Vai ser tão bom, não foi?

Um encontro em estado de graça entre uma actriz, Isabelle Huppert, e uma realizadora, Mia Hansen-Løve, resulta num discreto e impressionista retrato de mulher à beira da crise existencial.

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O que mais nos agrada neste melodrama seja a sua recusa total de modernismos gratuitos

Os Xutos & Pontapés têm uma canção chamada “Futuro que Era Brilhante” sobre o desencanto quando olhamos para tudo aquilo que ficou para trás. Parece-nos bem que é assim que se sente às tantas Nathalie, a heroína nominal de O Que Está por Vir. Professora de filosofia, realizada, casada, com dois filhos já feitos, directora de uma credenciada colecção de ensaios, é o modelo da média burguesia intelectual francesa que viveu os radicalismos do Março de 1968 e pugnou pelo estado social. E, num momento em que a contestação ao sistema voltou à superfície, eis que a sua vida se desmorona: o marido revela-lhe que a vai trocar por outra, a mãe tem de ser levada para um lar, o futuro da colecção que dirige e do próprio manual escolar de referência que escreveu está em risco. Andei eu a lutar tantos anos e agora dou por mim aqui?, pergunta-se Nathalie, e Mia Hansen-Løve propõe-nos acompanhar a surda crise de meia-idade de uma intelectual burguesa que acreditou que o futuro ia sempre estar ali ao alcance, e descobre que afinal não, e que não há filosofia nem pensamento que ajude.

Claro que, como Nathalie é Isabelle Huppert, a coisa ganha logo outro nível: aquela que estamos cada vez mais próximos de achar a maior actriz contemporânea não se preocupa se a sua personagem é simpática ou uma chata de primeira ou as duas ao mesmo tempo. O que lhe interessa é fazer-nos sentir porque é que ela é assim, fazer-nos ver as fraquezas e emoções que a fazem mexer. E Huppert encontrou em Mia Hansen-Løve uma espécie de alma gémea: a realizadora tem apostado em construir os seus filmes no sussurro e na discrição, através da acumulação de detalhes aparentemente anódinos que revelam lentamente um retrato impressionista, delicado, de personagens apanhadas nos momentos marcantes da sua vida. É um cinema que tem vindo a crescer quase imperceptivelmente ao longo dos anos, mas que atinge em O Que Está por Vir, a quinta longa da realizadora e argumentista, o seu ponto mais alto até hoje. É um filme, literalmente, em estado de graça, encontro luminoso entre uma actriz e uma cineasta à volta de uma mulher que tem de redescobrir o seu lugar no mundo.

Talvez o que mais nos agrada neste melodrama de uma modéstia transcendentemente segura seja a sua recusa total de modernismos gratuitos ou truques desnecessários. Hansen-Løve está fartinha de saber que os momentos-chave da nossa vida não se anunciam à distância e só à posteriori é que os reconhecemos; por isso ela filma os “tempos mortos” como se fossem essenciais, e encontra na entrega de uma radiosa Huppert a esta mulher perfeitamente normal a centelha necessária para que o seu cinema suba ao patamar seguinte. Nathalie, de certo modo, somos todos nós; o que estas duas mulheres fazem, juntas, é explicar-nos porquê. 

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