Ranieri: o homem que foi almoçar com a mãe a Itália no dia em que se sagrou campeão

O treinador italiano esperou até aos 64 anos pelo primeiro título de campeão, e agora quer saboreá-lo como se fosse um bom vinho. Responsável pelo sonho tornado realidade do Leicester City na Liga inglesa, Claudio Ranieri inspirou-se toda a vida numa máxima que nunca fez tanto sentido como agora

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Darren Staples/Reuters

Toda a vida Claudio Ranieri inspirou-se e guiou-se por uma frase, mas em 64 anos de vida do treinador italiano esse lema nunca fez tanto sentido como agora. “Volere è potere” (“Querer é poder”), repetiu o técnico aos jogadores que orientou em mais de uma dezena de clubes em Itália, Espanha, Inglaterra e França. Foi preciso chegar ao Leicester City e a 2016 para Ranieri dar pleno sentido àquela máxima que carregou consigo por onde passou: a equipa quis, os adeptos sonharam e a obra está à vista de todos. Pela primeira vez na carreira, o treinador italiano sagrou-se campeão. E, pelo caminho, ajudou a escrever uma história que, certamente, continuará a ser contada daqui a 25, 50 ou 100 anos: era uma vez uma equipa de futebol pela qual ninguém dava nada, orientada por um treinador em quem ninguém acreditava, que contrariou todos os prognósticos e conquistou o título de campeã nacional naquele que é considerado o campeonato mais competitivo do mundo.

Já foi contado e repetido que Ranieri foi recebido com desconfiança na chegada a Leicester. O italiano vinha de uma curta passagem pela selecção grega que se revelou um desastre, com uma derrota em casa diante das Ilhas Feroé a ser a gota de água que fez transbordar o copo. O cepticismo era público e, em Julho de 2015, uma semana depois de ter sido contratado, Ranieri fazia a sua defesa: “Cheguei [à selecção da Grécia] cinco dias antes do primeiro jogo. Só tive um dia para trabalhar com os jogadores e depois houve jogo. Tive quatro jogos, três derrotas e um empate. Quando perdemos com as Ilhas Feroé, eu disse que era impossível. Mas, depois de eu sair, eles continuaram a perder, portanto o problema não era o Claudio; o problema talvez seja todo o país. Há grandes problemas lá, toda a gente sabe, e o futebol é um reflexo da vida.”

Paulatinamente, Ranieri foi conquistando os críticos. Depois de uma época em que sofrera até ao fim, escapando à despromoção por um triz, o Leicester City tinha a manutenção garantida pela altura do Natal. As jornadas passavam e os “foxes” continuavam no topo da classificação. Subitamente, a possibilidade de lutar pelo título de campeão não parecia assim tão desfasada da realidade – mas não para os mais visionários (ou crentes) que apostaram nisso no início da temporada, quando as casas de apostas pagavam 5000 por cada libra apostada na vitória do Leicester City na Premier League. É a mesma cotação que atribuem hoje, por exemplo, à descoberta do monstro do lago Ness, ao regresso de Elvis Presley dos mortos, ou à existência de vida extraterrestre inteligente, contava o diário The Guardian.

O “tio italiano”

Quando chegou a Leicester, Claudio Ranieri teve de resistir à tentação de mudar tudo para imprimir a sua marca pessoal na equipa. Havia uma ligação forte entre os jogadores e Nigel Pearson, o anterior treinador, despedido a poucas semanas do início da época devido ao envolvimento do seu filho, que era jogador do clube, num escândalo sexual durante a digressão de pré-época à Tailândia. “Muitos dos jogadores do Leicester tinham um sentimento de lealdade para com ele e gostavam dos seus métodos, incluindo o facto de ele lhes dar voz e, no caso dos elementos mais veteranos da equipa, solicitar a sua opinião. Nesse sentido, Ranieri percebeu que não podia impor as suas normas e ter toda a gente a segui-lo cegamente”, escreveu Stuart James no mesmo jornal, acrescentando: “Havia, em resumo, uma resistência à mudança e, em certa medida, Ranieri aprendeu a ir com a corrente.”

A personalidade cativante e o sentido de humor do italiano fizeram o resto. Não deixa de ser significativo que, no dia em que o Leicester City ficou a saber que era campeão de Inglaterra, Claudio Ranieri estivesse em viagem, de regresso após ter ido a Itália almoçar com a mãe Renata, de 96 anos. “É difícil não gostar de Claudio Ranieri, o brilhantemente perspicaz e engraçado tio italiano que nunca tivemos”, notou Barney Ronay no The Guardian. Esse charme já se tinha feito sentir nos contactos iniciais que manteve com os responsáveis do clube — “Só queria meter o Claudio à frente deles, porque tinha a certeza que iam ficar impressionados”, confessou Steve Kutner, o empresário do técnico.

O título do Leicester City assenta num arreigado sentimento de pertença: Ranieri não esconde uma consideração pelos jogadores que ultrapassa o sentido estritamente profissional. “Os rapazes são como meus filhos. Se vierem ter comigo [a pedir para serem transferidos] vou dizer-lhes isto: ‘Tem cuidado’. A longo prazo, o Leicester vai alcançar um lugar muito alto”, confessou o italiano, expressando o desejo de manter toda a equipa na próxima temporada.

Essa familiaridade é algo que Claudio Ranieri cultiva por onde passa. “Havia uma empatia muito grande. Já era um treinador consagrado, com muita experiência, e usava-a. O relacionamento mais informal também dava alento ao plantel. Havia muito convívio, uma ou outra vez por semana, almoços ou jantares de equipa. Tinha uma grande abertura”, contou ao PÚBLICO o ex-internacional português Marco Caneira, que em 2004-05 foi orientado pelo italiano, no Valência. “Será para sempre uma lenda [em Leicester]. As pessoas têm essa consciência, o grande mérito não se pode tirar nem a ele nem aos próprios futebolistas. São uns heróis autênticos, contra o poderio financeiro extremo dos outros clubes, conseguiram ganhar”, acrescentou Caneira.

Quem são os onze magníficos?

Basta ouvir os adeptos para perceber quão reconhecidos e agradecidos estão a Claudio Ranieri. Uma televisão recolheu testemunhos pela cidade e depois deu-os a ver ao técnico: no vídeo está Vicky, a vendedora no mercado, uma reformada, os jovens estudantes, o funcionário da estação de comboio. O que dizem eles do treinador italiano e do feito alcançado pelos “foxes”? “Fabuloso, fizeste algo incrível pela cidade”. “Queremos que fiques”. “Nunca vimos nada assim, é incrível. Obrigado”. “Muito obrigado pelo que fizeste pelo clube”. “Adoramos-te, estás nos nossos corações”. “Estamos muito orgulhosos”. “Obrigado por teres vindo para Leicester. Que grande trabalho fizeste. És um deus”. “Vamos continuar a falar disto daqui a 20 ou 30 anos. É lendário”. “O Leicester é a prova que, se acreditarmos nos nossos sonhos, quem sabe onde o conto de fadas nos leva”.

“Eu faço este trabalho porque fico muito contente quando os adeptos estão contentes. Todos os sacrifícios que faço são por isto”, disse um emocionado Ranieri após ver as imagens, no seu inglês marcado pela pronúncia italiana.

Saborear um bom vinho

Este foi o primeiro título de campeão da carreira de Claudio Ranieri, mas o italiano de 64 anos falou disso com humor. “Se tivesse ganho um título destes no início da minha carreira, talvez o tivesse esquecido. Agora que sou um homem mais velho posso saboreá-lo muito melhor”, comentou, comparando o feito a um bom vinho: “É preciso saboreá-lo com tempo, como um bom vinho, e desfrutá-lo. Talvez ainda seja muito cedo para pensar naquilo que fizemos. Talvez daqui a um ou dois anos consigamos perceber melhor.”

Mas essa lacuna no currículo também lhe valeu críticas acesas. Por exemplo de José Mourinho, sucessor de Ranieri no Chelsea: “Acho que [Ranieri] tem razão quando diz que sou muito exigente comigo próprio e que tenho de ganhar para me sentir seguro de mim próprio. É por isso que conquistei tantos troféus na minha carreira. Ranieri, por outro lado, tem a mentalidade de alguém que não precisa de ganhar. Tem quase 70 anos [na verdade, o italiano tinha 56]. Ganhou uma Supertaça europeia e outros troféus menores e é demasiado velho para mudar de mentalidade. É velho e não ganhou nada. Eu estudei italiano cinco horas por dia durante muitos meses para garantir que conseguia comunicar com os jogadores, os media e os adeptos. Ranieri esteve em Inglaterra durante cinco anos e ainda tem dificuldades para dizer ‘good morning’ e ‘good afternoon’”, dizia o português durante a época 2008-09, quando guiou o Inter de Milão à vitória na Liga italiana, à frente da Juventus de Ranieri.

Claudio Ranieri não se deixou perturbar. “Volere è potere”, repetiu para si próprio e para os jogadores. Já tinha conduzido o Cagliari do terceiro para o primeiro escalão do futebol italiano, e conquistara uma Taça italiana e uma Supertaça italiana (Fiorentina), uma Taça do Rei e uma Supertaça europeia (Valência). Depois das críticas de Mourinho, devolveu o Mónaco à Liga francesa e foi vice-campeão, apenas atrás do inevitável Paris Saint-Germain.

Mas o maior feito estava para vir. Ranieri e Leicester City soava a casamento improvável, destinado ao fracasso. Os “foxes” eram vistos como candidatos à descida de divisão e ao italiano era prenunciado um consulado curto no estádio King Power. Havia quem dissesse que não chegava ao Natal. Enganou-se redondamente: em Leicester, de agora em diante, Natal é quando Ranieri quiser.

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