Mário Wilson: "Romântico no jogo, romancista nas palavras"

O treinador mais académico da sua geração. E o treinador da Académica. As duas coisas combinaram e resultaram numa figura de grande alcance e dimensão.

Escrever acerca da figura do “Capitão”, como ficou baptizado no futebol, é atraente, motivador e extremamente interessante. Não tive o prazer de o ter como treinador, mas tive o privilégio de o ver como adversário e, mais tarde, o prazer de o conhecer melhor. Lembro-me de olhar para ele em pé à frente do banco de suplentes, visível e tranquilamente a gesticular. Mas lembro-me de um momento muito especial.

Restelo, 1962, treino da selecção de Portugal, preparação para o jogo com Bulgária. Europeu de 1964, Simões tinha 18 anos. Wilson 34/35 ambos convocados e colegas da equipa nacional. Impensável? Talvez! Possível? Aconteceu! Porquê? Alguns defesas centrais lesionados e o senhor Mário Wilson chamado. A coroar uma longa carreira de jogador muito interessante. Curioso, antes de conhecer Wilson como treinador, estive a seu lado como jogador. Confesso que vê-lo como companheiro, foi raro e mais delicado. Posso dizer que como atleta não foi verdadeiramente da minha geração. A diferença de idade não o permitiu. Aquele encontro inesperado traduzia praticamente o fim de carreira do senhor Mário Wilson no futebol e, seguramente, a continuidade do início da minha ao serviço do Benfica e da selecção do país futebolístico de ambos. 

Mas conhecê-lo melhor foi um pouco mais tarde, como treinador da ex-Associação Académica de Coimbra. A sua presença, estilo, forma de estar no comando dos seus rapazes. Gostei imenso de ver o “capitão” a construir aquela equipa da Académica e com aquele futebol. Admirei o estilo, apreciei a forma e deliciei-me com o toque de bola, desfrutando com a qualidade, classe e divertimento de jogadores como os irmãos Victor/Mário Campos, Crispim, Artur Jorge, Manuel António, Ernesto e Rui Rodrigues, um pouco depois Toni e Artur, e o macaísta Rocha, um pouco mais à frente na idade, mas ainda o centro de uma filosofia de jogo do “ toma-lá-dá-cá”. Verdadeiros campeões no relvado, impedidos apenas por um Benfica muito forte, pertencente a uma geração especial, cuja qualidade e saber esteve presente por esse mundo fora.

Presente e regalo foi também defrontar e assistir àquela Académica. Os meninos de Mário Wilson. O futebol moderno, à frente e adiantado no e ao tempo. O pequeno Barcelona daquela época. O famoso tiki-taka de agora, muitos anos antes, treinado e praticado, por ideia criada e enfatizada do senhor Mário Wilson. A cultura dessa abordagem, o atrevimento de a assumir, a confiança de bem-fazer, dentro e fora de portas, levou e arrastou gente estudante e licenciada por todo o país e até fora dele.

No entretanto, o senhor Wilson, atento, vai dando o seu palpite lá para dentro, com a força do grito, naquela voz inconfundível para os seus discípulos. Recordo-me de um jogo dos muitos Benfica-Académica já do desaparecido Estádio da Luz, em que o Mário Wilson, cujo resultado não lhe foi nada favorável, ter dito algo numa atitude personalizada mas rara, considerando a cultura do discurso do futebol português. Tive eu o engenho e a inspiração de marcar um golo a que o mister se referiu de uma forma rara e peculiar. Textualmente disse: “Só para ver o golo do miúdo valeu a pena vir à Luz”. Os jornais no outro dia destacaram a frase do homem do outro lado, culto e educado.

Decorria o ano de 1975, tinha acabado de decidir terminar a minha carreira no meu clube. Coincidência, eu a sair e Mário Wilson a entrar. Recordar, por exemplo, entre muitas outras coisas, a frase célebre do mister ao aceitar o convite do Benfica. “Quem treina o Benfica arrisca-se a ser campeão”.

Confesso que dizer, comentar, escrever, analisar, falar sobre a pessoa e a personalidade do “capitão” é aliciante e gratificante. Carismático, alegre, espontâneo, exuberante e verdadeiro. Grande empreendedor na relação, inteligente na abordagem, motivador nato, jeito de transformar o amargo de boca no doce que nos espera. Psicologicamente, semelhante ao estilo do grande Otto Glória. Eu diria Mário Wilson o Otto português. Gerações parecidas, mas não no comportamento e na relação, com o jogo, com o futebol, e sobretudo com o jogador. Para Wilson tudo era a valer embora num tom descontraído e por vezes até festivo. Amadorismo e profissionalismo misturavam-se sem nunca se conflituarem. Pelo contrário, entrelaçavam-se.

A figura Mário Wilson, homem, jogador e treinador de grande gabarito, inconfundível, respeitador e respeitável. O cidadão moçambicano, virado para a frente, que veio para avançado e terminou a defesa central, com carreira no Sporting e Académica, chegando a internacional representando o país e o futebol português. Pertencente à ala liberal e mais culta africana, adiantado no saber, Mário Wilson deu lições, ensinou, e foi exemplo, em muitas coisas da bola, e fora dela. Romântico no jogo, romancista nas palavras. Civismo assente em cultura intelectual e educacional. O senhor Mário Wilson foi pioneiro, parceiro e conselheiro do bom futebol, mas sobretudo leal às virtudes, que o futebol tem e ensina. Mário Wilson foi tudo isso, mais a simpatia de um humor refinado.

António Simões, ex-jogador de futebol

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