Ponta Delgada SC: Um clube português na génese do soccer americano

O percurso da equipa dos açorianos de Fall River, que já foi a selecção dos EUA, e a saga dos Souzas, descendentes de portugueses, que envergonharam a Inglaterra no Mundial do Brasil de 1950.

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John Souza, um dos açoreanos que brilharam no futebol norte-americano no século passado DR

Ed Souza e John Souza não tinham laços familiares, mas era como se tivessem. Filhos de emigrantes portugueses, provenientes dos Açores, nasceram na cidade norte-americana de Fall River, no Estado de Massachusetts. Na tarde de 29 de Junho de 1950 estavam ambos no relvado do Estádio Raimundo Sampaio, em Belo Horizonte, durante o Mundial do Brasil, para protagonizar um dos maiores feitos futebolísticos da história da selecção dos EUA, até então: uma vitória por 1-0 frente à Inglaterra, candidata ao título (que acabaria eliminada), naquela que seria a grande surpresa do torneio e uma das maiores sensações na história da competição. Mas este é quase o final de uma história iniciada décadas antes numa pequena localidade da Nova Inglaterra com sotaque bem português e com um clube que brilhou por estas paragens, chamado Ponta Delgada, outro dos grandes protagonistas desta narrativa.

Fall River dista apenas 90 quilómetros de Boston, onde a selecção nacional aterrou quinta-feira para disputar uma partida particular com o México (ver texto nestas páginas). É uma das grandes “ilhas” da diáspora portuguesa na costa leste dos EUA, para onde rumaram entre os finais do século XIX e princípios do século XX milhares de emigrantes açorianos, maioritariamente da ilha de São Miguel, atraídos por promessas de trabalho na florescente indústria têxtil, impulsionada pela Revolução Industrial norte-americana. Constituíram uma comunidade sólida e unida que perdura bem viva até aos dias de hoje.

“Fall River é a cidade dos EUA com maior número de portugueses por cem habitantes, em particular açoreanos. Cerca de 60% da população é portuguesa ou descendente de portugueses”, revelou ao PÚBLICO Frank Baptista, director, produtor e realizador da Rádio Voz do Emigrante/WHTB, que emite desta localidade. “Hoje a indústria têxtil já desapareceu quase por completo e a economia atravessa uma fase menos boa”, referiu o radialista, nascido em Cabo Verde há 63 anos e que emigrou para a América aos 16.

Nos primórdios do século XX, os açoreanos que chegaram a estas paragens trouxeram com eles a língua, hábitos e costumes, mas também o futebol que ganhava crescente popularidade por toda a Europa e depressa criou raízes em Fall River. Rebaptizado na América como soccer (uma abreviatura livre de Football Association, que ficou só “association”, sendo reduzido depois a “assoc” até chegar à forma actual), para não ser confundido com o hegemónico futebol americano, este desporto era uma paixão partilhada por outras comunidades emigrantes de italianos, escoceses, irlandeses e ingleses que por aqui também se estabeleceram.

O clube dos micaelenses
Foram surgindo rivalidades entre diferentes grupos de praticantes e, em 1915, nasceu o Ponta Delgada Soccer Club por iniciativa da forte comunidade micaelense, que iria ter um papel preponderante na denominada “era dourada” do soccer nos EUA. Um período próspero para este desporto na América, que teria na Nova Inglaterra (região do nordeste americano, que engloba os estados do Connecticut, Maine, Massachusetts, New Hampshire, Rhode Island e Vermont) um dos focos fundamentais de dinamismo, a par da região de St. Louis, no Estado do Missouri, na região do Midwest americano.

“Graças aos imigrantes que vieram trabalhar na indústria têxtil em Fall River, o soccer conseguiu não só criar raízes na América, mas também beneficiar da presença de indivíduos mais ‘experientes’ que já haviam vivido o jogo a outros níveis. Por várias razões, infelizmente, essa vantagem foi desperdiçada”, contou ao PÚBLICO Stephen J. Holroyd, advogado e escritor norte-americano, dedicado à história do futebol nos EUA, com várias contribuições para o American Soccer History Archives e colaborador regular da revista Soccer History.

O futebol ganharia grande adesão durante os anos de 1920, mas seria nas décadas seguintes que o Ponta Delgada SC iria deixar a sua marca, apesar do declínio de muitos clubes na sequência da Grande Depressão que afectou o país a partir do final de 1929, obrigando a maioria a encerrar as portas. Nove anos depois, o emblema de São Miguel iniciava a sua caminhada ascendente. Em 1938 conquistou o primeiro grande título do seu historial, a National Amateur Cup (NAC: equivalente a um campeonato amador), conduzida por um grupo de talentosos luso-descendentes. Mas o melhor estava guardado para os anos de 1940 e 1950, numa altura em que o soccer já entrara num longo declínio que duraria até meados dos anos de 1980.

Entre 1946 e 1948, a equipa açoreana de Fall River alcançou por três vezes consecutivas o NAC, voltando a repetir o feito entre 1950 e 1953. Ainda em 1946, o clube faria história ao ser o primeiro a atingir as finais em duas provas, vencendo o NAC, mas acabando derrotado no National Challenge Cup (NCC: a Taça dos EUA e a primeira competição realmente de âmbito nacional no país), frente aos Chicago Vikings. No ano seguinte, repetiria a proeza, mas desta vez não deixaria escapar os dois troféus, num feito, mais uma vez, inédito.

Na equipa brilhavam nomes como Ed Valentine, Joe Ferreira, Jesse Braga, Manuel Martin, Joseph Rego-Costa, Joe Machado, Frank Moniz, Jim Delgado, mas principalmente a dupla Ed e John Souza.

O êxito do Ponta Delgada SC de 1947 foi premiado com a convocação de quase toda a equipa para representar os EUA no North American Football Confederation Championship, uma antecessora da actual Golden Cup (torneio entre as selecções que integram a Confederação de Futebol da América do Norte, Central e Caribe – CONCACAF), mas numa versão reduzida, que decorreu entre 13 e 20 de Julho. Uma honrosa distinção dos responsáveis pelo soccer americano, mas que acabou sem sucesso desportivo.

Disputada em Cuba, a competição teve ainda a presença do México para além da selecção da casa, acabando os EUA/Ponta Delgada SC por sofrer pesadas derrotas nas duas partidas: 5-0, contra os mexicanos; 5-2, frente aos cubanos. Ed Souza e Ed Valentine apontaram os únicos golos da sua equipa no torneio. E para piorar tudo, teve de ser o clube de Fall River a suportar os custos com viagens e estadia, apesar de representar o seu país.

O insucesso não afastou os jogadores amadores do Ponta Delgada da equipa nacional. Um ano depois, em 1948, Joseph Rego-Costa capitaneou os EUA nos Jogos Olímpicos de Londres, num grupo que incluía ainda Manuel Martin, Joe Ferreira e os inseparáveis Souza. Pouco preparada e sem realizar nenhum treino conjunto em território americano, a selecção acabou cilindrada pela Itália, por esclarecedores 9-0, caindo com estrondo logo na primeira eliminatória.

O Mundial de 1950
No Mundial de 1950 a história não seria tão humilhante. Pelo contrário. Para o Brasil já só seguiram Ed e John Souza (o primeiro era ponta-esquerda e o segundo funcionava como o patrão da selecção), mas desta vez iriam regressar a Fall River com motivos de orgulho, ainda que sem qualquer reconhecimento interno. Os EUA foram inseridos no Grupo 2 com oponentes de peso, que incluíam a Espanha, Inglaterra e Chile. O arranque não podia ser melhor, um golo de Gino Pariani, logo aos 17’, colocou a equipa em vantagem contra os espanhóis, numa partida de abertura disputada na cidade de Curitiba, a 25 de Junho. Os norte-americanos bateram-se bravamente e aguentaram a curta vantagem até perto do final, mas Silvestre Igoa (81’), Estanislao Basora (83’) e Zarra (89’) deram a volta ao resultado (3-1).

Os EUA não desanimaram e, no segundo encontro, iriam chocar os adeptos ingleses com um golo sem resposta de Joe Gaetjens. Uma derrota mal digerida pelo país que se orgulhava de ter inventado o futebol e que surgia no Brasil com muitas ambições. O desaire frente a uma equipa amadora foi tão inesperado, que quando o resultado chegou a Inglaterra alguns jornais, incrédulos, pensaram tratar-se de um erro de digitalização e publicaram nas suas primeiras edições que a partida tinha terminado com um 10-1 para a sua selecção. A dura realidade tardou a ser digerida.

Os EUA terminaram a prova goleados pelo Chile, por 5-2, na última partida da primeira fase, a 2 de Junho, na cidade de Recife, mas encerraram a sua participação com a sensação de missão cumprida. Os Souza tinham alcançado o pico da sua carreira ao nível da selecção. Mas também internamente tinham brilhado, voltando a vencer nesse ano a NAC e alcançado novamente a final da NCC, que acabariam por perder.

O declínio
Em 1953, a equipa açoriana de Fall River somou mais um tricampeonato na NAC ao currículo, mas este seria o seu último suspiro antes do clube entrar numa espiral de declínio irreversível. O mesmo aconteceu com o soccer nos EUA, que só viria a receber um novo (e efémero) impulso na década de 1970, com o nascimento da National American Soccer League (NASL) e com a chegada de Pelé ao Cosmos de Nova Iorque, em 1975. Uma liga que se iria eclipsar em 1984 voltando o futebol a entrar em recessão no país até à organização do Mundial de 1994. O evento trouxe um novo élan a este desporto, reforçado com a criação, dois anos depois, da actual Major League Soccer (MLS).

Já o Ponta Delgada SC não acompanharia os novos tempos e foi definhando até um ponto final pouco honroso já em 2008. Localizado desde a sua génese na Shove Street, em Fall River, o clube iria alterar o seu nome, em 1985, para um inesperado e prosaico Patriot Bar & Grille. Deficiências com o sistema de aspersão e com os alarmes de incêndio levaram ao seu encerramento pelas autoridades locais para desgosto do seu último presidente, um Souza como não poderia deixar de ser, de primeiro nome Bob.

Os “nossos” Souzas também já deixaram de andar por Fall River, mas ainda são recordados como dois dos mais talentosos jogadores de sempre do soccer americano. Ed (Edward “Wolfgang” Souza-Neto), que fez todo o seu percurso futebolístico no Ponta Delgada SC, morreu a 19 de Maio de 1979, com apenas 58 anos. John (John Souza Benevides ou “Clarkie”, como também era conhecido), um veterano da marinha na II Guerra Mundial, que seria incluído pela revista brasileira Mundo Esportivo no “onze” ideal do Mundial de 1950, terminou a sua carreira futebolística nos New York German-Hungarians, tendo morrido a 11 de Março de 2012, com 91 anos. Inseparáveis na morte como na vida integram, lado a lado, a lista do National Soccer Hall of Fame.

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