José Rachão pensa em Alepo e sente “tristeza em estado puro”

A liga síria de futebol começou a jogar-se nesta sexta-feira. Antes da guerra começar, houve um treinador português que por lá trabalhou durante alguns meses.

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Uma foto de 2014 que mostra crianças a jogar futebol em Alepo Hosam Katan/Reuters

José Rachão está habituado a ser um nómada. Dono de uma das barbas mais carismáticas do futebol português, Rachão foi jogador de muitos clubes (Benfica, Montijo, Vitória de Setúbal, Académica e Portimonense, entre outros) e treinador de mais ainda. Em 24 anos, Rachão treinou 18 equipas, de Fafe ao Barreiro, passando por Setúbal, onde conquistou pelo Vitória uma Taça de Portugal em 2005. Depois desse triunfo no Jamor, ainda mais um ano no União da Madeira, antes de ser mais um a partir para outro mundo, o do futebol árabe. E por lá andou entre 2006 e 2013, com igual itinerância.

Kuwait, Líbia, Arábia Saudita e Síria estão no passaporte de Rachão. A experiência na Síria foi a mais curta mas é a que ocupa a maior parte da conversa. Rachão foi recebido com flores no aeroporto de Alepo e por lá ficou alguns meses entre 2009 e 2010, antes da guerra. O Al-Ittihad de Alepo era um dos maiores clubes da Síria e, recorda o treinador português, “metia 30 a 40 mil pessoas no estádio para ver um jogo de futebol, e tinha 600 e 700 pessoas a ver um treino”. Agora, Rachão não reconhece nas notícias a “cidade espectacular, linda” das suas memórias. “Nem sei o que sinto quando vejo aquilo tudo destruído. Como é possível haver estas coisas entre seres humanos?”, lamenta. “Tristeza em estado puro.”

Rachão esteve lá “sete ou oito meses” e deixou as fundações para aquela que seria o maior feito da história do clube, a conquista da Taça da Confederação Asiática, a segunda maior competição de clubes do continente. Poucos meses depois dessa final no Kuwait, começou a guerra civil na Síria, durante a qual Alepo se tornou num dos palcos mais sangrentos. O futebol desapareceu temporariamente. As competições estiveram interrompidas em 2010-11, recomeçaram no ano seguinte e não voltou a ter interrupções, mas limitado às áreas controladas pelo regime de Bashar Al-Assad.

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José Rachão esteve "sete ou oito meses" em Alepo DR

Antes da guerra, o futebol estava em franca ascensão no país, ganhando protagonismos nas provas de clubes e de selecções na Ásia. E se a guerra teve os seus efeitos terríveis no país, o futebol não escapou. Muitos jogadores morreram, outros fugiram, houve jogadores a lutar nos dois lados – há muitas histórias nesta guerra que metem futebol, algumas já contadas no Planisférico de 19 de Setembro de 2015 – e o futebol continuou a ser um sinal de uma normalidade que não existe no país e que não irá existir tão cedo.

Tanto é assim que ontem começou mais uma época da primeira liga síria e as poucas imagens divulgadas pela SANA, a agência noticiosa do país, não mostram as bancadas cheias de que fala José Rachão, que descreve o povo sírio como “louco por futebol”. Será mais uma época em que o Al-Jaish de Damasco, a equipa do exército, irá partir como o grande favorito – ganhou quatros dos seis campeonatos desde que a guerra começou. E também estará neste campeonato outra das grandes potências do futebol sírio, o Al-Karamah, de Homs, cidade que chegou a ser controlada pelos opositores de Assad, e cujo estádio, em 2006 palco da final da Liga dos Campeões da Ásia, chegou a ser usado como base dos rebeldes. E o Al-Ittihad, que em árabe significa “união”, também vai jogar.

Rachão não apanhou a guerra na Síria, assim como também já não estava na Líbia quando se iniciou o conflito que iria conduzir ao fim da ditadura de Khadafi. Antes de Alepo, o treinador português viveu em Tripoli e trabalhou no Al-Ittihad da capital líbia, clube que era presidido por um dos filhos do ditador, Muhammad Khadafi. “O meu presidente era o filho dele e sentia-se um bocado essa pressão”, conta. Rachão, que foi campeão líbio e venceu a supertaça em 2009, recorda um episódio em que achou melhor não contrariar o outro filho do presidente, Saadi al-Khadafi, literalmente o dono do futebol líbio – foi presidente da federação, internacional líbio e capitão da selecção.

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Rachão no Jamor após conquistar a Taça de Portugal em 2005 com o Vitória de Setúbal Miguel Madeira

“Um dia estávamos em estágio antes de um jogo importante e, depois do jantar, deixei de ver os jogadores. ‘Onde é que eles andam’, perguntei eu. O Saadi tinha vindo cá e levou os jogadores todos para casa para fazer uma futebolada. Eu ainda quis ir lá, mas aconselharam-me a não ir. Até podia dizer que não, mas ia comprar ali um barulho…”, conta o treinador português, actualmente com 64 anos.

Dos jogadores que teve nos dois Al-Ittihad, Rachão tem informações pouco detalhadas sobre o que lhes aconteceu. Um dos seus pupilos em Alepo, o capitão de equipa que marcava sempre os penáltis, chegou a estar preso, mas conseguiu sobreviver à guerra. Bem pior terá sido o destino de um dos guarda-redes que tinha em Tripoli, que morreu durante a guerra, e Rachão, apesar da insistência, não quer falar das circunstâncias em que tal aconteceu. Assim como também não quer fazer considerações políticas sobre nenhum dos conflitos. “É mais fácil ter uma opinião para quem não conhece. Quem conhece e quem viveu, torna-se mais difícil. Conheço aquelas cidades todas, custa-me ver o país todo destruído. O rasto de destruição e as vidas que se perderam já ninguém vai apagar.”

* Planisférico é uma rubrica semanal sobre histórias de futebol e campeonatos periféricos

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