Jogos Olímpicos em casa? O Rio desconfia, mas vai torcer

Há sete anos, quando ganhou a disputa para organizar as primeiras Olimpíadas da América do Sul, o Rio de Janeiro estava pronto. Hoje, os cariocas não sabem mais.

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Os brasileiros estão um pouco distantes de uns Jogos caros, onde infra-estruturas como a nova linha do metro se atrasaram, e marcados também pela demissão de Dilma TASSO MARCELO/AFP

O carioca tem Olimpíadas no quintal de casa mas quer ir embora do Rio. O carioca mal pode esperar pela festa durante as Olimpíadas. O carioca reclama do exército nas ruas. O carioca sente-se mais seguro com o exército nas ruas. O carioca desdenha da cidade fantasiada só para gringo ver. O carioca torce para ver coreanos caindo na roda de samba e americanos trincando corações de galinha. O carioca está farto de ouvir falar mal das Olimpíadas e do Rio. O carioca está cansado de ver o lado bom em tudo. O carioca está eufórico. O carioca está desmoralizado. O carioca quer carregar a tocha olímpica. O carioca quer apagar a tocha olímpica. O Rio de Janeiro continua lindo. O Rio de Janeiro continua violento.

“A cidade está vivendo um momento muito contraditório. Quando o Rio foi escolhido para ser sede das Olimpíadas, ninguém imaginou que nós estivéssemos na situação em que estamos hoje”, resume Luiz Antonio Simas, historiador carioca que conhece os segredos da cidade como poucos, até porque passa muito tempo na rua, batendo papo e tomando a sua cerveja.

Há sete anos, quando o Rio ganhou a disputa para sede dos primeiros Jogos Olímpicos da América do sul, batendo Chicago, Tóquio e Madrid, milhares de pessoas festejaram na praia de Copacabana. “O Rio está pronto. Os que nos derem esta chance não se arrependerão”, disse o então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em Copenhaga, perante o Comité Olímpico Internacional. Hoje esse discurso emocionado é uma peça de nostalgia.

Sediar as Olimpíadas nunca foi um imperativo desportivo num país sem tradição olímpica. O seu real objectivo era coroar a auto-estima de um Brasil próspero, bafejado pelo boom internacional do valor das commodities (matérias-primas) e pela descoberta de abundantes reservas de petróleo. No seu discurso, Lula não defendeu os Jogos Olímpicos no Rio como quem pede licença ou um favor, mas como quem clama um direito: “Entre as dez maiores economias do mundo, o Brasil é o único país que não sediou os Jogos Olímpicos”. Eternamente adiado, o “país do futuro” estava finalmente prestes a cumprir-se. Lula - que no ano seguinte terminaria o seu segundo mandato como o Presidente brasileiro mais popular de todos os tempos - chorou copiosamente, com lenço e tudo, na assinatura do contrato com o Comité Olímpico Internacional. No Rio foi decretado feriado. Qualquer carioca lembra-se onde estava no dia 2 de Outubro de 2009. Luiz Antonio Simas estava a tomar cerveja com amigos na Rua do Ouvidor, no mesmo lugar onde conversou com o PÚBLICO esta semana. “Vibrámos todos com o anúncio, até os que eram contra os Jogos.”

Hoje, dia de abertura dos Jogos Olímpicos, também é feriado no Rio de Janeiro. O clima nos últimos dias tem sido de expectativa e nervosismo, como se alguma coisa estivesse para acontecer, mas sem que a cidade soubesse exactamente o quê. “Nós contratamos as Olimpíadas na bonança e estamos entregando agora, no meio de uma tempestade”, sintetiza Antonio Engelke, professor de ciência política na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

“Havia em 2009 a ideia de que estávamos vivendo um momento de superação de uma série de problemas históricos e que a gente estava iniciando um ciclo que acabaria colocando o Brasil numa posição de destaque do ponto de vista da geopolítica mundial. De certa maneira, 2016 é um choque. A impressão de que as coisas não funcionaram, de que houve um projecto que se perdeu, de que nós jogámos fora uma oportunidade rara, é muito forte nas pessoas. Eu via muito em 2009 uma euforia de que o país tinha engatado realmente e ia para a frente. E agora vejo uma sensação de desesperança”, diz Luiz Antonio Simas.

Na contagem decrescente para os Jogos, em particular no último ano, o Brasil tornou-se notícia na imprensa internacional pelas piores razões. O país enfrenta a pior crise económica em 30 anos. O maior escândalo de corrupção da história do Brasil não poupou praticamente ninguém, dos mais reputados empresários à classe política. Um Congresso maioritariamente composto por rufias, oportunistas e corruptos afastou uma Presidente democraticamente eleita, Dilma Rousseff. O político que a substituiu, Michel Temer, está inelegível por oito anos, segundo ordem judicial, e corre o risco de ser fortemente vaiado na cerimónia de abertura de hoje, no Maracanã, onde, de resto, irão faltar chefes de Estado estrangeiros que não reconhecem legitimidade no seu governo interino. E Lula? Uma semana antes das Olimpíadas, o ex-Presidente tornou-se arguido por obstrução à justiça no processo Lava-Jato, acusado de ter tentado comprar o silêncio de um antigo director da Petrobras.

A desilusão é colectiva. Ao contrário do que aconteceu com a Copa do Mundo em 2014, não existe um slogan “Não vai ter Olimpíadas” e a probabilidade de contestação social durante os Jogos é uma incógnita.

“A gente está vivendo um certo fastio. Até os que apoiaram o impeachment: aquela sessão [na Câmara dos Deputados] que aprovou a abertura do processo foi um show de horrores”, diz Luiz Antonio Simas. “As coisas que aconteceram foram tão fortes que isso gerou uma certa desmobilização. As pessoas ficaram meio paralisadas. Foi um choque perceber que o sistema estruturalmente está podre.” As manifestações de Junho de 2013, pré-Copa, mobilizaram a sociedade civil contra gastos faraónicos em estádios de futebol, indignada com a falta de investimento em serviços públicos básicos, como transportes, hospitais e escolas. Mas, no fim das contas, teve Copa. O carioca viu os jogos, gritou, torceu.

“A gente teve um período muito potente em 2013, aquela sensação de que as ruas estavam sendo tomadas, de que havia uma certa primavera”, lembra Luiz Antonio Simas. “Mas aquilo se desmanchou, também, com muita rapidez. Se desmanchou com os escândalos todos que aconteceram; se desmanchou com a falta de perspectivas; se desmanchou com o impeachment.”

Complexo de vira-lata

É como se tudo o que tinha para dar errado, desse errado - e não ficasse por aí. O Brasil tornou-se o epicentro de uma epidemia dificilmente diagnosticável que se propagou rapidamente e parece ter causado um aumento exponencial de casos de microcefalia entre recém-nascidos. Além disso, a infecção pelo Zika arrefeceu os ânimos de muitos potenciais turistas que deixaram de viajar para o Brasil e levou vários atletas olímpicos a desistirem de competir no Rio. O Rio construiu um polémico campo de golfe numa área de protecção ambiental, com padrões olímpicos e um custo de 60 milhões de reais (16 milhões de euros), apenas para ver seis golfistas do ranking mundial, incluindo o número um, Jason Day, cancelarem a sua vinda por receio de contaminação.

As obras e infra-estruturas olímpicas custaram muito mais do que o previsto e estenderam-se muito além dos prazos. Algumas foram finalizadas in extremis, como a nova linha do metro, de Ipanema à Barra da Tijuca, que abriu a quatro dias dos Jogos, sem completar todos os testes de segurança recomendados. Promessas olímpicas, como a limpeza da cronicamente poluída Baía de Guanabara, ficaram por cumprir. Favelas e comunidades pobres que se encontravam no caminho dos projectos foram removidas à força. Uma ciclovia inaugurada em Janeiro desabou ao fim de três meses, no mesmo dia em que a tocha olímpica era acesa em Atenas. As primeiras delegações a chegar à Vila dos Atletas recusaram hospedar-se no local, alegando que os apartamentos estavam inabitáveis. Só na sexta-feira passada, a uma semana da abertura dos Jogos, um helicóptero da polícia rodoviária que ia ser usado nos Jogos caiu, um autocarro colidiu com um VLT (o novo comboio de superfície no centro da cidade), o metro anunciou greve durante as Olimpíadas e o prédio dos australianos na Vila dos Atletas sofreu um pequeno incêndio.

“Nós aqui já estamos tão acostumados com essa precariedade que, quando esse tipo de evento acontece, ele não nos salta aos olhos como uma coisa extraordinária. Pelo contrário: isso já foi naturalizado como parte do funcionamento normal da cidade”, diz Antonio Engelke. “O que é esquisitíssimo: a gente não devia naturalizar isso, mas é verdade que há uma certa complacência de boa parte da população, que diz: ‘Mas é sempre assim. O negócio cai mesmo, a via não abre, vocês esperavam o quê? Esperavam que fosse funcionar? Isso aqui é Brasil, isso aqui não é Primeiro Mundo’.”

O brasileiro, garante Luiz Antonio Simas, “é meio bipolar”. “Ou ele acha que nós somos os maiores que ninguém segura, ou então a gente se sente a mosca que fica no cocó do cavalo do bandido.” O escritor Nelson Rodrigues diagnosticou nos anos 1950 o sentimento de inferioridade dos brasileiros em relação ao resto do mundo como um “complexo de vira-lata”, expressão que continua viva no imaginário nacional. “Quando a gente ganhou a Copa do Mundo em 1958 foi como se tivéssemos, em um dia, superado todo o complexo de vira-lata. No dia seguinte o brasileiro acordou com a convicção de que estava fadado a grandes conquistas”, diz Luiz Antonio Simas. Tanto que a marchinha de Carnaval que embalou o título brasileiro nesse ano foi: “A Taça do Mundo é nossa, com brasileiro não há quem possa”. “A gente vai do catastrofismo ao triunfalismo com muita rapidez”, diz o historiador. “Eu vejo gente dizendo que depois das Olimpíadas vai desabar tudo, que a coisa vai ser pior do que foi em Atenas. Existe um certo espírito brasileiro que tem dificuldade em encontrar o meio-termo. Hoje a gente vê que não era para ter aquele triunfalismo todo em 2009, mas também não acho que o mundo vai acabar em 2016.”

No começo de 2015, o escritor carioca João Paulo Cuenca trocou o Rio por São Paulo e saiu atirando: depois de escrever e publicar Descobri que Estava Morto (editado em Portugal pela Caminho), que alguns leram como uma declaração de óbito da cidade em pleno processo de transformação olímpica, ele “não poderia mais morar no Rio de Janeiro”.

“Houve, simplesmente, um esgotamento meu com a cidade e com os valores que ela representava. Uma cidade cuja organização social é muito baseada no jogo de aparências, numa corte falida”, diz. “Esse jogo de aparências, que eu já não suportava mais, está bastante presente nas Olimpíadas: investem-se bilhões para que a cidade pareça melhor do que ela é. Ela não melhora. Mas em alguns lugares ela vai parecer mais limpa. Para quem? Para os turistas, não é para quem mora lá.”

Um grande porre

Luiz Antonio Simas receia que o que vai ser mostrado nos Jogos Olímpicos seja um Rio “maquiado demais”, que “não corresponde realmente à experiência quotidiana da cidade”. “A gente vai ter uma zona de segurança impressionante, vai ter uma ênfase no turismo em alguns pontos que são os mais consagrados. Mas o Rio é uma cidade com imensos problemas. É uma cidade extremamente violenta. Ao contrário do que muita gente imagina, por causa do mito do carioca cordial, o Rio é uma cidade com um historial de exclusão muito pesado. Me parece que, durante as Olimpíadas, o que vai aparecer mais é a cidade cordata dos grandes eventos.” Na Linha Vermelha, a via rápida que liga o aeroporto internacional do Galeão à zona sul do Rio, a colocação de painéis decorativos relacionados com as Olimpíadas poderá distrair os recém-chegados da favela que se esconde por trás. “O Rio de Janeiro é uma cidade propensa a esconder essas coisas. Não é uma cidade que se assuma com tanta sinceridade”, diz Luiz Antonio Simas.

“Na maioria das pessoas com as quais eu converso, há no mínimo uma sensação de desconfiança com o que vai acontecer depois das Olimpíadas. Até porque depois que perdeu a condição de capital do país para Brasília, o Rio de Janeiro busca de certa forma reinventar-se. De uns tempos para cá, toda a construção dessa nova identidade carioca passou pela ideia de balneário de grandes eventos: Jogos Pan-Americanos, Rock in Rio, Copa do Mundo, Olimpíadas… A dúvida que se coloca hoje é o que vai acontecer com o Rio depois que esse ciclo terminar. É o próprio imaginário da cidade que vai ter de ser repensado. Vamos ser o quê, agora? O que me preocupa mais é a ressaca. É imaginar que as Olimpíadas vão ser um grandessíssimo porre [bebedeira]”.

Os cariocas sempre tiveram dificuldade em ouvir críticas sobre a sua cidade sem se ofenderem, diz João Paulo Cuenca. “Só que, nos últimos anos, falar mal do Rio, que é uma coisa que eu sempre fiz, parou de ser uma excepção. Já desde antes da Copa do Mundo, o principal tema das rodas de conversa no rio, além da vida sexual dos outros, era o preço dos alugueis, era como a cidade está cada vez pior, era como a cidade está cada vez mais cara, como a cidade está cada vez mais insuportável. As pessoas estão realmente saindo do Rio de Janeiro. Conheço muitas pessoas que estão desistindo da cidade. Em qualquer mesa de bar que você senta, esse assunto - ir embora - vem. As pessoas não estão felizes onde elas estão.”

Mas Luiz Antonio Simas está disposto a apostar o dinheiro dele em como os cariocas vão embarcar na festa assim que a festa começar. E isso vai ver-se nas ruas, nos morros, nos botecos, nas rodas de samba, no clima da cidade. “O carioca é muito volúvel. Está tendo uma expectativa pré-Jogos que é tensa. Mas eu acho que, quando começarem os Jogos, isso muda. Essa é uma cidade que sabe, por incrível que pareça, fazer evento. A gente faz um réveillon na praia de Copacabana que é inacreditável. O Carnaval é impressionante: ninguém sabe como aquilo funciona e o facto é que dá certo.”

Que os Jogos comecem.

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