Mundial de rua

Em alturas de Mundial de Futebol a rua enchia-se de equipas formadas por miúdos lá da zona. Depois de vermos os nossos heróis na televisão e inspirados por eles, saíamos de imediato para a rua, prontos para a competição. Uns queriam ser o Maradona, outros Zico e também havia quem quisesse ser o Paolo Rossi, depois daquela célebre vitória da Itália frente ao Brasil em 1982. 

Quase todos queriam ser avançados. Defesas e guarda-redes não eram muito populares. A escolha das equipas era um ritual complexo. Os dois melhores jogadores lá da rua afastavam-se ligeiramente, davam um salto em frente, e depois de vários passos curtos quem primeiro apoiasse o pé sobre o do oponente tinha a primazia de escolher o primeiro jogador para a sua equipa.

Logo aí criava-se uma hierarquia difícil de contornar. Os preferidos inicialmente eram os melhores. Quem ficava para último já sabia que aos olhos dos outros era um jogador débil. Se o número de participantes fosse desemparelhado, o sobrante ficava com a equipa mais frágil, que acabava por jogar com mais um elemento. 

Ir para a baliza era um destino que ninguém desejava. Até porque era estigmatizante. Para defender as redes ia quem não tivesse nenhuma habilidade com a bola ou quem aparentasse que depois de correr meia dúzia de metros ficava com os bofes de fora. A meio do jogo havia a possibilidade do guarda-redes ser trocado, no caso de haver um jogador que necessitasse de descansar.

Depois do ritual da escolha da linha, tinha início a refrega. Árbitros nem vê-los, claro. A marcação de faltas era rara e dava azo a longas discussões, embora quando alguém sangrasse do nariz ou do joelho, ou começasse a chorar, por norma desse sempre falta.

Se o campo não tivesse dimensões, nem marcações exactas, entrava-se também no território do aleatório. Sem linha lateral ou de fundo, geravam-se polémicas sobre se a bola teria ou não saído. Perante a inexistência de traves para a baliza, optava-se por duas pedras, tornando a validação de um golo uma tarefa pouco pacífica, especialmente quando a bola era rematada a meia altura mesmo junto às pedras, ou quando a conclusão era alta.

Naturalmente os guarda-redes mais baixos passavam o tempo a dizer que não tinha sido golo, gritando invariavelmente que a bola tinha ido para fora, quando não a conseguiam alcançar em altura.

Como é evidente não havia fora de jogo. Bem pelo contrário. Havia especialistas em “ficar à mamã”, prostrados ao pé do guarda-redes adversário, esperando que a bola chegasse lá. Os restantes membros não iam muito à bola com estes elementos, acusando-os de não se esforçarem, não ajudando na defesa.

Em caso de grande penalidade, os dois melhores de ambas as equipas enfrentavam-se, um para marcar e o outro para tentar defender, substituindo quem estivesse na baliza nessa altura.

Não havia intervalo, embora se um jogo terminasse aos 6 ou aos 10, as equipas mudassem de campo aos 3 e aos 5. Ao cronómetro era mais complicado porque mesmo depois do final havia sempre alguém da equipa perdedora a dizer que agora é que era a sério e quem marcasse o próximo ganhava tudo, sendo esquecido o resultado até aí, mesmo que estivéssemos perante uma cabazada.

E se alguém da equipa até aí dada como perdedora, por sortilégio, apanhasse a bola a jeito, aproveitando um momento de distracção dos adversários – quando um carro ou um transeunte passavam pelo meio do campo – concluindo uma bujarda indefensável, isso provocava a loucura entre os seus e a zanga dos oponentes que não se conformavam, gritando batota e exigindo a desforra. E o jogo só terminava com toda a gente de rastos.

 

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