)” não pode ser tida como necessariamente uma objeção à condição de “saudável” no quadro da definição de saúde dada pela OMS), a maioria das vezes em articulação coletiva complexa, qual reminiscência das estratégias tribais de caça e de guerra, explorando os seus limites fisiológicos, psicológicos e biomecânicos, em contextos socioeconómicos e políticos complexos, recorrendo a tecnologias de ponta, muitas vezes nunca antes testadas (o valor do segredo…), bem como a enquadramentos técnicos (específicos da modalidade – o treinador, o “mister” – e mais ou menos transversais - clínicos, psicológicos, fisiológicos, nutricionais, biomecânicos, …) em permanente evolução e dificilmente qualificáveis rigorosa e consistentemente. Vendo bem, lidar com o homem debilitado pela doença, entre profissionais bem caracterizados, com tecnologias e soluções aprovadas institucionalmente e com o suporte e a tranquilidade decorrente do estatuto de “salvador de vidas”, parece quase uma coisa simples…

Afinal, o que é preciso para “construir” um campeão? Um campeão dos campeões: um campeão olímpico (ou paralímpico)?

  1. É preciso ter escolhido criteriosamente os pais, que lhe possam proporcionar o genótipo adequado;
  2. É necessário que as pressões sociais específicas conduzam a criança para a modalidade desportiva para que dispõe do genótipo adequado;
  3. Impõe-se que alguém reconheça esse casamento harmonioso entre a modalidade “querida” e a predisposição genética para a excelência na sua prática;
  4. Depois, é determinante que o próprio, e a família, percebam a propriedade daquele reconhecimento e acreditem, ou apostem, nas consequências que daí possam decorrer;
  5. Esta aposta significa dez anos de trabalho, a mil horas de trabalho por ano (muitas vezes mais de três em quase todos os dias de cada ano… em média – respeitando o princípio da progressão da carga);
  6. Mas 10.000 horas de trabalho corretamente orientadas por profissionais competentes – treinadores, médicos, fisioterapeutas, psicólogos, fisiologistas, biomecânicos, etc. (estamos a falar de chegar a ser o melhor do mundo e, por isso, requer-se parceiros de igualha em alternativa a milagres de feiticeira, ou de circunstância… De facto, talvez ainda seja possível ser campeão apesar do enquadramento técnico, ou outro - felizmente! Exatamente porque nos falta ainda muito para chegar ao limite da performance humana – graças a Deus!);
  7. Entretanto, nesse longo período de tempo, espera-se que as lesões, as paixões, as condições, as retribuições, as convicções, as tentações, as divagações, as opiniões (e este é o território dos opinadores, por excelência – que mais, de facto, estarei eu a fazer?), nunca comprometam a qualidade de cada uma das 10 000 h de trabalho (não vai ser fácil!);
  8. É ainda preciso que todos os ingredientes desta assombrosa “sopa de pedra” convirjam para o sucesso no momento de realização e que essa convergência não seja apenas um pouquinho mais exuberante no “universo paralelo” do adversário… dos milhares de adversários aqui e por esse mundo fora.

De facto, o grande sucesso desportivo encontra-se não por sorte, mas criteriosa, sistemática e multidisciplinarmente, numa articulação profundamente complexa e instável, exatamente como se encontra uma agulha num palheiro (claro que depois de encontrarmos uma, é mais fácil que se acredite que encontraremos outras…, mesmo que a tenhamos encontrado por sorte, que às vezes também deve ser considerada na equação!).

Efetivamente não é fácil! Não é fácil nem de realizar, nem de compreender. Muitos pensarão: “que exagero!”. Porquê? Tão simplesmente porque nunca o vivenciaram de facto, ou nunca o pensaram com a profundidade requerida (passo a petulância).

E vem isto a propósito de que “Roma e Pavia… não se fizeram num dia!”; vem também a propósito de que havendo como, far-se-ão mais ou menos rapidamente; mas um campeão não; não necessariamente! Há outras romas e pavias que alguém tenta construir logo ali ao lado – os adversários – e, se possível, ainda mais ricas e exuberantes… e feitas em menos tempo… e para durar mais tempo. De facto, a natureza não foi suficientemente gentil para fazer as coisas tão simples quanto poderíamos gostar que fossem, muito menos as mais complexas! E destas, a rainha da complexidade é o homem em transcendência, mas em transcendência absoluta: o nunca antes feito, o recorde! De resto, é esta complexidade que dá um gosto especial à excelência no desporto!

Terminaram ainda há pouco os Jogos Olímpicos (JJOO) e os Jogos Paralímpicos (JJPP) da XXXI Olimpíada, no Rio de Janeiro. Estive lá e gostei muito! Como português e como lusófono. E gostei muito dos participantes portugueses. Gritei pela Telma e contra o árbitro, jurei que o Pimenta trazia algas no leme, vibrei com a meia-final do Alexis, acreditei na vitória do Rui Costa (maldita avaria!), verifiquei que já somos “gente” no ténis e sonhei com uma final Portugal-Brasil na “bola”. Mas arrepiou-me muito o que se foi dizendo por cá e por além mar. Desde logo a começar por muitos brasileiros, e alguns portugueses, fossem dizendo recorrentemente que estávamos “nas olimpíadas”, como se a expressão fosse sinónimo de JJOO/JJPP.

Mais do que arrepiado fiquei arreliado quando percebi que, os mesmos e outros pares, ícones mal disfarçados da cultura desportiva nacional e internacional, falavam de desempenho desportivo limite, de excelência desportiva, de sucesso e de insucesso, com a mesma desfaçatez com que misturavam Jogos Olímpicos e Olimpíadas. E de arreliado passei a escandalizado, quando verifiquei que facilmente se tende a perdoar o erro maior (o das premissas, do conhecimento elementar) e a enfatizar os erros menores (os tantos que percebi em muitas opiniões descabidas que fui ouvindo e lendo). Sim, porque não saber distinguir JJOO de Olimpíadas é o mesmo que não saber de que lado fica o apêndice (mesmo num “situs inversus”)! Imagine-se que li (espero que tenha sido o único!) que o Phelps é uma espécie de marginal (não por ser o mais medalhado e com mais medalhas de ouro de todos os que alguma vez tiveram a subida honra de serem “olímpicos”, mas por ter tido problemas de saúde – de facto! E não imputáveis à prática desportiva – entretanto resolvidos), mais ou menos perigoso para o equilíbrio da sociedade, e que foi o desporto de alta competição que o perverteu (“make joints, not sport!”); li que os portugueses nunca ganham; li que o desporto português é, fora o futebol, uma vergonha (e lá nem esse se safou, naturalmente por culpa do COP, quem mais?); li que o desporto para deficientes é um espetáculo grotesco; li que há muita gente que “sabe disto”, “da poda” como se diz por cá, mas que nem por isso aparece a mostrar, pelo exemplo, o caminho certo, nem que fosse a empatar qualquer coisinha… (Já não há paciência para ler mais disto!!!)

Dizem que é do fado. Que o português padece desse destino; do destino triste que impõe chorar. Enquanto os outros não. Esses vivem da glória, dos risos, dos festejos e também dos choros, mas dos choros de lágrimas que caem da alegria de quando a bandeira sobe e o hino toca. Não vou nessa! Somos da mesma massa, precisamos e choramos das mesmas coisas, sabemos do quê, mas temos os nossos constrangimentos e devemos enfrentá-los; só que nenhum deles é o fado da derrota! E Roma e Pavia…

Estou de acordo que poderíamos ter tido mais medalhas (ou seja, estarmos mais vezes entre os 3 melhores de um mundo maior do que o da ONU) e mais diplomas (8 melhores de…); mas tivemos mais classificações entre os 15/16 melhores (do tal mundo) do que alguma vez havíamos conseguido. Sem que me considerem um transmutador de realidades óbvias, por favor deixem-me dizer-vos que acredito que a distância que separa, em trabalho, competência, seriedade e valor, o primeiro do oitavo, ou do décimo quinto, não é tanta assim que, de um sexto, ou de um décimo, não tivessem podido brotar, qual surpresa, um primeiro, ou um outro pobre pódio… segundo ou terceiro. E que se todas as constelações se organizassem, como os (ou as…) “Zandingas” de agora gostariam que acreditássemos que sabem tornar possível, teríamos regressado do Rio de Janeiro com as algibeiras carregadas de medalhas. Nessa circunstância, probabilisticamente menos credível, mas possível, já nem valeria a pena expressar as medalhas em valor relativo ao número de atletas participantes, ao orçamento investido, ao número de habitantes, ou ao PIB. Éramos os maiores! Os Santos milagreiros… os campeões! Mesmo sem que as modalidades olímpicas nos invadissem o quotidiano, nos carregassem de sabichões de TV e nos pervertessem as prioridades (in)formativas até à exaustão.

Não aconteceu? Danados! Crucifiquem-se os culpados; queimem-se antes em chama viva que, apesar de “démodé”, sempre é um poucochinho mais moderno do que a velha cruz. É sempre a mesma coisa! “O Pimenta a armar-se lá na frente e, depois…, parecia parado. Fui vê-lo ganhar, mas estes tipos gastam-nos a ‘massa’ e perdem sempre”. Vejam a Telma. “A fazer-se de esperta para descansar um bocadinho, em vez de se atirar à outra” (era só a melhor do mundo…). “Decidiram que ela perderia (sem de facto ter perdido) e teve de ir atrás do prejuízo para nos fazer os segundos dos últimos.” Que vergonha! E o futebol? No primeiro milho (que sempre ouvi dizer ser para os pardais) lá fomos “bicando” (e os brasileiros perdendo, mesmo com as estrelas em campo). Depois? Foi o que se viu. Uma tristeza (vai mais um fado?)! E os brasileiros? Ah, D. Pedro, que mal nos fizestes… Não chegou, está-se mesmo a ver, a vitória histórica e redentora sobre o absolutismo miguelista para que vos perdoemos.

De acordo. Não branqueemos realidades que, se bem que complexas, não nos são favoráveis. Mas reflitamos acerca das mesmas com a cabeça fria e de forma competente e informada. No Rio 2016 não se concretizaram nem os objetivos, nem as melhores expectativas do COP. Talvez o mesmo se possa dizer do CPP. Mas ambos poderiam facilmente ter sido ultrapassados; e para mim isso não bastaria para poder afirmar, de consciência tranquila, que o desporto português estava no caminho certo. De igual modo não posso agora, simplisticamente, afirmar que está no percurso errado, e exatamente pelas mesmas razões. De algumas coisas estou certo: (i) é decisivo continuar a refletir séria, ponderada, informada e competentemente acerca destes problemas; (ii) os representantes portugueses competiram esforçada e dignamente; (iii) a preparação foi longa e dura, como poucos poderão imaginar e, (iv) sim! Por muito pouco que se justifique a choraminguice do fado português, os nossos usaram de condições que não foram as de muitos! Foram muito piores do que as de uns tantos (e nem sempre esses ganharam) e muito melhores do que as de outros (e nem sempre ganhámos a esses).

Ah! Também estou certo de que por cá temos vários “opinadores” que devem ser mesmo dos melhores que o mundo tem. Pelo menos ganhamos essa medalha… de cortiça!

E, claro, também tenho a certeza de que Roma e Pavia não se fizeram num dia…

Professor universitário, membro da Comissão Executiva do COP

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