“Esta volta ao mundo atrai-te de uma maneira difícil de explicar”

Carolijn Brouwer, a credenciada velejadora holandesa que já viveu em Lisboa, quer aproveitar a mudança nas regras da Volvo Ocean Race para se despedir da modalidade “no topo”. Longe vão os tempos em que tinha “muito medo” do vento forte.

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Eloi Stichelbaut/Dongfeng Race Team

A cerca de dois meses do início da Volvo Ocean Race 2017-18, a preparação das sete equipas que vão participar na regata oceânica mais dura do mundo corre a bons ventos. Na passada quarta-feira terminou a Etapa Zero da competição, que ligou em quatro mangas a ilha de Wight, no Sul de Inglaterra, a Lisboa, colocando pela primeira vez todas as tripulações em competição. Os espanhóis da Mapfre foram os vencedores, mas logo atrás chegou a Dongfeng Race Team.

Liderada pelo consagrado skipper Charles Caudrelier, a equipa franco-chinesa foi a primeira a aceitar o repto da organização em formar equipas mistas e terá na sua tripulação uma das mais reputadas velejadoras europeias: Carolijn Brouwer. Com um currículo de respeito — duas Volvo Ocean Race e três Jogos Olímpicos —, esta holandesa, de 44 anos, que em 1998 foi considerada pela ISAF (federação internacional de vela) a World Sailor of the Year, aprendeu a velejar na lagoa de Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, e viveu cerca de um ano em Lisboa, onde repartia o seu tempo entre a Universidade e a baía de Cascais.

Fluente em seis línguas, Carolijn Brouwer revela ao PÚBLICO, num português perfeito, que escolheu a Dongfeng Race Team por se rever nos princípios de Charles Caudrelier, que o apoio do seu marido, o velejador olímpico australiano Darren Bundock, foi fundamental para voltar atrás na intenção de não competir novamente na Volvo Ocean Race e garante que, se ganhar a regata, chegará a hora de se dedicar à família e parar: “Estarei no topo e serei a mulher mais feliz do mundo.”

Nasceu na Holanda, mas emigrou ainda criança para o Brasil. Como é que começou a velejar?
Na minha família sempre houve uma forte ligação à água, mas os meus pais eram mais remadores do que velejadores. Quando vivíamos no Rio de Janeiro, por uma questão de segurança, inscreveram-me num clube de vela, onde podiam deixar-me durante todo o dia. Assim, lentamente, comecei a velejar. No início, tinha muito medo do vento forte. Quando todos estavam a sair da lagoa de Rodrigo de Freitas porque não havia vento, entrava eu. E para ter uma desculpa para não velejar, passava os dias a polir o barco. Uns três anos depois, houve um “clique” e tudo mudou. Quanto mais vento havia, mais eu gostava.

Quando regressou à Holanda, a sua mãe tentou que jogasse hóquei em campo…
Na Holanda, o hóquei em campo é o desporto mais popular. Há um campo em cada esquina. A minha mãe ofereceu-me uma bicicleta e um stick e, como tinha amigas que jogavam, tornava-se mais simples. Mas um dia, em Fevereiro, em pleno Inverno, demos um passeio para conhecer melhor a zona onde estávamos a viver e eu vi, perto de casa, uns Optimist numa lagoa. Duas semanas depois estava na água com um fato de neoprene, que nunca tinha vestido no Brasil, onde velejava sempre de biquíni.

Viveu em Lisboa quase um ano, em 1992. Nessa altura manteve a ligação à vela?
Após terminar a escola secundária, tinha uns 17 ou 18 anos, não sabia bem que curso queria seguir. Por isso, tirei um ano sabático. Como o Brasil era longe, escolhi Portugal. Era mais perto e também se falava português. Acabei por fazer um curso de Língua Portuguesa. Morava no centro de Lisboa e todos os dias de manhã espreitava pela janela: se o dia estivesse bonito, ia de comboio para Cascais para velejar, se estivesse feio, ia para a universidade.

Quando é que optou por se dedicar a 100% à vela?
Após regressar à Holanda e entrar na universidade, já conciliava a vela com os estudos. Quando acabei, decidi fazer uma experiência e dedicar-me exclusivamente à vela por um ano para ver o que conseguia fazer. Acabei por ganhar o Mundial e o Europeu, e fui considerada pela ISAF a World Sailor of the Year. A partir daí, a vela deixou de ser um hobby e passou a ser uma profissão.

Já participou em duas edições da Volvo Ocean Race, em três Jogos Olímpicos e vários Campeonatos do Mundo. Qual a prova que mais a marcou?
Curiosamente, foi o Mundial de 2007 em Cascais. Competi na classe Tornado e era a única senhora em prova. Acabei em segundo e o Darren [Bundock], que agora é o meu marido e que ganhava quase todos os campeonatos, ficou em quarto lugar. Naquela época, uma equipa mista numa classe open era raro. Isso marcou-me muito e foi um sinal de que era possível competir com os homens.

Após participar na Volvo Ocean Race 2014-15 com a Team SCA, que tinha uma tripulação formada exclusivamente por mulheres, chegou a anunciar que essa seria a sua última participação na prova. O que é que a fez mudar de opinião?Muito simples: eu quero ganhar. E com a Dongfeng Race Team tenho essa possibilidade. Como tenho família e o meu filho está na idade de ir para a escola, achei que seria uma boa altura para parar e cheguei a pensar que teria sido a última participação. Mas depois, mudaram as regras e surgiram as equipas mistas, o que para mim era um sonho.

Teve vários convites, mas optou pela Dongfeng Race Team. Porquê?
A Dongfeng começou a preparação muito cedo, são muito profissionais e na última edição mostraram que tinham um enorme potencial. Era, por isso, um grande desafio. E agora já não estou a velejar contra o Charles [Caudrelier]. Estou a velejar com ele numa equipa… O mais lógico seria estar na AzkoNobel, que é uma equipa holandesa, e falei muito com o Simeon [Tienpont]. Mas se eu tivesse a oportunidade de ser skipper numa equipa da Volvo Ocean Race, teria os meus critérios e as minhas prioridades. E eu vejo o Charles a ter esses mesmos critérios e prioridades.

Quais são esses critérios e prioridades em que se revê?
É claro que o Charles quer ter bons velejadores, mas dá prioridade a ter um grupo ao seu lado com quem pode enfrentar todas as adversidades. Quando tudo está bem, o ambiente é bom e estão todos felizes. Mas nos maus momentos, quando tudo corre mal, é que se percebe que tipo de equipa tens. Isso para o Charles é muito importante e para mim também. A equipa da Dongfeng agora é a minha família e num desafio enorme como este, em que são precisos muitos sacrifícios, é preciso ter algo que nos conforte. Aí o ambiente dentro da equipa é fundamental.

A tripulação da Dongfeng tem velejadores de cinco nacionalidades diferentes, com culturas muito distintas. Não deve ter sido fácil formar esse espírito de equipa de que fala…
Dou-lhe um exemplo: o que o Charles conseguiu com os velejadores chineses num espaço de tempo tão curto, cerca de três anos, é incrível. Eles não sabiam velejar muito bem. Hoje, já não se limitam a velejar connosco. Já assumem o controlo em tudo. Têm iniciativa. Se o Charles consegue que os chineses atinjam este nível, consegue com qualquer um.

Tem experiência em regatas oceânicas. Sente medo antes de começar uma competição tão dura como a Volvo Ocean Race?
Se tivesse medo, não podia estar aqui. Mas no meio do Pacífico-Sul, onde se sabe que as condições são extremas, há momentos de tensão. Mas aí o tal espírito de equipa é essencial e transforma-te como pessoa. Não só porque te ajudam e apoiam, mas porque te dão confiança e te fazem crescer. E aí não se pode fraquejar. Tens que estar bem para não decepcionar a equipa. Para ganhares, tens que saber lidar com essa pressão e tensão. Tens que conseguir superar-te.

O seu filho Kyle tem seis anos, uma idade complicada, e a mãe vai estar muito tempo fora…
Ele já está habituado, porque já fez uma Volvo Ocean Race. Mas ele vai estar à minha espera em todas as chegadas. Se não fosse assim, eu não conseguiria participar. Tenho o apoio da escola dele, que permite que esteja ausente duas semanas na altura de cada paragem. Para ele já não é novidade um dia estar em França, no outro na Holanda e no seguinte na Austrália, onde tem a sua vida normal. Tenho uma boa amiga que será a ama dele. Sei que está em boas mãos.

Vai ser mais difícil para ele ou para si?
Para ele vai ser fácil, para mim não. Mas sempre que eu parto ou chego, encontro um sorriso na cara dele. Se houvesse lágrimas na despedida, seria muito mais difícil fazer isto. Quando o Charles me fez o convite, eu hesitei, mas o Darrell disse-me que os meus olhos brilham sempre que se fala na Volvo Ocean Race. Quase que me obrigou a participar. Se eu ? não entrasse, ele disse que ?seria horrível continuar a viver comigo [risos].

O Kyle já gosta de vela?
Não, odeia. Gosta de ténis e de futebol. Tudo o que tenha bolas. Vela é o trabalho da mãe e não se interessa nada por barcos.

Se a Dongfeng ganhar, será o ponto final para si?
Terá que ser. Se a Dongfeng ganhar, estarei no topo e serei a mulher mais feliz do mundo. É aí que tenho que parar. O meu sonho estará atingido e será a altura de passar a minha experiência para as gerações mais novas. Mas a Volvo Ocean Race não se explica. O Stu [Bannatyne] está a voltar pela oitava vez... Esta volta ao mundo atrai-te de uma maneira difícil de explicar. Não sei explicar porquê. Apenas acontece…     

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