O Leicester City foi de romântico a cínico em 298 dias

Claudio Ranieri despedido do campeão inglês nove meses depois de uma das mais improváveis conquistas do futebol mundial.

Foto
Ranieri não tem uma estátua em Leicester, mas já tem um mural FACUNDO ARRIZABALAGA/EPA

Não é a primeira vez que um treinador é despedido pelos maus resultados, nem é a primeira vez que um treinador campeão é despedido porque a defesa do título não está a correr bem. Mas quando se despede um homem que, segundo Gary Lineker, merecia uma estátua, estamos a falar de bem mais do que um treinador vítima dos maus resultados. Claudio Ranieri foi despedido do Leicester City 298 dias depois de ter conduzido as raposas a uma das mais improváveis conquistas da história do futebol mundial, o triunfo na Premier League. Mas o mesmo clube a quem chamaram romântico acabou por ceder à pressão de estar um ponto acima da despromoção. A perspectiva de perder os muitos milhões de libras das transmissões televisivas que uma descida ao Championship implica transformou o Leicester num clube cínico. E Ranieri numa vítima.

A decisão da direcção do clube já estaria tomada antes do jogo da primeira mão dos oitavos-de-final da Liga dos Campeões, em Sevilha, em que o Leicester foi dominado e acabou por perder (2-1), mas com hipóteses bastante razoáveis de continuar em prova. Ranieri só soube da decisão depois do jogo, tal como os jogadores do Leicester, uma decisão, segundo a administração, “difícil” mas tomada em função dos “interesses a longo prazo do clube”. E esse interesse chama-se manutenção na Premier League, onde o Leicester segue no 17.º lugar, com 21 pontos, ainda não marcou qualquer golo na competição em 2017 e pode terminar a jornada no último lugar, se perder na segunda-feira (Craig Shakespeare, o adjunto de Ranieri, estará no banco) com o Liverpool e todos os outros que vêm atrás – Hull City (21 pontos), Crystal Palace (19) e Sunderland (19) – ganharem.  

“O meu sonho morreu”

A manutenção (ou não) do Leicester na Premier League já não será, então, um problema de Claudio Ranieri, o italiano itinerante de 65 anos que foi campeão quando lhe davam uma probabilidade de 5000-1 de tal acontecer, e que agora pode ser substituído por outro italiano, Roberto Mancini, o favorito das casas de apostas. Um dia depois de a decisão ter sido tornada pública, Ranieri despediu-se do Leicester, foi emotivo e sem rancor. Falou de sonhos que acabaram, de euforia vivida, de uma aventura que vai durar para sempre. E de amor.

“O meu sonho morreu ontem. Depois da euforia da última época e de termos sido coroados campeões, o meu sonho era continuar com o Leicester. A aventura foi fantástica e vai durar para sempre. O meu agradecimento do coração para todos no clube, todos os que fizeram parte do que conquistámos, sobretudo para os adeptos. Vocês acolheram-me nos vossos corações desde o primeiro dia e amaram-me. Eu também vos amo. Ninguém nos pode tirar o que conquistámos juntos e espero que, tal como eu, sorriam cada vez que pensam nisso. Foi um tempo maravilhoso e feliz que não vou esquecer. Foi um prazer e uma honra ter sido campeão com todos vocês”, disse Ranieri em comunicado.

Para muita gente do futebol, esta foi uma decisão incompreensível da direcção do Leicester. Na primeira linha de defesa ao italiano está José Mourinho e não é por acaso. O português nem sempre se deu bem com o italiano, mas sentiu as penas de Ranieri como as suas porque passou pelo mesmo no Chelsea na época anterior (em parte por culpa do Leicester). Mourinho tinha sido campeão na época anterior, mas foi despedido antes do ano acabar. “Continua a sorrir ‘amico’, ninguém pode apagar a história que escreveste”, escreveu o treinador do Manchester United no Instagram, antes de, nesta sexta-feira, ter aparecido em conferência de imprensa com as iniciais C.R. na camisola, uma espécie de “Je suis Ranieri”.

Embora não exactamente da mesma maneira, Jurgen Klopp também sofreu um destino semelhante quando estava no Borussia Dortmund. Foi o último a conseguir romper (e por duas vezes) o domínio do Bayern Munique na Bundesliga, mas uma época muito abaixo das expectativas ditou o seu destino. E, por isso, o agora treinador do Liverpool também estranha a decisão do Leicester: “Não foi apenas no futebol. Para mim, houve muitas coisas estranhas a acontecerem em 2016-17: Brexit, Trump e Ranieri. Se eu consigo explicar isto? Não, obviamente. Não faço ideia por que é que o Leicester fez o que fez.”

O que aconteceu?

O que está a acontecer ao Leicester em 2016-17 não será tão improvável como o que aconteceu em 2015-16. O normal para o clube das Midlands seria sempre lutar para se manter na Premier League todas as épocas, como acontecera em 2014-15, em que houve uma “grande evasão” na recta final do campeonato. O título foi a excepção e subiu as expectativas. Mas a tempestade perfeita que fez do Leicester campeão não se repetiu, mesmo que a equipa fosse quase a mesma – dos 11 mais utilizados apenas saiu um, N’Golo Kanté, para o Chelsea. Os habitualmente candidatos ao título é que já não estavam distraídos e o Leicester voltou à sua normalidade.

Palavra a Gary Lineker, antigo avançado do clube, comentador da BBC e adepto confesso do Leicester, ele que foi apresentar o primeiro “Match of the day” da nova época em cuecas para honrar uma promessa que tinha feito. “Ele merecia mais lealdade e tempo. Os sentimentos são uma grande parte do futebol e devia continuar assim. Ranieri foi uma vítima do seu próprio sucesso. O normal do Leicester é o que está a acontecer esta época, a temporada passada é que foi inexplicável”, defende o antigo internacional britânico.

Sem que ninguém o confirme, o que a imprensa britânica vai dizendo é que os jogadores já não estavam com Ranieri, que ganhara a confiança deles ao prometer, entre outras coisas, um jantar de pizza sempre que terminassem um jogo sem sofrer golos. Mas estes jogadores já não eram os mesmos desconhecidos underdogs que se uniram em torno de um objectivo. Passaram a ser “estrelas”, com maior visibilidade e maior ordenado e com outras preocupações.

Jamie Vardy, por exemplo, era o goleador do Leicester campeão e ele próprio protagonista de uma incrível história de superação, de operário  numa fábrica e futebolista amador a internacional inglês em poucos anos. Se se tiver que representar a ascensão e queda do Leicester em apenas um nome, Vardy, que recusou ir para o Arsenal e viu o seu contrato substancialmente melhorado, serve bem esse propósito: na época do título, marcou 24 golos em 36 jornadas; esta época, em 22 jornadas, marcou apenas cinco.

Sugerir correcção
Comentar