E se fosse a Alemanha?

Devíamos estar a celebrar uma final, emocionante, entre duas equipas que espelham bem a multiculturalidade europeia, com atletas com uma enorme diversidade de pertenças.

Todos vibramos com a vitória da selecção no Europeu de França, com a capacidade de luta dos jogadores e com o herói do desporto moderno que é Cristiano Ronaldo. E não se diga com desprezo que é só futebol. Não é de hoje que o desporto é uma actividade importante das sociedades e os atletas são imortalizados pelos seus feitos, como fez Míron, escultor grego do século V a.C., com o seu célebre Discóbolo.

Como momento de exaltação nacional, é facilmente usado para manifestações nacionalistas, e o adversário de um dia transforma-se em inimigo eterno. Lembro-me da capa de um jornal desportivo do antigamente, que nas vésperas de um Portugal-Espanha apelava, em letras garrafais, ao espirito de Aljubarrota. Mas por vezes o feitiço vira-se contra o feiticeiro, como quando Hitler teve que engolir a vitória de Jesse Owens contra um atleta ariano, erigido em símbolo da superioridade rácica.

A ditadura portuguesa abusou do futebol para efeitos de propaganda, como naquele jogo de 1937, contra a Espanha falangista, em que três jogadores portugueses (do Belenenses), Artur Quaresma, Mariano Amaro e José Simões, se recusaram a fazer a saudação fascista, perante uma tribuna onde pontificavam Salazar e Franco.

Vem tudo isto a prepósito de uma série de comentários publicados nos últimos dias, nomeadamente nas redes sociais, sobre o jogo Portugal-França, visto por alguns como a vitória das concierges de Paris sobre o chauvinismo francês. Como se as concierges de Paris, mulheres, muitas delas, poderosas e influentes, se revissem numa visão de uma profissão indigna e rebaixante.

Esses comentários revelam um desconhecimento profundo dos portugueses em França e da sua relação com o país que os recebeu, feitos muitas vezes por quem dos emigrantes e dos luso-descendentes tem a imagem dos programas televisivos para emigrantes, ou seja, a dos estereótipos.

Vivi em França nos anos 60 e 70, como exilado político, e acompanhei de perto a chegada dos portugueses a salto. Creio que muitos, como eu, estão antes de tudo reconhecidos a França, que deu abrigo aos que fugiam à guerra e à perseguição politica, e nos deixou, livremente, organizar a oposição à ditadura e à guerra colonial. Foi em Paris que viveu exilado Mário Soares, por exemplo.

Esse reconhecimento estende-se às centenas de milhares de portugueses que fugiram à fome e à miséria, que depois de viverem em bairros de lata encontraram casas nos bairros de baixa renda (HLMs), que chegaram a França analfabetos e aqui puderam educar os seus filhos, que aqui conheceram o valor da liberdade, da justiça social e da democracia – nomeadamente as mulheres, que eram vítimas de um sistema patriarcal retrógrado.

Numa França em pleno crescimento económico (entre 1950 e 1974, o país cresceu a uma média de 5% ao ano), a mão-de-obra dos emigrantes portugueses foi um contributo essencial, nomeadamente na área da construção civil. E se é verdade que os portugueses foram muitas vezes vítimas de exploração abusiva da sua condição de emigrantes, também não foram raras as vezes em que encontraram protecção no sistema sindical de um país democrático.

A imagem de Portugal ficou marcado pela vaga de emigrantes dos anos 60, mas essa imagem foi-se alterando, primeiro com o entusiasmo com que foi acompanhado a revolução de Abril de 1974, depois com a adesão às comunidades europeias e hoje com o turismo , mas também pela acção dos luso-descendentes.

Hoje, os portugueses que chegaram a França nos anos 60 estão, na sua maioria, reformados, e os seus filhos têm a nacionalidade francesa. Muitos deles perderam os complexos de serem portugueses, de terem raízes num país de analfabetos e sem segurança social, e reconhecem com orgulho o país democrático em que Portugal se tornou.

Os luso-descendentes não precisam da vitória da selecção para saírem de uma “posição de inferioridade”, como tem sido cantado por alguns. São hoje cidadãos franceses activos que assumem responsabilidades nos mais diversos sectores da sociedade francesa; são políticos eleitos, investigadores, professores universitários, financeiros, pedreiros, concierges e até mesmo futebolistas – três na equipa portuguesa e a vedeta da selecção francesa e melhor jogador do Euro 2016, Antoine Griezmann, neto de portugueses de Paços de Ferreira.

Não foram poucos os que afirmaram ter visto o jogo divididos entre as suas duas referências nacionais, mas é óbvio que numa final sem Portugal, a maioria teria vibrado com a equipa de França.

O que falta a essa comunidade, segundo Hermano Sanches, luso-francês vereador da Câmara de Paris (ver entrevista ao PÚBLICO de 11/07/2016) é maior capacidade de influência política, para, por exemplo, garantirem a generalização do ensino de português nas escolas e liceus, o que só se consegue com sentido de comunidade e participação acrescida nos processos eleitorais, em França, pugnando pelo reforço das relações entre as instituições portuguesas e francesas.

Nada disto significa que não exista racismo em França. O crescimento da extrema-direita, a sua influência crescente, a alta probabilidade de Marine Le Pen chegar à segunda volta das próximas eleições presidenciais, são sinais inquietantes de um racismo, antes de tudo antimuçulmano, que infelizmente não vemos só em França – é um problema europeu, que ameaça a existência da própria União. As cenas de violência entre claques como a polaca, a russa, a húngara e a inglesa são um alerta para os perigos do nacionalismo.

Por todas estas razões, não tem qualquer sentido alimentar sentimentos antifranceses como fazem alguns. Não é com sentimentos destes que salvamos a União e que encontramos em França os parceiros necessários para uma União mais solidária e mais democrática.

Qual teria sido o teor dos comentários nacionalistas se a final tivesse sido contra a Alemanha da política da austeridade? Nem é bom pensar!

Devíamos estar a celebrar uma final, emocionante, entre duas equipas que espelham bem a multiculturalidade europeia, com atletas com uma enorme diversidade de pertenças, em que o golo decisivo de Portugal foi marcado por um atleta que emigrou da Guiné-Bissau.

Não era, apesar dos hinos, dos gritos guerreiros e dos pendões, uma guerra, era uma prova desportiva ao mais alto nível. Ganhou Portugal e ainda bem!

 

Investigador

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