Wonder woman

História de um assassino profissional a quem, por vingança, é mudado o sexo, A Missão é um dos filmes mais bizarros que veremos este ano.

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Nos EUA o filme de Hill despertou a ira de algumas comunidades transgender ou seus representantes, com boicotes e tudo

Pode ser só uma série B destinada a uma presença comercial discreta, vedado que parece estar a Walter Hill o acesso à primeira linha da produção de Hollywood. Mas tem que se lhe diga, a começar pelo território perigoso em que o filme se desenrola, e a continuar pela sua peculiar estrutura narrativa, assente em raccontos e flash backs que se duplicam, espelham, e contêm, eles próprios, outros raccontos e flash backs – estrutura engenhosa que compensa um pouco a relativa indiferença de certos momentos de mise en scène, que na obra do veterano Hill (75 anos, admirador de Ford e Walsh, uma relíquia no actual cinema americano virado para adolescentes e realizadores com formação em telediscos e jogos de computador) já viu momentos de maior fulgor.

O título original, The Assignment, pode ser traduzido por A Missão, de facto, mas também é um jogo de palavras que é o primeiro sinal da perversidade do filme: não é spoiler, mas não há outra maneira de falar do filme sem mencionar o seu nó central, a história de um assassino profissional a quem, por vingança, é mudado o sexo. História de um transexual involuntário, portanto (é Michelle Rodriguez, primeiro com uma prótese ostensivamente mostrada, depois sem ela, que interpreta a personagem nos seus dois estados). O seu nome é Frank Kitchen, nome suficientemente singular para não se suspeitar de que Hill andou à procura de uma sonoridade (Frank Kitchen/Frankenstein, alusão que não parece forçada num filme que também cita, a propósito do poder e da arte, Shakespeare e Poe, de forma insidiosa, como se se comentasse a si mesmo). E a sua nemesis é a médica, louca e omnipotente, interpretada por Sigourney Weaver, que quando não está num colete de forças está vestida como um homem, cabelo curto, fato e gravata, e cujo discurso é sempre de poder, discricionário e mesmo totalitário. O homem/mulher contra a mulher/homem, portanto, numa ambivalência cujas ressonâncias ultrapassam a esfera liminarmente sexual e têm a ver com “estatutos” e “papéis”, inclusivamente políticos.

Nos EUA o filme de Hill despertou a ira de algumas comunidades transgender ou seus representantes, com boicotes e tudo. Altamente despropositado, porque não é um tratado sobre a transexualidade nem um ensaio sobre a psicologia dum transexual, antes um jogo perverso que não tem nada de “universal”, como o Switch de Blake Edwards (no princípio dos anos 90), ou como as mulheres masculinizadas e os homens feminizados (não confundir com “efeminados”) dos filmes de Kathryn Bigelow (sem falar da questão básica que tem precedentes na obra de Hill: como Johnny Handsome, é uma personagem a aprender a viver e reconhecer-se num corpo estranho).

Se alguma coisa se pode levar a mal a Hill é ele estar mais preocupado com os elementos que convoca do que com o ponto aonde os leva – mas também por isso é óbvio que não está fazer teoria, aponta apenas à perturbação e a essa coisa cada vez mais rara que é a cabeça de um espectador disposto a deixar-se perturbar por um filme que não tem nenhuma moralidade virtuosa a propor, apenas o seu desafio e a sua confusão. De resto, o tratamento de alguns separadores entre cenas (tornados “banda desenhada”), indicia uma vontade de diálogo com o estado das coisas do actual grande espectáculo cinematográfico, como se nos comics, puritanos e assexuados, Hill introduzisse radicalmente a questão sexual. Dê lá por onde der, e tendo em conta todos os seus limites, é um dos filmes mais bizarros que veremos este ano.

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