Tom Boonen, o adeus de uma lenda

O rei do "pavé" cumpriu no domingo, no "Inferno do Norte", os últimos 257 quilómetros de uma carreira incomparável no ciclismo na década de 2000.

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LUSA/YOAN VALAT
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“O ciclismo não será o mesmo sem o Tom”, titulava há dias o SudPresse. Atendendo à profecia do jornal belga, o mundo velocipédico, pelo menos como o conhecemos, terá acabado no domingo, por volta das 16h, quando Tom Boonen entrou no imponente velódromo de Roubaix para cortar, pela última vez, a meta da clássica que o converteu numa lenda viva do ciclismo.

 “O Tom Boonen é o melhor de sempre na sua especialidade e é o único ciclista da última década do qual podemos dizer isso. Se pensarmos no melhor ‘voltista’ de sempre, temos que recuar até Eddy Merckx. No melhor contra-relogista, talvez Indurain. O melhor sprinter, talvez Cipollini. O melhor no empedrado é ele e nem se coloca o 'talvez'. É o recordista das quatro maiores clássicas de ‘pavé’: Volta à Flandres, Paris-Roubaix, Gent-Wevelgem e E3 Harelbeke”, recorda ao PÚBLICO Rui Quinta.

O autor do blog Carro Vassoura, o mais lido pelos amantes velocipédicos em Portugal, levanta a ponta do véu sobre a importância capital que o belga da Quick Step-Floors teve no ciclismo na década de 2000. Desde que despontou para a ribalta, ao ser terceiro na estreia em Roubaix, com apenas 21 anos, numa efémera passagem pela US Postal, "Tommeke" tornou-se no recordista ex-aequo das duas primeiras e solitário das outras duas – é também o único a ter conseguido por duas vezes a "dobradinha" Flandres-Roubaix. Contabilizou 126 vitórias profissionais, entre as quais seis em etapas no Tour – onde chegou a andar de amarelo e vestiu de verde no pódio dos Campos Elíseos (2007) – e duas na Vuelta. Foi um dos mais jovens campeões mundiais de sempre e o primeiro a conquistar o arco-íris, Flandres e Roubaix no mesmo ano (2005).

Poderíamos prosseguir a espraiar o seu palmarés, contudo, entender a dimensão do corredor, nascido a 15 de Outubro de 1980 em Mol, na Bélgica, e convertido à modalidade pelo pai, também ele ciclista, requer muito mais do que uma análise detalhada de um currículo impressionante e pejado de feitos históricos. “O Tom Boonen foi conquistando um estatuto especial durante a sua carreira não pelas corridas que ganhou, mas pela forma como as ganhou. Isso tornou-o uma lenda”, explica Nelson Oliveira. Apaixonado pelas clássicas de "pavé", nomeadamente pelo "Inferno do Norte", o português da Movistar tem no belga uma referência.

“A principal memória que tenho dele é do Paris-Roubaix de 2012, quando cortou a meta isolado depois de andar 50 quilómetros sozinho na frente”, lembra o tricampeão nacional de contra-relógio, uma recordação que partilha com Rui Quinta, que ainda assim prefere destacar outros momentos na carreira daquele que é o seu ídolo desde a Volta à Flandres de 2006. “Sendo ele um dos melhores sprinters e claramente o maior favorito, com uma super-equipa para controlar a corrida, preferiu atacar a 70 quilómetros da chegada. Acabaria por vencer a prova, a mais importante do seu país, com a camisola de campeão do mundo, não com esse ataque, mas respondendo a outro a 30 quilómetros”.

Foi essa admirável audácia, num pelotão cada vez mais autómato e calculista, que seduziu milhões de adeptos em todo o mundo. Mas não só. Na sua Bélgica natal, Boonen foi, no auge da sua carreira, uma verdadeira pop star. O ar angelical, mais próximo de um cantor de uma boys band, as incontáveis festas – na celebração do seu título mundial, perdeu a camisola arco-íris, só a recuperando dois dias depois -, as conquistas, os problemas com a cocaína – em Maio de 2008 e Abril de 2009 deu positivo, em testes fora de competição - e com o álcool, a depressão valeram-lhe parangonas não só nos jornais e revistas nacionais, mas um pouco por todo o mundo.

“É uma estrela, que marcou desportivamente a sua época e que tocou o coração das pessoas muito além do círculo de amantes do ciclismo”, defendeu ao SudPresse Cédric Vasseur, que foi seu colega em 2006 e 2007. O já retirado francês acredita que Boonen modernizou o ciclismo até pela sua maneira de ser. “No limite, diria que era demasiado acessível e que nem sempre se protegia fora da corrida. Tom gosta genuinamente do público, respeita-o e sabe o que lhe deve”.

Ao contrário da imensa maioria das estrelas do pelotão, não se escondia no autocarro da Quick Step. Saía com tempo, tomava café na zona de partida das provas, respondia a todas as solicitações, fossem elas selfies, autógrafos ou entrevistas. Desarmava com a sua disponibilidade e atitude anti-vedeta, apanhava os jornalistas, habituados às permanentes fugas e respostas sucintas, fora de pé. Boonen entendia que tudo aquilo era parte integrante da sua profissão. “Vai fazer muita falta”, assume Oliveira, que também lá esteve no domingo, no mesmo pelotão em que a "lenda", que terminou em 13.º a 12 segundos do vencedor, deu as últimas pedaladas.

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