A Volta do engano de Cássio Freitas que deixou o técnico desmaiado no carro

Único brasileiro a vencera prova-rainha do ciclismo em Portugal foi descoberto em digressão na Polónia e mostrou ao que vinha logo no ano de estreia.

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Cássio Freitas guarda um misto de gratas recordações e de uma ponta de arrependimento pelo regresso recente, em 2012, à Volta a Portugal, prova em que continua a figurar como único vencedor brasileiro, graças a uma proeza com 25 anos alcançada após ter estado na iminência de ser desclassificado.     

Ligado ao ciclismo por uma concessão que detém há 16 anos, Cássio Freitas não perde o contacto com o pelotão mundial. No Brasil foi seleccionador e participa em provas que recriam uma atmosfera velocipédica vintage. Há cinco anos voltou a Portugal, servindo de ponte entre a equipa brasileira Funvic e Joaquim Gomes, responsável pela organização da Volta a Portugal. Reviu grandes amigos, como Fernando Mota - com quem fez parceria durante sete épocas em três equipas diferentes e mantém, de resto, contacto diário -, e ajudou a intermediar a entrada de uma equipa brasileira na Volta, mas sempre a uma distância segura.

"Não queria andar misturado com a equipa pois não era director nem exercia nenhum cargo desportivo. Limitei-me a ajudar, mas acabei meio desagradado com algumas situações", manifesta, apesar de feliz pela recepção de que foi alvo por todos os antigos colegas da Volta.

Uma amizade que começou a germinar na Volta da Paz, na Polónia, onde nasceria o vínculo de uma década a Portugal. "Integrava uma selecção brasileira que preparava, em algumas provas europeias, a participação nos Jogos Olímpicos de Seul, em 1988. Dessa digressão, para além de corridas na Bélgica e em França, constava a Volta da Paz, uma das mais importantes na Europa de Leste. Portugal também tinha uma equipa nessa competição e o treinador, o senhor Emídio Pinto, disse-me: brasileiro, andas sempre com os primeiros. Se me deres o teu contacto para o ano vais para Portugal ", narra, sem tempo para assimilar o segundo lugar na Volta a Portugal de 1989.

"Ninguém me conhecia e estive quase a vencer na estreia", conta, prestes a reviver o contra-relógio Matosinhos-Porto que decidiu o vencedor. "Houve dois problemas: usei pela primeira vez uma roda de carbono, que era uma novidade, e tive um furo ao passar em Campanhã, na passagem de nível; e como era o meu primeiro ano em Portugal, não sabia bem como se corria. Pode parecer estranho, mas em cada país corre-se de forma diferente e é preciso ter essa noção, pois há muita coisa que desconhecemos. Eu não sabia nada da Senhora da Graça, por exemplo", explica, fascinado com a evolução da modalidade a certos níveis, mas chocado com os cortes salariais.

Se, por um lado, Cássio aplaude a melhoria das condições "no campo da logística, com estruturas mais profissionais", por outro lamenta que as remunerações dos atletas tenham caído abruptamente. "Com os ordenados praticados agora, eu nunca poderia ter vindo para Portugal", assinala, deixando escapar algum pesar por não ter arriscado quando recebeu convites da Kelme e da Artiach. "Na altura optei por ficar no Boavista. Tinha segurança financeira em Portugal, mas olhando para trás, hoje arrependo-me. Devia ter ido, devia ter arriscado", assume.

De resto, Cássio admite que no Brasil o cenário não é mais animador. "Se em Portugal se reclama, aqui não há dinheiro para nada. Sucedem-se os escândalos de corrupção e quem devia dar o exemplo é quem está mais comprometido. Um ano depois das olimpíadas voltámos à estaca zero. Não há recursos para manter as infraestruturas e proteger os investimentos. Foi tudo em vão. A ideia de desenvolver o ciclismo brasileiro ficou no papel. Morreu à nascença", denuncia, para regressar a Portugal e à Volta de 1992.

"O Boavista tinha uma equipa muito homogénea, com toda a gente a rolar no máximo das capacidades. Na terceira etapa, a 100km da meta, um italiano já levava oito minutos de vantagem para o pelotão, pois ninguém reagia. Primeiro tentei sensibilizar alguns ciclistas da Sicasal, do Feirense e da Maia, mas ninguém quis colaborar. Por isso, fui ao carro e disse ao José Santos para autorizar o ataque que no dia seguinte, no contra-relógio, eu garantia", recapitula, feliz por ter anulado a fuga a três quilómetros de Quarteira.

"No contra-relógio fiquei bem perto do Manuel Abreu, o camisola amarela. Como o Joaquim Gomes e o Delmino perderam muitos minutos em Loulé, nem foi preciso falar mais nada. Como novo chefe-de-fila comecei a preparar o ataque na Serra da Estrela. Na etapa da Torre isolei-me logo à saída da Covilhã. O Joaquim Gomes largou toda a gente no túnel e foi no meu encalço. De repente, lá em cima ficou muito frio - com chuva e vento - e o Gomes juntou-se a mim. Fizemos primeiro e segundo", realça, pronto para o ponto verdadeiramente alto da Volta, em Mirandela.

"No contra-relógio Macedo de Cavaleiros-Mirandela podia ter sido desclassificado. O Mário Graça queria expulsar-me porque errei o percurso e tive que improvisar por um desvio. À entrada de Mirandela, o polícia estava mesmo no meio da rua em que devíamos seguir, induzindo-me em erro. Segui a outra direcção e para voltar a entrar no circuito tive que passar pelo meio de barreiras e camiões. Quase chocava com a mota da Televisão. Nessa altura o José Santos já tinha desmaiado no carro. Não dava para acreditar. Acabei por segurar a amarela por três segundos e não fui desclassificado porque o comissário internacional decidiu que só podia ser penalizado se o desvio fosse mais curto".

Com uma diferença tão curta, Cássio Freitas decidiu apostar tudo na Senhora da Graça. "Não tinha receio de nada. Só pedi à equipa para acelerar ao máximo no início da subida. O resto era comigo", recorda, sem necessidade de mais explicações antes de uma última história, um Porto-Lisboa, em 1996, que garante ter sido como uma segunda vitória na Volta a Portugal.

"Vinha de um Grande Prémio JN e tinha intenção de abandonar. Mas nem sei bem porquê, acabei por entrar numa fuga e atacar mais tarde… nunca mais me viram. Cheguei a ter quase 14 minutos de vantagem e, quando cheguei ao Campo Grande, a faltarem dez quilómetros, com os dois minutos de diferença e com um ritmo altíssimo, o José Santos só me disse: 'Vai que agora já ninguém te pega!"

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