Francisco José Viegas violou quatro instâncias da lei no “caso Crivelli”

O Supremo Tribunal deu ao PÚBLICO acesso ao “dossier Crivelli”. 700 páginas sobre os bastidores da polémica venda da pintura Virgem com o Menino e Santos. Entre violações à lei, omissões e a impotência da administração pública, escreve-se uma história que dificilmente encontrará final feliz.

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Francisco José Viegas, ex-secretário de Estado da Cultura, quando foi ouvido no Parlamento sobre o "caso Crivelli" em Julho de 2013 Daniel Rocha

O documento que regista o momento-chave do hoje polémico “caso Crivelli” não é sequer um despacho, apenas a cópia de uma carta: “O Estado, através do organismo competente, e por força dos constrangimentos orçamentais com que se depara, não irá exercer o direito de preferência sobre a obra de pintura intitulada Virgem com o Menino e Santos […]. Nessa decorrência informa-se […] que foi deferido o pedido de exportação definitiva nº 218/2011 […].”

Foi através desta carta datada de 19 de Junho de 2012 e remetida para uma das suas moradas de Lisboa que o conhecido empresário Miguel Pais do Amaral ficou autorizado a vender no estrangeiro uma pintura única, protegida por lei e desde 1970 impedida de deixar Portugal. Como anexo, o empresário recebeu o único documento de facto assinado em todo o caso pelo então Secretário de Estado da Cultura (SEC) Francisco José Viegas: o formulário-passaporte que permitia à “Virgem portuguesa” atravessar a fronteira em direcção à galeria Jean-François Heim, em Paris, onde tinha uma oferta de compra declarada em 3,4 milhões de euros.

Viegas assinou esse formulário, idêntico a centenas de outros, a 18 de Junho de 2012. A carta, datada do dia seguinte, já foi assinada por Rui M. Pereira, o seu chefe de gabinete. Viegas nunca chegou sequer a despachar. Ou seja, nunca chegou sequer a formalizar devidamente a decisão. O hoje extinto Instituto dos Museus e da Conservação (IMC), que tinha o processo em mãos, soube da resolução a 22 de Junho, quando, por simples protocolo, recebeu uma cópia da carta dirigida a Pais do Amaral. Um ofício desde logo manchado por pelo menos um erro grosseiro: autoriza uma “exportação” quando o pedido de venda era para um país-membro da União Europeia, requerendo apenas uma “expedição”.

Erro à parte, a autorização terá deixado estarrecidos os funcionários do IMC: representava um volte-face absolutamente inesperado no caso – nove meses antes, Rui M. Pereira, o mesmo chefe de gabinete de Viegas, dera ao instituto ordens para preparar o processo administrativo de conversão da antiga inventariação da obra numa classificação de acordo com a lei patrimonial em vigor.

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Virgem com o Menino e Santos é uma pintura rara e extraordinária, datada de 1487 e assinada por um dos mestres da Renascença italiana: Carlo Crivelli DR

A ordem foi manuscrita a 16 de Setembro de 2011 no verso do ofício de dois dias antes em que Pais do Amaral insistia numa célere resolução do pedido de expedição que entregara a 14 de Junho desse ano. Com a ordem, ficava implícita a recusa a Pais do Amaral. E abriam-se os procedimentos de transformação do único Crivelli de Portugal num Tesouro Nacional, o mais alto escalação de protecção dada pelo Estado a bens do património móvel.

Não seria um processo especialmente difícil ou controverso. Primeiro porque em 2007, ao comprar a obra, Pais do Amaral estava ciente das restrições a ela associadas desde 1970. Depois, porque a hipótese de conversão em Tesouro Nacional já antes fora equacionada. E, por último, porque havia consenso entre especialistas em arte e património. Afinal, estava em causa uma pintura rara e extraordinária, datada de 1487 e assinada por um dos mestres da Renascença italiana: Carlo Crivelli, representado em alguns dos melhores museus do mundo e o autor da famosa Anunciação da National Gallery, com a qual a “Virgem portuguesa” partilha uma inscriação característica, a frase “libertas ecclesiastica”, escrita na base do pequeno pódio sob os pés de Maria.

Avançou-se para a conversão. Mas em vão. A decisão final ficaria a aguardar despacho de Viegas. Que entretanto autorizou a venda da obra no estrangeiro. Uma decisão repentina e minada de falhas.    

Em todo o processo, não há, por exemplo, um documento em que o então secretário de Estado faça cair as protecções legais a que a pintura estava sujeita e que pediam desclassificação em Diário da República. Em todo o processo não há, também, um único documento em que a decisão de venda seja justificada. Dois passos obrigatórios, neste caso. A sua inexistência representa uma violação da lei. Motivo pelo qual, um ano depois, a 18 de Junho de 2013, o actual SEC, Jorge Barreto Xavier, pode revogar a autorização atribuída pelo seu antecessor no mesmo XIX Governo Constitucional.

À época, Barreto Xavier recusou detalhes sobre as bases desse gesto de contornos inéditos. A 2 de Julho de 2013, na Assembleia da República, limitou-se a aludir a um “erro”, dizendo que "havia aspectos de ordem procedimental que podiam ter sido desenvolvidos de outra forma" pelo gabinete de Viegas. Nessa altura – e até hoje –, foi mantido em segredo um parecer informalmente pedido a Sérvulo Correia, um dos maiores especialistas portugueses em direito administrativo e o presidente da comissão que, em 2001, redigiu a Lei de Bases do Património Cultural.

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Francisco José Viegas com o seu chefe de gabinete Nuno Ferreira Santos

O documento em que este especialista desmonta ponto por ponto as falhas do gabinete de Viegas tem 15 páginas. Está apenso ao complexo “dossier Crivelli”, que o executivo de Pedro Passos Coelho tem mantido fechado e a que o PÚBLICO teve acesso por ordem do Supremo Tribunal mais de dois anos volvidos sobre o primeiro de vários pedidos de consulta sucessivamente recusados pelo Governo, apesar de indicações da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos e do Tribunal Central Administrativo fazendo saber não existirem fundamentos para vedar acesso à informação. 

Em três volumes
No Palácio Nacional da Ajuda, à guarda da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), o “dossier Crivelli” são três volumes pretos numerados de I a III. Contêm despachos, ofícios, pareceres, cópias de cartas e emails, cópias de notícias e de actas. São cerca de 700 páginas que vão dando conta da imbricada narrativa em torno da “Virgem portuguesa”. Desde que Pais do Amaral a comprou por um milhão de euros aos 22 herdeiros de Caetano de Andrade Albuquerque Bettencourt, até à actualidade, com a peça em paradeiro incerto e avaliada em dez vezes mais: entre 9 e 10,4 milhões de euros.

Foi a 4 de Junho de 2013 que o PÚBLICO deu a notícia da saída da obra do país. Esse momento faz parte das cronologias das autoridades patrimoniais portuguesas. Bem como a informação de que nesse mesmo dia Barreto Xavier solicitou à DGPC a obtenção de um parecer jurídico sobre a situação e “consequente decisão que eventualmente ainda se coloque”.

Sérvulo Correia foi contactado “com urgência” pelo Estado três dias depois. Respondeu a 14 de Junho com o documento intitulado “Bases para uma Decisão” em que desmonta quatro “vícios de legalidade” no caso, “qualquer dos quais constituindo de ‘per si’ fundamento bastante para a revogação”.

Viegas não podia autorizar a expedição de uma pintura protegida sem antes pôr termo a esse estatuto. “Não é juridicamente pensável a saída definitiva de um bem cujo regime continua a ser de obra de arte inventariada”, lê-se no documento. É um dos pontos. Outro diz que, ao abrigo da Constituição e do Código de Procedimento Administrativo, Viegas estava também obrigado ao princípio da imparcialidade, que manda que sejam considerados todos os interesses relevantes. “Ora, não se encontram quaisquer vestígios […] do empenhamento na identificação sistemática e completa dos interesses públicos” nem “qualquer tentativa de apuramento de quais os ‘prejuízos graves’ […] que resultariam da expedição definitiva do quadro”, prossegue o documento. Explicitando: “O manifesto défice de ponderação […] gera violação da lei por ofensa ao princípio da proporcionalidade.” Depois, houve ainda uma violação da lei “por erro de direito” quando se assumiu que, caso o Estado não autorizasse a saída da obra, ficava obrigado à sua aquisição. Não era assim. Mais: no momento da decisão, o gabinete de Viegas estava correctamente informado por um parecer jurídico pedido à hoje procuradora-geral adjunta do Tribunal Central Administrativo Raquel Vicente da Rosa. Esse parecer fornecia o enquadramento legal para a interdição da saída da peça de Portugal sem que o Estado ficasse obrigado à aquisição. Indo contra este e outros pareceres que tinha em mãos, Viegas estava obrigado por lei a fundamentar a sua decisão. Não o fez. “O vício de forma por falta de fundamento do acto administrativo gera a sua invalidade”, conclui Sérvulo Correia.  

Foi com base nestes dados que Barreto Xavier revogou o acto do seu antecessor. Uma medida tomada no vermelho dos prazos legais: a 18 de Junho de 2013 cumpria-se um ano sobre o momento em que Viegas autorizara a saída – era o último dia em que o processo podia ser revertido. E foi. Abrindo uma complexa demanda internacional pelo regresso da obra cujos passos foram também mantidos em segredo pelo Governo. Um caminho cheio de avanços e recuos, becos sem saída e indecisões. Sem qualquer solução confortável à vista.  

No “dossier Crivelli”, é claro o empenho da DGPC na resolução positiva do caso. Ao longo de 2013 e 2014 multiplicam-se os esforços de localização da obra no sentido de um seu posterior regresso ao país. Percebe-se que houve momentos em que todas as hipóteses pareciam esgotadas. Mas houve também momentos em que o caso poderia ter sido resolvido. Ficou em suspenso – à espera de decisão da tutela.

Foi assim a 9 de Outubro de 2013, data do ofício através do qual a então directora-geral do Património Cultural, Isabel Cordeiro, propunha ao gabinete de Barreto Xavier um conjunto de medidas executórias que nunca foram tomadas. A primeira consistia na instauração de uma acção contra Pais do Amaral por crime de desobediência nos termos do Artigo 348 do Código Penal. Um artigo que prevê uma pena de prisão de um ano ou 120 dias de multa na versão simples do crime, mas que a DGPC propôs na versão qualificada: dois anos de prisão ou 240 dias de multa.

Durante o processo de averiguações desenvolvido até então, Pais do Amaral fora o primeiro interpelado pela DGPC no sentido de apurar o paradeiro da obra. Segundo se pode ler em vários documentos, Pais do Amaral falhou prazos legais de resposta, não apresentou à DGPC documentação sobre a circulação internacional da pintura nem comprovativo da venda no estrangeiro, declarou-se ainda incapaz de apontar o novo ou novos proprietários.

Por carta, à DGPC, a 8 de Julho de 2013 o empresário manifestava preocupação: “A situação criada pela revogação do acto que autorizou a expedição […] não pode deixar de me causar séria preocupação […]. Sendo alheio aos fundamentos que determinaram a revogação […] o meu bom nome, bem como a boa-fé da minha conduta, poderão agora ser colocados em causa por terceiros com gravosas consequências.” Um mês depois, a 3 de Setembro, de novo por carta, explicava: “No que respeita ao comprovativo de venda, celebrei um contrato de compra e venda de coisa móvel, não sujeito a qualquer exigência de forma […]. Assim, o contrato não foi nem teria de ser reduzido a escrito […]. Como já tive oportunidade de referir […], desconheço o actual paradeiro da pintura e não me é possível identificar o comprador através do pagamento efectuado.”

Em nenhum momento, Pais do Amaral informou a DGPC de que a peça não tivera, afinal, o destino inicialmente declarado. O empresário sabia que a galeria Jean-François Heim não fora o ponto de venda, apenas uma breve paragem da peça uma vez liberta das restrições à sua circulação. Pais do Amaral omitiu informação às autoridades.    

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O empresário Miguel Pais do Amaral

A expedição de Lisboa para Paris deu-se a 26 de Julho de 2012. Menos de dois meses depois, a 11 de Setembro de 2012, a “Virgem portuguesa” viajava de França para o Reino Unido. E não com novos proprietários – ainda na posse de Pais do Amaral. Foi o empresário que deu a Jean-François Heim ordem de expedição. E foi este intermediário que acabou por informar a DGPC sobre o destino secundário da peça: a sede da leiloeira Christie’s na Kings Street de Londres. 

No princípio de Dezembro de 2013 o PÚBLICO noticiava que o Crivelli tinha obtido licença de exportação do Reino Unido para os Estados Unidos, estando prestes a sair do espaço Schengen e a deixar a esfera de influência da União Europeia. Era assim. Mas ainda com a peça na posse de Pais do Amaral: quando a 21 de Novembro de 2012 a Christie’s apresentou ao Arts Council o pedido de exportação fazia-o em nome do empresário português, segundo posteriormente declarado pela leiloeira à DGPC.

De acordo com a Christie’s, a licença de exportação visava o transporte da obra para a sede da leiloeira em Nova Iorque, onde Pais do Amaral pretenderia levá-la à praça. O Arts Council deu resposta positiva à exportação seis dias depois da entrada do pedido. A licença não foi porém usada. E dois dias depois a pintura foi levantada da Christie’s de Londres por outro agente a trabalhar para Pais do Amaral: a transportadora MartinSpeed. Pais do Amaral “decidiu não vender a obra”, disse a Christie’s à DGPC.

A ter informado a DGPC de todos estes passos quando questionado sobre o paradeiro da pintura o empresário teria poupado às autoridades portuguesas pelo menos cinco meses de investigação. Em vez disso, mostrou “total ausência de colaboração”, escreveu Isabel Cordeiro no ofício de 9 de Outubro de 2013. Um documento que não propunha a Barreto Xavier apenas a abertura de uma acção legal contra o empresário. Propunha também o encetamento de um pedido de restituição da pintura a território nacional.

Como a directora-geral fazia então notar, essa segunda medida revestia-se de “constrangimentos de âmbitos diverso”. Entre eles, o facto de, apesar de anulada, a autorização de expedição definitiva concedida por Viegas “não constituir, em si mesma, acto nulo”.

Era um problema jurídico. Agravado pela dificuldade de fundamentar um pedido de restituição “sem a prévia confirmação da ocorrência de crime, independentemente da natureza e responsáveis por este”. Por isso mesmo, ainda nesse ofício, Isabel Cordeiro apresenta à tutela uma outra hipótese de actuação: tentar negociar com Pais do Amaral – apesar da sua manifesta falta de colaboração.

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Isabel Cordeiro, antiga directora-geral do Património Cultural Nuno Ferreira Santos

A DGPC dava então como “esgotadas” quaisquer possibilidades de avanço no caso pela sua parte. E ficou a aguardar uma resposta da SEC. Que nunca chegou. Até um inesperado salto narrativo: a 10 de Dezembro de 2013 o conhecido advogado Christopher Marinello, director da Art Recovery International, sedeada em Londres, contacta a DGPC apresentando-se como representante dos novos proprietários da pintura e visando negociar com as autoridades portuguesas.

Tal como noticiado pelo PÚBLICO, Marinello desloca-se a Lisboa a 18 de Dezembro e deixa na mesa várias hipóteses de resolução do caso. No “dossier Crivelli” está o ofício através do qual a DGPC informa Barreto Xavier das “evoluções positivas no processo”, passando este a ser considerado “confidencial” e de acesso restrito a apenas duas pessoas na DGPC, a directora-geral e Paulo Costa, o responsável pela divisão de bens móveis.

No ofício, estes dois responsáveis explicam à tutela estarem na mesa “três cenários para a célere resolução da questão”. O primeiro implicava a compra da obra pelo Estado ao seu valor no mercado internacional – os 9 a 10 milhões das últimas negociações neste sentido. No segundo cenário a obra regressaria temporariamente ao país apenas para poder ser vista num museu nacional enquanto o Estado regularizaria a sua situação, renunciado a quaisquer direitos. No terceiro e último cenário os clientes de Marinello depositavam a pintura no Museu Nacional de Arte Antiga por um período de seis meses tendo em vista possibilitar ao Estado português reunir junto da sociedade civil os recursos necessários à compra. 

“Apenas o Cenário III poderá permitir ao Estado português assegurar a breve prazo o regresso da pintura a território nacional”, esclarece o ofício. Explicando ainda que o primeiro cenário pecava pela “clara entrada da peça numa espiral especulativa do mercado da arte” e o segundo, de simples desistência, era “contrário a todas as acções desenvolvidas desde Junho de 2013”.

O ofício da DGPC ao gabinete de Barreto Xavier data de 19 de Dezembro de 2014 e sublinha que as negociações com Marinello constituíam “uma janela de oportunidade única”. Refere também a urgência de uma decisão face ao prazo apresentado pelo negociador inglês: “até ao início do mês de Janeiro […] sob risco de perder a oportunidade”.

A resposta de Barreto Xavier chega à DGPC em dois diferentes ofícios datados de 2 de Janeiro de 2015. Num deles o SEC felicita a DGPC pelo seu trabalho, mas recusa tornar o caso público, tal como proposto pela direcção-geral. Considerou não ser “adequado”, “de momento”. Num segundo ofício Barreto Xavier requer a elaboração de uma “proposta específica para aferir a viabilidade da proposta efectuada no Cenário III”.

De acordo com essa indicação, Isabel Cordeiro contacta ainda Marinello no sentido de obter uma proposta formal da parte da Art Recovery. Proposta que recebe no próprio dia em que a pede: 22 de Janeiro de 2014. E que envia ao gabinete de Barreto Xavier. Pelo caminho, porém, a 8 de Janeiro, torna-se pública a saída desta responsável da DGPC por “divergências profundas” com a tutela. O seu sucessor, Nuno Vassallo e Silva, assume funções a 4 de Fevereiro. E as negociações com Marinello são temporariamente interrompidas sem qualquer indicação da tutela face às propostas na mesa. Apenas novo pedido de ponto de situação. Mais um dos vários ao longo do processo, que acumula informação repetida, uma e outra vez.    

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Jorge Barreto Xavier, secretário de Estado da Cultura Nuno Ferreira Santos

Por email, a SEC fez esta semana saber ao PÚBLICO que o caso “não se encontra concluído, subsistindo diligências em curso”. Foi a única resposta cabal a uma série de sete perguntas levantadas pela consulta do “dossier” e às quais a SEC não respondeu ou se mostrou evasiva.

O PÚBLICO procurou saber porque não foi nunca feito um pedido de restituição da pintura ao abrigo das leis internacionais, se em algum momento foi posta a hipótese de corrupção no caso e aberta investigação nesse sentido e porque não foi intentado qualquer processo do Estado contra Viegas e Pais do Amaral. A única resposta a qualquer destas perguntas foi que “nenhuma destas matérias carecia de decisão do Secretário de Estado da Cultura, uma vez que se encontravam na esfera de competências da Direcção-Geral do Património Cultural”.

Na verdade, não era assim. A 25 de Setembro de 2013, Barreto Xavier assinava um despacho dirigido à DGPC em que determinava que as medidas executórias ou outras a elas associadas no “caso Crivelli” fossem “previamente submetidas à consideração superior do membro do Governo responsável pela área da Cultura”. Barreto Xavier referia-se a ele próprio.

O PÚBLICO procurou também novos esclarecimentos junto de Isabel Cordeiro, Viegas e Pais do Amaral. Contactou ainda Vassallo e Silva e Rui M. Pereira.

Viegas regressou entretanto à sua carreira como escritor e editor. Questionado, nomeadamente, sobre se tinha consciência de estar a violar várias instâncias da lei e sobre se Pais do Amaral lhe fez, em algum momento, um pedido directo e pessoal sobre o sentido da sua decisão, recusou prestar declarações. “Sobre este assunto já disse o que tinha a dizer na altura; dado o tom insultuoso das perguntas, não vou acrescentar nada”, fez saber por email.

Já Pais do Amaral reagiu com naturalidade a algumas das mesmas questões, negando quaisquer contactos pessoais com Viegas ou outro membro do Governo no sentido de uma resolução favorável: “O que houve foram sempre comunicações formais. Fui insistindo. Não tive conversas com ninguém.”

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Christopher Marinello José Sarmento de Matos

Há, porém, muitas perguntas a que o empresário não dá resposta. Não explica, por exemplo, porque não foi a “Virgem portuguesa” vendida em Paris. Nem porque ordenou o seu transporte de Paris para Londres. Ou porque, uma vez na capital britânica, obteve e depois desistiu de usar a licença de exportação definitiva para os Estados Unidos.

Em relação a todas estas questões o empresário diz-se “obrigado a confidencialidade por contrato”. Confrontado com os conteúdos da carta que enviou à DGPC e em que declarava não ter celebrado um contrato de venda, o empresário explicou não existir, de facto, um contrato com o comprador final mas existir com “as entidades que fizeram a mediação”. Acrescentará, também, que simplesmente não pretende responder a estas questões dado que “todas se referem a uma altura em que não havia dúvidas sobre a legitimidade da venda”.

“O aspecto essencial é que vendi muito antes da revogação e não sei quem são os novos proprietários. A partir daí, tudo são detalhes processuais. Estou perfeitamente sossegado”, diz o empresário. Sublinhando: “Demonstrarei o que for necessário a quem estiver mandatado para me pedir prova.”

Confrontado com o facto de não ter feito prova à DGPC e questionado sobre se não considerada este organismo mandatado, o empresário nega ter falhado nas suas respostas.

Isabel Cordeiro, que hoje trabalha no Museu Nacional de Arte Antiga, recusou prestar quaisquer declarações por estar “obrigada a sigilo” tal como Vassallo e Silva. Já Rui M. Pereira explicou anteontem ao PÚBLICO lembrar-se apenas “muito vagamente” do caso.

Director municipal da Cultura entre 2005 e 2009, em Junho último Rui M. Pereira foi condenado pela Relação a quatro anos de prisão com pena suspensa por crimes de falsificação ligados a uma adjudicação directa a uma sua familiar durante esse período. No ano passado, era presidente do instituto que geria a plataforma informática Citius, que, ao ficar inoperante, lançou o caos no sistema judicial português. Como chefe de gabinete de Viegas, diz que “não tinha consciência” da importância do “caso Crivelli”.

“Eu era uma espécie de secretário qualificado. Assinava o expediente, mantinha a máquina administrativa a funcionar. É esse o papel de um chefe de gabinete. Não sou especialista em património. Sabia que era uma peça importante, mas havia várias peças importantes a passar”, disse ao PÚBLICO em breve conversa telefónica.

O PÚBLICO sabe que nos últimos meses foram retomados os contactos entre as autoridades portuguesas e Christopher Marinello. No entanto, questionada sobre porque foram, a dada altura, interrompidas as negociações com o advogado e porque não foi tentada qualquer das hipóteses de regresso da obra por ele propostas, a SEC continua a minorar o papel do representante dos actuais donos do Crivelli: “Até ao momento não foi apresentado […] qualquer documento que, à luz da lei portuguesa, reconheça os seus eventuais poderes de representação […], razão pela qual não pode ser reconhecido nenhum papel efectivo no âmbito desta matéria.”

Em 2007, quando Pais do Amaral comprou o Crivelli por um milhão de euros, o Estado podia ter exercido o seu direito de preferência. Entendeu não ter fundos para a compra. E não se previa que esta pudesse vir a deixar o país. Hoje, qualquer solução passará por investimentos muito superiores.

Em 2014, quando Marinello propôs a Portugal a compra por 10 milhões, a DGPC tinha um orçamento total de 95 mil euros para aquisições. Tentar o regresso da obra ao país por via judicial poderá implicará o pagamento desse mesmo valor mais as compensações aos proprietários e outros lesados, caso se prove terem agido de boa-fé. E arquivar o caso e deixar cair qualquer demanda implicará desistir da peça. Para sempre.  

Em Junho, quando entrevistou Marinello em Londres, o PÚBLICO perguntou ao advogado se os seus clientes não estariam dispostos a oferecer a peça ao país, como gesto mecenático. “Porque haveriam de o fazer? Agiram de boa-fé, não são portugueses, a peça não tem qualquer ligação com a história portuguesa...”

Três anos volvidos, não há uma solução confortável à vista. 

 

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