Arte no ténis e ténis na arte

A história do Torneio de Roland Garros nos últimos 37 anos também se conta através dos cartazes oficiais, numa aliança entre a arte contemporânea e o ténis. O torneio francês do Grand Slam começa este domingo.

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1981 Eduardo Arroyo

Desde 1980 que um artista é convidado a criar uma imagem original para o Torneio de Roland Garros, uma das quatro mais importantes provas de ténis, que se realiza anualmente em Paris. Ao longo de quase 40 anos, muitos têm sido os artistas que transmitiram a sua visão de um evento e de uma modalidade, através das mais variadíssimas formas plásticas e universos criativos. 

O torneio teve a sua primeira edição internacional, em 1925, quando ainda se realizava no Racing Club de France, em Paris. Três anos mais tarde, a prova radicou-se no Bosque de Bolonha, no novíssimo estádio Roland Garros – em homenagem ao aviador francês, autor da primeira travessia aérea do Mediterrâneo, em 1913, e abatido, cinco anos mais tarde, durante a I Grande Guerra – erguido igualmente para acolher as eliminatórias da Taça Davis, a competição disputada anualmente por países. 

Em 1978, durante a fase de reconstrução e modernização do estádio, percebeu-se que seria necessária uma identidade visual. Daniel Lelong, director da galeria com o seu nome e apaixonado pela modalidade, propôs à Federação Francesa de Ténis (FFT) encomendar a concepção do cartaz oficial a um artista contemporâneo de renome. O artista, escolhido pelo próprio galerista, teria carta-branca para criar uma imagem baseada nas suas inspirações e técnicas, tendo apenas de obedecer ao formato – “imagem ao alto” – e incluir o nome do torneio e o respectivo ano. A FFT reserva-se o direito de recusar a proposta caso esta infrinja convicções políticas ou religiosas ou contenha elementos que possam ser adversos para a reputação do torneio.

“O cartaz sempre teve a capacidade de imortalizar no tempo um acontecimento. Muito rapidamente, somos transportados para o imaginário, por exemplo, dos filmes, em que a peça ‘cartaz’ era claramente extensão do grande ecrã e que nos remetia para o imaginário da interpretação do artista/designer. Porque na verdade falávamos do valor acrescentado de não ter apenas o desmembramento de um ‘frame’ do filme ou de uma qualquer apropriação da figura do actor/actriz principal. Façamos a ponte com a realidade actual: quem consegue descrever de memória algum cartaz que tenha visto ultimamente? Foram encontradas ‘soluções matemáticas’ que anulam o imaginário e reduzem o cartaz a uma peça de comunicação de curta sobrevivência”, frisa Sérgio Alves, designer do multi-premiado Atelier d'Alves (vencedor do Prémio Sebastião Rodrigues, em 2015, e de três Gold Graphis Awards, entre outros) e que aceitou o desafio do P2 para comentar estas quase quatro décadas de posters.

“Mas há Roland Garros! Desde o primeiro ao último cartazes passaram 37 anos e existe um equilíbrio visual que não se consegue equiparar a qualquer solução matemática. Porque equilíbro não é sinónimo de uniformidade. Porque, se olharmos para esta fórmula de ‘cada ano cada artista, cada cartista sua interpretação’, ocorrer-nos-ia pensar que não haveria forma de encontrar uma ‘identidade’ no meio desta equação. Porque cada vez mais se apela à identidade consistente e uniforme, à identidade que se baliza e se protege da ‘interpretação’ para garantir que o evento é reconhecível e nada confundível. Pois bem, o inesperado também faz identidade e Roland Garros, pela mão de Daniel Lelong, percebeu que esta imortalização do torneio a cada ano poderia ser construída por diversas mãos e visões e, acima de tudo, diversas interpretações do que é o ténis”, explica o artista português.

Valerio Adami, um pioneiro vanguardista

A primeira escolha recaiu em Valerio Adami, pintor italiano, influenciado pela Pop Art, e pelo estilo pós-impressionista do final do século XIX, caracterizado pelas formas planas separadas por contornos pretos. O cartaz, apresentado na edição de 1980, representa, num rasgo, a essência do ténis, através da combinação da mão, raqueta e bola, representando três tempos da acção: o lançar da bola, o início do gesto e o impacto. “Curiosamente, e claro, comparativamente com os outros cartazes, este não é do seu tempo. Tanto pelo tipo de desenho como pelo seu traço (que nos remete para uma técnica mais vectorial), eu diria que seria facilmente rotulável como um cartaz dos anos 2000”, analisa Sérgio Alves.

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1980 Valerio Adami

A influência da Pop Art manteve-se em 1981, com Eduardo Arroyo a escolher a icónica cabeleira de Bjorn Borg – na altura, sinónimo de ténis para muitos. é, até à data, o único cartaz em que é feita uma referência directa a um determinado tenista. O artista espanhol desenhou uma cabeleira loura, com uma fita na cabeça com as cores da França, que remete para o “rei” sueco que, nesse ano, venceu pela sexta e última vez o torneio francês. 

O belga Jean-Michel Folon, pintor, ilustrador e escultor, optou em 1982 por um traço mais geométrico e, no ano seguinte, o pintor sérvio Vladimir Velickovic, definiu um jogador de ténis como um atleta hercúleo.

Gilles Aillaud, pintor e cenógrafo francês, foi o primeiro a retratar o público de Roland Garros. Fiel ao estilo de Figuração Narrativa, Aillaud traduziu bem o ambiente do evento, resumindo-o a uma miríade de pontos no cartaz de 1984. “É interessante o uso do espaço negativo em que são os próprios espectadores a fazer o estádio e em que a perspectiva é usada de certa forma para acentuar o ambiente envolvente e não a partida de ténis em si”, nota Sérgio Alves.

Seguiram-se Jacques Monory (1985) – que se apoiou no universo fotográfico e cinematográfico, criando um ambiente muito típico dos anos 80 –, Jirí Kolár (1986), Gérard Titus-Carmel (1987), Pierre Alechinsky (1988) e Nicola de Maria (1989). 

Fiel ao seu tema principal, a figura feminina, o francês Claude Garache retratou em 1990, e pela primeira vez na história do Roland Garros, uma mulher a jogar ténis. “A mulher é para mim uma fonte de inspiração, em geral e em todas as suas acções. Esta aliança da força com a feminilidade incarnada pelas jogadoras, subjuga-me. Elas são soberbas em acção, verdadeiramente belas. O desporto é uma das formas privilegiadas de expressão da feminilidade”, justificou na altura Garache. 

A excepção Miró 

Um dos principais representantes do movimento surrealista, Joan Miró, foi o único que, pela mais infeliz das razões, fugiu à regra de criar uma obra original. Seduzido desde logo pelo convite, o artista catalão prometeu desenhar um cartaz para o torneio. Miró viria a morrer no dia 25 de Dezembro de 1983. Foram os seus netos que retomaram a “encomenda” e descobriram, no meio das suas obras, uma gravura que servia o objectivo, pertencente a uma série de trabalhos do pintor realizada dez anos antes. Curiosamente, um desenho em que está bem patente uma das maiores influências do artista, o país natal, num prenúncio do domínio espanhol no torneio nessa década. 

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1991 Joan Miró

Em 1992, o artista multimédia alemão, Jan Voss retratou uma bola de ténis, raqueta e a rede no seu estilo marcante, de criar ordem no meio do caos.

Jean le Gac, um dos representantes do Neofigurativismo, combinou carvão e pastel, para desenhar o cartaz de 1993. O seu jogador ficcional, nas suas roupas brancas e raqueta de madeira, foi inspirado numa fotografia publicada na revista Vue, de 1930, do tenista norte-americano John Van Ryn, durante uma pausa do jogo. 

Em contraste, Ernest Pignon-Ernest optou no ano seguinte por uma imagem mais clássica, de uma mão aberta após o lançamento da bola.

O cartaz de 1995 é, pela primeira vez, obra de um escultor, Donald Lipski. Jean-Michel Meurice desenhou o poster de 1996 e
Antonio Saura, um dos mais famosos pintores do pós-guerra a emergir em Espanha criou, em 1997, um desenho com personagens de inspiração surrealista e cores vivas, na linha de Picasso e Miró. Foi um dos seus últimos trabalhos, um ano antes da sua morte.

Em 1998, Hervé Télémaque, artista francês nascido no Haiti, criou uma colagem com objectos do dia-a-dia. No ano seguinte, Antonio Seguí deixou bem vincado o seu traço irónico e humorístico. Antoni Tàpies explorou a variedade de estilos artísticos no cartaz de 2000, inspirado na caligrafia oriental e imagens abstractas – uma obra realizada em menos de dois segundos! O norte-americano nascido na Irlanda, Sean Scully desenhou em 2001 painéis inspirados nas paisagens da Irlanda natal. E Arman realizou o de 2002. 

A primeira mulher 

Em 2003 caberia a Jane Hammond a encomenda de desenhar o cartaz do torneio de Roland Garros. “É o único cartaz que assume uma forma tridimensional ao ponto de ter sombra em si mesmo. Isso é claramente acentuado no uso de pedaços de papel sobre uma base de argila, mas que depois tem um grande contraponto na solução de silhuetas humanas que nos remetem para um universo muito mais digital”, explica Sérgio Alves.

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2007 Kate Shepherd

O cartaz de 2004 tem ritmo e pulsação ou não fosse o seu autor, o suíço Daniel Humair, baterista e compositor de jazz. “A soma de várias partes para retratar um evento, que claramente não se faz apenas de dois jogadores, é uma aproximação transversal a vários artistas a fazer um pouco lembrar Picasso. Interessante perceber como estes cartazes de 1992, 1998 e 2004 são os que mais uso fazem da cor e da forma como a simetria de alguns elementos ocupam o formato rectangular do próprio cartaz”, assinala o designer do Atelier d'Alves.

Talvez esquecendo-se que o torneio se desenrola na Primavera, o escultor espanhol Jaume Plensa propôs em 2005 uma obra sombria, saturada de palavras retiradas do Quarto Livro de Rabelais, autor francês que, em tempos, se interessou pelo “Jeu de Paume”, o antecessor do ténis. “O preto é uma côr nobre para os mediterrânicos, é uma homenagem à luz do Norte. Sempre achei muito belo o céu nublado, pesado e baixo de Paris”, justificou na altura o autor daquele que recebeu, rapidamente, o título de cartaz mais sinistro. 

Günther Förg pintou o cartaz de 2006 e, no ano seguinte, Kate Shepherd foi a segunda mulher escolhida. Shepherd usou painéis de madeira que cobriu com variantes de vermelho. “Tipograficamente é interessante perceber como quase nenhum artista foi influenciado pelo desenvolvimento tecnológico de meios de impressão, mas acima de tudo pelo desenho das próprias tipografias. Seria de esperar ver um leque de tipografias (sans serifs, serif, grotescas, avant-garde) mais alargado e que muitas vezes são retratos do passar de épocas, movimentos e das próprias culturas de cada país. No sentido oposto, a caligrafia acaba por ser transversal a quase todos os cartazes, numa conotação ainda mais pessoal dos respectivos autores. Muitas vezes, como por exemplo em 1993, 2001 e 2007, Roland Garros é quase tratado como se fosse uma assinatura da própria obra”, salienta o designer Sérgio Alves.

O austríaco Arnulf Rainer (2008), o alemão Konrad Klapheck (2009), a indiana, nascida no Paquistão, Nalini Malani (2010) , o camaronês Barthélémy Toguo (2011) assinaram os posters seguintes. O cartaz de 2012, da autoria de Hervé Di Rosa, provocou reacções contraditórias, só esquecidas quando foi revelado o cartaz do ano seguinte, de David Nash. 

Em 2014, a escolha recaiu no pintor espanhol Juan Uslé e, em 2015, houve uma estreia: Du Zhenjun foi o primeiro artista chinês a desenhar o cartaz. “Esta obra é uma mistura de arte asiática, já que esta linha traçada no centro pertence à estática zen”, explicou Du Zhenjun. 

No ano passado, Marc Desgrandchamps criou o cartaz oficial com base em fotos de jogadoras de ténis dos anos 1960. E, este ano, a honra de se juntar à ilustre lista de artistas coube ao brasileiro Vik Muniz. Seduzido por Paris e pela cor do court, o compatriota de Gustavo Kuerten, tri-campeão de Roland Garros (1997, 2000 e 2001) e grande responsável pela popularidade do ténis no Brasil – colocou-se na posição do adversário para desenhar uma figura de pernas para o ar.

“Seria de esperar que a partir de 2000 os cartazes naturalmente se tornassem mais digitais, com recurso a técnicas baseadas na evolução da tecnologia. Seria de esperar que as necessidades de adaptar uma imagem a vários suportes de comunicação (televisão, redes sociais, etc.) condicionassem as técnicas de produção/ reprodução. Seria de esperar que as marcas se sobrepusessem à própria temática do evento… nada disso aconteceu. E Roland Garros continua com os seus cartazes, mais ou menos óbvios, mas que assumem um papel de imortalizar o evento para quem lá esteve, acima de tudo para quem não lá esteve. Porque se um cartaz tem capacidade, é a de nos fazer viajar no tempo e ter vontade de lá ter estado”, afirma Sérgio Alves.

Os originais de todos os cartazes estão expostos no Tenniseum, o museu do Estádio de Roland Garros.

1980 Valerio Adami
1981 Eduardo Arroyo
1982 Jean-Michel Folon
1983 Vladimir Velickovic
1984 Gilles Aillaud
1985 Jacques Monory
1986 Jiri Kolar
1987 Gérard Titus-Carmel
1988 Pierre Alechinsky
1989 Nicola de Maria
1990 Claude Garache
1991 Joan Miró
1992 Jan Voss
1993 Jean le Gac
1994 Ernest Pignon-Ernest
1995 Donald Lipski
1996 Jean-Michel Meurice
1997 Antonio Saura
1998 Hervé Télémaque
1999 Antonio Seguí
2000 Antoni Tàpies
2001 Sean Scully
2002 Arman
2003 Jane Hammond
2004 Daniel Humair
2005 Jaume Plensa
2006 Günther Förg
2007 Kate Shepherd
2008 Arnulf Rainer
2009 Konrad Klapheck
2010 Nalini Malani
2011 Barthélémy Toguo
2012 Hervé di Rosa
2013 David Nash
2014 Juan Uslé
2015 Du Zhenjun
2016 Marc Desgrandchamps
2017 Vik Muniz
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1980 Valerio Adami
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