O futebol na Líbia já não é um jogo de morte

Foto
Paulo Pimenta

Fosse a entrevista uma partida de futebol e Djamal Mahamat teria sido eleito o melhor médio-defensivo em campo. O jogador do Sp. Braga orgulha-se de integrar a "mais unida" selecção da Líbia, mas não condena Khadafi

O porte altivo de Djamal Mahamat, 188 cm, combina com a majestade do estádio do Sporting de Braga, um dos mais belos do mundo. Na "Pedreira", como é conhecida a obra de arte que ajudou o arquitecto Souto de Moura a ganhar o Pritzker, o jogador nascido em Trípoli mostra-se duro como uma rocha quando confrontado com a descrição de que só no Iraque de Saddam Hussein o futebol era um desporto mais sanguinolento do que na Líbia de Muammar Khadafi.

"Eu nunca tive medo de jogar na Líbia", assegura Djamal, médio-defensivo que ajudou o Beira-Mar a subir à primeira divisão e depois foi levado pelo treinador Leonardo Jardim para o Sp. Braga, em 2011. "Sim, no tempo do antigo presidente [Khadafi], os jogadores recebiam presentes quando ganhavam, mas nunca foram castigados por perderem. Os jogos lá não eram muito diferentes do que são cá, e nem tudo o que se diz é verdade. Eu sei porque conheço bem o país!"

E o que é que se diz? Antes do encontro com Djamal, dois dias antes de ele completar 29 anos, a 26 de Abril, ouvimos James M. Dorsey, senior fellow no National University of Singapore"s Middle East Institute, jornalista desportivo e autor do blogue The Turbulent World of Middle East Soccer. "Na Líbia e no resto do Médio Oriente só havia dois lugares para libertar a fúria popular contra os ditadores: a mesquita e o estádio; e o futebol tornou-se numa segunda religião", afirma o investigador. "Na perspectiva do governante, era preciso controlar esses espaços, controlar a paixão que ali era expressa. Khadafi, que proibiu todos os desportos quando ascendeu ao poder em 1965, via o futebol como uma ameaça ao seu culto de personalidade. Os jogadores não podiam ser mais populares do que o líder, porque só este podia representar a identidade nacional líbia."

Khadafi, adianta Dorsey, "só deu espaço ao futebol quando o seu terceiro filho, Sa"adi, se quis afirmar neste mundo. Mas era um mundo onde jogadores e árbitros se movimentavam com medo. Uma lei decretou que o único jogador que podia ser mencionado pelo nome era Sa"adi, os outros eram pelo número da camisola. Por causa das ambições de Sa"adi, as vitórias ou derrotas do seu Al-Ahly [Clube do Povo] de Trípoli, e da selecção nacional, eram um barómetro do êxito ou fracasso do regime. Muitos jogos foram manipulados e árbitros subornados, para garantir que a equipa de Sa"adi ganhava. E porque um outro filho, Muhammad, apoiava o Al-Ittihad, o maior clube da capital, Khadafi usava muitas vezes os "clássicos" entre estas equipas para colocar um filho contra o outro, na procura do melhor sucessor."

Dorsey lembra-se de um "jogo de alta tensão" em 1996, na final da taça, quando o Al-Ittihad e o Al-Ahly se defrontaram, com Muhammad e Sa"adi na bancada VIP a torcerem pelas respectivas equipas. O resultado final foi 1-0, a favor do Al-Ahly. Segundo o diário britânico Telegraph, o relvado encheu-se de milicianos pró-Sa"adi que começaram a disparar. Morreram 20 pessoas e os dois clubes foram suspensos. Musbah Shengab, que era guarda-redes do Al-Ahly, fugiu para Malta e só regressou para a época de 1999-2000. Quando chegou, ficou surpreendido. "Sa"adi era um ala, embora jogasse em todas as posições que lhe permitissem estar em vantagem", contou. "Ele era o filho do líder, jogar com ele não era jogar com qualquer outro. Não se pode dizer que jogasse em equipa." Essa época terá sido gloriosa para Sa"adi. O Al-Ahly ganhou a liga e os jogadores foram recompensados com carros de luxo e dinheiro.

Em 2000, o descontrolo foi total quando o Al-Ahly de Trípoli jogou contra o Al-Ahly de Bengasi - a cidade-berço da revolução. Sa"adi assistia ao jogo na presença de dignitários estrangeiros, quando adeptos de Bengasi fizeram desfilar um burro com as cores da equipa do filho do coronel. No mesmo ano, o estádio do Al-Ahly de Bengasi foi arrasado por escavadoras e o clube foi banido até 2005. Dorsey, o blogger, conta que houve rusgas casa a casa, pelo menos 80 pessoas foram presas e cinco condenadas à morte, embora nenhuma tenha sido executada, por ordem do "guia", que afastou o filho da liderança da federação de futebol.

No Médio Oriente, Dorsey só compara o futebol líbio no domínio de Khadafi ao futebol iraquiano sob Saddam. Nessa altura, quando Uday Hussein, um dos filhos do tirano, monopolizava todos os cargos desportivos, incluindo o de presidente do comité olímpico, os jogadores que perdiam "arriscavam-se a ser decapitados em pleno relvado". Tanto no Iraque como na Líbia, "o prestígio do regime jogava-se em campo, por isso, não é de estranhar que a selecção nacional líbia tenha demorado tanto tempo a passar para o campo da resistência." Em Junho de 2011, 17 futebolistas, um deles o guarda-redes da selecção, Juma Gtat, juntaram-se aos rebeldes do Conselho Nacional de Transição, agora no poder, proclamando a vontade de criar "uma nova Líbia". Essas deserções foram consideradas um duro revés para Khadafi.

Um tipo normal

Perante este retrato, Djamal Mahamat esboça um sorriso incrédulo, agitando nervosamente as pulseiras e o relógio: "Não acredito!", sublinha o atleta, filho de um diplomata e de uma feirante naturais do Chade. O jogador do Braga confirma que a selecção "estava dividida entre os que gostavam e os que não gostavam do presidente" e admite que as deserções se ficaram a dever à realidade de "alguns jogadores terem perdido familiares quando começou o problema" - o modo como se refere à revolução. Mas ressalva: "Não foram só os que não gostavam do presidente que tiveram familiares mortos; também morreram familiares dos que gostavam do Presidente."

Hoje, garante Djamal, a selecção "está unida", cada um guardando para si as preferências políticas. "O futebol supera tudo. Os jogadores que eram a favor do antigo Governo escolheram o silêncio e continuam a jogar. Não vão mudar de lado. Vão acomodar-se." Ele, por exemplo, não tem vergonha de dizer que "tolerava o regime", mas logo vinca: "Sempre estive "no meio - o meu interesse era apenas o futebol".

A Interpol emitiu um red notice para a captura de Sa"adi, neste momento refugiado no Níger depois de ter sido um implacável comandante militar em Bengasi, por alegada apropriação de bens pela força e intimidação quando dirigia a Federação Líbia de Futebol. Segundo a Reuters, o Conselho Nacional de Transição também está a investigar o filho de Khadafi pela morte de Basheer Al-Ryani. Conhecido como "jogador número 9", terá sido torturado e deixado sem vida à porta de casa, em 2005, depois de, como treinador do clube de Sa"adi, o ter desafiado, acusando-o de fazer parte de "uma ditadura que corrompeu a Líbia".

Djamal tem outras memórias: "Ele [Sa"adi] era um tipo normal. Conhecia-o, mas não era meu amigo pessoal. Falámos várias vezes nos treinos e nos jogos. Era uma pessoa correcta, que nos respeitava. Quando a selecção ganhava, oferecia-nos presentes, mas não nos castigava, se perdíamos. Não havia pressão para vencer. Jogávamos à vontade. Se eu fosse castigado, estaria aqui no Braga? Nunca um jogo foi uma derrota para o regime. Nunca joguei com medo de Khadafi."

Quanto às qualidades desportivas do filho de Khadafi - Dorsey descreve Sa"adi como "o jogador que pagava para jogar" - Djamal não hesita na avaliação: "Era o número 10, esquerdino, e não era forte. Não era um Messi [a estrela do Barcelona], não tinha grande nível, mas colocava dinheiro nos clubes, sobretudo em Itália."

Khadafi escreveu no seu Livro Verde que qualquer desporto tinha de ser "uma actividade social para as massas" e mandou gravar no estádio de Bengasi a inscrição "O futebol e as armas pertencem ao povo", mas Djamal nega que o líder considerasse os jogadores uma ameaça à sua popularidade. "Um jogador famoso tem todo o mundo à sua volta, para tirar fotos, pedir autógrafos. Todos os miúdos querem ser futebolistas. Todo o mundo gostava do Presidente, ele não precisava do futebol para ser famoso."

Se todo o mundo gostava, como justifica Djamal a revolução que derrubou e matou Khadafi? "Ele fez coisas boas. Construiu hospitais, por exemplo, com serviços gratuitos. As pessoas só pensam nas coisas más. O importante, agora, é que haja eleições para escolher quem vai governar. Não me interessa a política - só o futebol!"

A nova selecção

O trinco do Braga, que havia jogado na selecção durante o reinado de Khadafi, voltou a ser convocado para o Campeonato Africano das Nações (CAN), em Janeiro deste ano. A Líbia perdeu o primeiro jogo contra a Guiné Equatorial, empatou o segundo (frente à Zâmbia) e ganhou o terceiro ao Senegal. Ao regressar a Braga, em Fevereiro, Djamal viu o seu lugar ocupado por Custódio. Mas compreendeu a decisão do treinador: "A equipa estava a ganhar e ele não quis mexer."

Foi Marcos Paquetá, o seleccionador da Líbia, quem percebeu as capacidades de Djamal para integrar a nova equipa nacional, ainda ele jogava no Beira-Mar. O brasileiro tem destacado a forma aguerrida com que os jogadores, agora com um equipamento branco, cantando um novo hino nacional perante uma nova bandeira, encaram os jogos. "Estão inspirados pela revolução e sentem-se mais livres." Djamal concorda que os jogadores líbios se sentem mais motivados, mas atribui o entusiasmo à nova metodologia que Paquetá introduziu.

"No passado, os jogadores eram mais individualistas, mas Paquetá está a fazer com que todos joguem como um colectivo. O facto de ele ter ido buscar jogadores à Europa também ajudou. A maioria nunca tinha saído da Líbia. Agora, está a mostrar o que é o futebol europeu e o brasileiro. E muitos jogadores querem ganhar para ver o povo feliz, depois de tantos mortos."

Sugerir correcção