“Disse-me que um dia iria jogar no Real Madrid e eu desatei-me a rir”

Miguel Paixão conheceu Cristiano Ronaldo quando a estrela planetária tinha apenas 14 anos e progredia na formação do Sporting. Dividiram um quarto modesto numa residencial lisboeta e partilharam sonhos numa amizade que sobreviveu até hoje.

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"Não sou um jogador que vive na ilusão, como alguns" Vera Moutinho

Ao contrário de CR7, a carreira futebolística de Miguel Paixão nunca conheceu grandes palcos. Jogou com Cristiano nos juvenis e nos juniores e na equipa B do Sporting, mas acabou por ser dispensado pelo clube de Alvalade. Progrediu então em clubes de menor dimensão, com uma única e efémera experiência na I Liga, ao serviço da União de Leiria. Aos 30 anos, é avançado do Oriental, do segundo escalão profissional, e recordou ao PÚBLICO alguns episódios da sua relação com o “melhor do mundo”.

Quando conheceu o Cristiano Ronaldo?
Quando cheguei ao Sporting, estava a fazer 15 anos e vinha de Monte Gordo. O Ronaldo já lá estava e foi através do Fábio Ferreira, um outro jovem de Monte Gordo, que era amigo dele, que o conheci. Ficámos primeiro a residir no antigo Estádio de Alvalade, nuns quartos por baixo da bancada nova, e depois fomos para a Residencial Dom José, na Rua Duque de Loulé, perto do Marquês do Pombal, onde dividimos um quarto. Eramos dois adolescentes sozinhos em Lisboa e íamos os dois juntos para a escola, no Lumiar.

Como é que ele se comportava na escola?
As pessoas têm uma ideia errada dele, por ter deixado cedo os estudos. Mas eu, que vivi com ele, tive oportunidade de confirmar que ele sempre gostou de aprender e era aplicado. Queria acabar os estudos, mas acabou por subir cedo à equipa principal [estreou-se com 17 anos] e ficou com menos tempo para conciliar as duas coisas.

Perderam contacto quando ele subiu à equipa sénior?
Não, ele sempre que podia ia visitar os amigos. Mesmo quando estava em estágio, passava sempre do lado profissional para o lado da formação para ir jogar pingue-pongue, matraquilhos ou snooker.

Que tal era ele como jogador na formação?
Sempre foi um jogador ambicioso e com uma autoconfiança muito elevada. Em termos futebolísticos reparei logo quando cheguei que era um jogador que sobressaía, acima da média. Jogava sempre um ano acima da sua categoria. Queria sempre ser o melhor. Além do talento, trabalhava imenso e não digo isso por ser amigo dele. É a verdade, eu via. Trabalhava sempre mais do que os outros, fazia treinos extra e procurava sempre aperfeiçoar os pormenores, tanto em termos técnicos como físicos. Ele era um jogador magro e sempre teve em mente determinados objectivos, como, por exemplo, ter de ganhar massa muscular, sem perder velocidade. Tinha muito talento e ambição, mas trabalhou muito e fez muitos sacrifícios.

Por exemplo?
Quando não estávamos a treinar e íamos para a residência onde morávamos, ele punha pesos nos pés para aumentar a velocidade quando os tirasse. Quando estávamos em Alvalade, ele queria ir para o pavilhão para treinar a rapidez. Na sua cabeça, era claro que queria ser jogador profissional e não se contentava com pouco. Sempre sonhou muito alto.

Já sonhava com o Real Madrid?
Sim. Uma vez, estávamos a ver um jogo do Real Madrid na televisão e ele disse-me: “Ó Paixão, um dia eu vou jogar no Real Madrid ao lado do Ronaldo [o brasileiro que na altura estava na equipa merengue].” Na altura, estávamos nos juniores e, claro, eu desatei-me a rir. Afinal, passados uns anos…

Na altura, copiava o estilo de alguma estrela do futebol?
Quando era mais novo, como qualquer adolescente, se via algum drible na televisão, ou alguma boa jogada, queria reproduzir, mas, a partir do momento em que subiu à equipa sénior e começou a ser profissional, conseguiu construir um estilo próprio, em que não se colou a ninguém. Na formação, ele via o [Thierry] Henry e dizia: “Tenho de ser tão ou mais rápido que aquele”; o Ronaldo [brasileiro] fazia uma finta e ele ia fazer a mesma jogada. Depois construiu a sua própria imagem.

Como era jogar com ele?
Estive com ele nos juvenis, nos juniores e na equipa B durante alguns jogos. Na formação, quando jogávamos com ele as coisas ficavam sempre mais facilitadas. Fazia a diferença, mas também havia outros jogadores com valor. O Fábio Ferreira, por exemplo, também tinha um grande potencial, mas o trabalho e a mentalidade fizeram muita diferença na evolução do Cristiano. A partir do momento que subiu de juvenil para júnior deu um esticão enorme e começou a construir o fenómeno que é hoje. Como se diz no futebol, “começou a rebentar com eles todos”.

Ele sempre foi muito competitivo em tudo?
[Risos] Sim. Lembro-me que quando eramos miúdos e estávamos na formação, íamos para o jardim do Campo Grande. Ele estava sempre a dizer que era o mais rápido e queria fazer corridas comigo e com o Semedo [outro antigo jovem da formação “leonina”, que hoje representa os ingleses do Sheffield Wednesday]. Nós tínhamos de correr primeiro um contra o outro e quem ganhasse corria a “final” com o Cristiano. O Semedo era mais lento, mas não admitia isso e dizia que era o mais rápido. Quando corria contra o Ronaldo partia sempre primeiro e quando via que ia ser ultrapassado desistia e dizia: “Agora acabou, já sabes que sou mais rápido do que tu e não quero correr mais”. O Ronaldo ficava muito irritado com ele [risos]. O Cristiano sempre foi muito competitivo, fosse no pingue-pongue, que jogávamos na nave de Alvalade, ou no salão de jogos. Queria ganhar, ganhar, ganhar. Não gostava de perder a nada, no treino, a brincar ou numa pelada. Onde entra é o mais competitivo possível.

A vossa amizade manteve-se depois de ele sair de Portugal?
Sim, mantivemos sempre contacto. Quando ele foi para Inglaterra [para o Manchester United] fui visitá-lo e sempre que regressava estávamos juntos. Foi uma amizade que foi crescendo e se manteve. Passei com ele as suas primeiras férias, depois do Euro 2004. Convidou-me a mim e a alguns outros amigos para irmos a Cuba. Nunca deixou de falar com os amigos, mesmo tendo chegado ao topo. Nunca se esquece de ninguém. Convidou-me para ir assistir à cerimónia no Palácio de Belém [onde Ronaldo foi condecorado no ano passado com o grau de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique]. Acho que ele tem por mim uma grande amizade e uma grande consideração e é o que eu também sinto em relação a ele.

Quando o visitou em Manchester como é que ele se estava a ambientar a um novo país?
No início foi complicado, era um miúdo com 18 anos. Não falava inglês e não gostava do clima. Quando falavam com ele dentro de campo nem sempre entendia, mas, a brincar, dizia-me que se não conseguisse falar com a boca falava com os pés. Mas depois aprendeu inglês e passou a sentir-se em casa. Também o ajudou a mãe ter ido morar com ele e também tinha lá o cunhado. Foram importantes para o seu crescimento e por é por isso que ele lhes agradece agora. Ele sempre foi muito ligado à família e sentiu muito a sua falta quando veio da Madeira para o Sporting. Mas ele dizia que essas coisas o tornaram mais forte e lhe permitiram crescer mais rapidamente.

Ficou surpreendido com o incrível sucesso do Ronaldo no futebol?
Ele próprio terá ficado surpreendido com aquilo que foi acontecendo na sua carreira. Quando chegou ao Manchester United, estavam lá jogadores incríveis, como o Ryan Giggs, o Paul Scholes ou o Van Nistelrooy, e, se calhar, nesse momento não lhe passava pela cabeça que iria ser o melhor do mundo. Mas o tempo foi passando e as pessoas que estavam em seu redor iam dizendo que ele iria ser um “Bola de Ouro” dentro de algum tempo. Ele foi trabalhando até se mentalizar que iria conseguir. Quando conheci o Cristiano e quando ele foi para o Manchester, era mais um driblador, um jogador que levantava o público com as suas jogadas e que fazia golos, mas não eram tão frequentes. A partir de determinada altura ficou obcecado pelo golo. É que já ninguém se lembra das várias fintas que ele fazia por jogo, mas dos golos toda a gente se vai lembrar para sempre. Tornou-se muito mais objectivo e a querer ficar na história. Foi evoluindo sempre, com muito trabalho e chegou ao topo do mundo.

E a sua carreira? Como está correr esta fase agora ao serviço do Oriental (II Liga)?
Já aqui tinha estado há quatro anos. Foi uma oportunidade que a equipa técnica e o clube me deram de jogar numa competição profissional, a qual agradeço. Está a correr bem, fizemos boas campanhas na Taça de Portugal e na Taça da Liga e estamos com quatro vitórias consecutivas fora de casa no campeonato.

O que aconteceu depois de ter saído do Sporting [em 2003]?
Na altura, acabaram com a equipa B, fui dispensado e custou-me muito. Ainda tive as minhas oportunidades, mas não tive cabeça. Era muito jovem, estava sempre tudo bem para mim. Não me posso queixar de falta de oportunidades, mas de não as ter sabido aproveitar. Não fui o profissional que deveria ter sido nos momentos certos.

Ainda teve uma oportunidade na Liga principal…
Sim, ao serviço da União de Leiria [2008-10], mas tive a infelicidade de sofrer uma lesão num tendão. Quando chegou o mister Lito Vidigal para treinar a equipa, acabei por ser emprestado ao Fátima. Não voltei a ter oportunidades na Liga principal, mas tive hipóteses de ir jogar para o estrangeiro. Um dos meus erros foi não ter aproveitado, sentia-me bem aqui e acabei por não ir para fora. Dizia sempre que era para o ano, mas eles foram passando…

O que aconteceu?
Era um jovem fora de casa, com excesso de liberdade. Se fosse hoje em dia, que sou casado e tenho um filho, seria diferente. A pessoa cresce e se calhar não tinha cometido alguns erros que cometi. Agora, estou a tirar uma formação em scouting, de observação [para encontrar jovens talentos]. É que infelizmente não tive estudos, cheguei aos 30 anos e penso: 'Agora o que vou fazer'...

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