O “tetra” que superou todos os sonhos do menino Marco Chagas

A Volta em que bateu o recorde do mítico Joaquim Agostinho nunca poderá ser apagada da memória do português com mais vitórias na prova rainha: “Por muito que viesse a conquistar, nada se lhe compararia”.

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Com o ciclismo a correr-lhe no sangue — recebeu influência fortíssima do tio —, Marco Chagas continua a deter o recorde que faz dele o único “tetravencedor” luso da Volta a Portugal. Foi o culminar de um percurso que arrancou bem cedo, ainda nos tempos de meninice, e que serviu para provar que os sonhos estão ao alcance da paixão e dedicação.

O simples facto de ter sido chamado a correr um Porto-Lisboa com apenas 18 anos, o que hoje “daria prisão para os responsáveis”, revela bem a precocidade com que se iniciou nas lides. Marco Chagas correspondeu às expectativas, o que o guindou à primeira Volta, com apenas 19 anos. “Cresci a sonhar com a Volta e ser chamado, tão novo, a participar na grande corrida era tudo o que desejava”, rebobina, pronto para rever o filme da estreia, passado em 1976.

“Em 1975, não tinha havido Volta a Portugal por causa da revolução. Daí, a prova do ano seguinte acabou por ser organizada em moldes um pouco precários”, sublinha, recordando que o 25 de Abril tinha levado os principais corredores para as competições do país vizinho.

“O Sporting extinguira a secção e surgiu em S. Domingos de Rana, em Cascais, uma equipa formada por um apaixonado do ciclismo, que reuniu alguns jovens e amadores com valor. Acabei por terminar em sexto e por vencer três etapas”, recorda com legítimo orgulho, avançando de imediato até ao ponto em que surgiu o convite do FC Porto, já depois de concluídos os 21 meses de serviço militar obrigatório e de uma experiência em França, onde foi companheiro de Joaquim Agostinho.

O currículo é extenso e por isso torna-se difícil eleger uma prova apenas, mas Marco Chagas não enjeita o desafio. “Se tivesse que escolher a Volta mais marcante, diria que foi a quarta, por toda a carga emocional e pelo simbolismo de superar a marca de Alves Barbosa e de Joaquim Agostinho. Bater esse recorde era qualquer coisa de impensável e por muitas Voltas que pudesse vir a conquistar, nada se lhe compararia”, garante, sem hesitar um único instante.

Superar a marca do mítico Agostinho ia além dos sonhos, mas na verdade até podiam ter sido mais duas as Voltas inscritas no palmarés. No mínimo… “Posso afirmar que sempre ganhei com suor e trabalho. Simplesmente, na época não havia nada nem ninguém que nos pudesse alertar para o que era ou não permitido”, lamenta, na qualidade de “cobaia”, pela Volta ganha e perdida em 1979 e pela desclassificação de 1984 e 87. 

Um estigma que tinha levado Joaquim Agostinho a decidir deixar de correr em Portugal, depois de ter acusado uma substância que usava correntemente na Volta a França e que hoje em dia é legal. “Felizmente, houve uma evolução significativa e os ciclistas são devidamente acompanhados. Mas são situações que fazem parte do passado”. O mesmo passado de glória confirmada em 1982, depois de Manuel Zeferino ter surpreendido o país com uma vitória das antigas, com quase 11 minutos de diferença em relação ao segundo classificado.

“Pode ter sido surpresa para muitos, mas não para nós, que sabíamos como trabalhámos e nos preparámos” salienta, quase esquecendo a vitória no ano seguinte, a primeira a contar, a primeira de quatro. “Na verdade, foi a última do FC Porto durante 34 anos. Alguns responsáveis pela equipa criaram a Mako Jeans, na Trofa, e convidaram-me. Aceitei e fiz o meu percurso, com mais três Voltas”, encerra, virando-se para o futuro, numa análise ao que parece indiciar a recuperação do protagonismo e das vitórias por parte dos ciclistas portugueses.

No fundo, para Marco Chadas, é tudo uma questão de qualidade. "Os estrangeiros de maior categoria nem sempre surgem na melhor forma e depois acabam por não aparecer durante a corrida”, explica, sublinhando o peso dos galegos nos últimos anos, em particular de David Blanco — nascido na Suíça e lançado pela Paredes Rota dos Móveis em 2000 — a surgir com evidente destaque após superar, em 2012, a marca do próprio Marco Chagas, com a conquista da quinta Volta a Portugal.

“Ainda que as equipas portuguesas dominem, como será o caso da W52-FC Porto, julgo que o favoritismo do Gustavo Veloso, outro galego, não pode ser ignorado. Até porque o Joni Brandão não participa nesta edição”, avalia, com o know-how próprio de quem nunca deixou de “correr”, mesmo depois de encostada a bicicleta, no iníco da década de 1990. Primeiro como director desportivo e agora na pele de comentador, missão que cumpre com a leveza e sagacidade próprias dos grandes campeões, Marco Chagas continua a ser sinónimo de ciclismo em Portugal.

 

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