John Updike volta a casa

Nunca perdoou a mãe por tê-lo levado da casa onde viveu os primeiros 13 anos de vida — é uma casa branca com um arbusto cor-de-rosa. Fica em Shillington, pequena cidade da Pensilvânia, insípida na sua normalidade de classe média americana e que lhe deu tudo o que ele precisava para escrever.

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Com 26 romances publicados em 49 anos e vários volumes de contos, poesia, teatro, livros para crianças, além de crítica e ensaio, John Updike escreveu profusamente sobre ele mesmo e a autobiografia era o seu subtexto

Do seu quarto, John via um quintal e uma casa branca de dois pisos com um pequeno alpendre. Costumava ficar ali horas a ler, enquanto os avós maternos falavam no piso de baixo e a mãe, Linda, escrevia num estúdio bem perto. Da janela de Linda, via-se um arbusto que na Primavera se enchia de flores que davam um tom rosa à luz da tarde. Ela e o marido plantaram-no para celebrar o primeiro aniversário de John. Muitas vezes, quando se aborrecia, John descia à sala de jantar e sentava-se debaixo da mesa, quase sempre com um livro aberto e a ouvir o que os outros diziam. Era a única criança entre quatro adultos numa casa onde se falava de política, literatura e do sonho de reaver a quinta de família, perdida durante a Grande Depressão. A mãe também descia as escadas e nessas conversas deixava uma promessa: a quinta voltaria a ser deles. 

Era ali, na moldura rectagular de seis janelas — três em cima e três em baixo -, que se desenrolava o mundo interior de John. A “grande casa branca” de dois pisos a dar para uma artéria larga por onde passavam carroças com produtos agrícolas vindos das quintas mais próximas e alguns carros a caminho de Filadélfia. O pai, Wesley, saía diariamente para dar aulas de Matemática no liceu local, e John — ou Uppy, como era conhecido — encontrava na rua e na escola rapazes e raparigas que obedeciam aos padrões do que eram os rapazes e raparigas de uma pequena cidade americana, protestante, de classe média. Gordos, magros, feios, bonitos, idiotas, rufias, valentes e parasitas. Naquele universo, havia “tudo o que um escritor precisava”, contou John num poema que escreveu um mês antes de morrer, não muito depois de ter admitido que para ser o que foi, um dos escritores mais produtivos, premiados e respeitados da América, se limitou a crescer na insípida normalidade que caracterizava a infância na Pensilvânia. 

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O centro do quotidiano doméstico que dominou a vida literária de John Updike é a casa no número 117 de Philadelphia Avenue, em Shillington, cidade de pouco mais de cinco mil habitantes no condado de Berks, a 96 quilómetros de Filadélfia, território habitado desde o século XVIII sobretudo por imigrantes alemães, marcadamente rural e branca. Foi ali que Updike cresceu depois de ter nascido na vizinha Reading em 1932, e viveu até 1945, quando fez 13 anos e a família se mudou para Plowville, a quinta a vinte quilómetros dali que a mãe conseguiu recuperar para a família. Desde então, a grande casa branca da Philadelphia Avenue teve outros moradores até ter sido comprada em 2012 pela John Updike Society (JUS). Criada em Maio de 2009, quando se celebraram os 50 anos de vida literária do escritor, e quatro meses após a sua morte devido a um cancro no pulmão, pretende promover a leitura e o conhecimento da obra de um dos autores fundamentais na história recente da literatura americana. Além de uma revista, a JUS organiza conferências, atribui bolsas e conseguiu fundos para criar um museu com o nome e o legado de Updike. Será justamente na casa de Shillington que está prestes a abrir ao público totalmente recuperada, tal como era quando Updike ali viveu. “Será uma casa-museu para promover a literatura do escritor”, refere Jim Plath, professor de Inglês na Universidade do Illinois, especialista na obra de Updike, e presidente da JUS. 

A casa pretende ser um símbolo, a prova de que Updike nunca se descolou das suas origens, apesar de as relatar tantas vezes como claustrofóbicas, marcadas por forte religiosidade, moralmente e sexualmente castrantes, onde o indivíduo luta pela sua singularidade num meio que quer apagar as diferenças.  

Estamos no núcleo dessa geografia pessoal que aparece ficcionada em contos, dissecada em ensaios, trabalhada em poemas, paisagem central dos seus primeiros romances, como A Feira (original de 1959) Corre, Coelho (1960) ou O Centauro (1963). Reading, Shillington e Plowville aparecem com outros nomes, mas com as características que as identificam. Cruzem-se os livros e percebe-se. “Plowville torna-se Firetown; Reading, uma cidade industrial média em declínio durante toda a vida adulta de Updike, torna-se Alton (ou Brewer na tetralogia Coelho); e a amada pequena cidade de Shillington, ensanduíchada entre o interior acanhado e os subúrbios que invadem tudo, renasceu como Olinger (...). Juntas são o coração da América de Updike, a sua paisagem e a sua história”, escreve Adam Begley em Updike, biografia do escritor publicada pela Harper Collins em 2014. 

No final de Março, a casa no centro dessa paisagem era um estaleiro discreto. Da rua, surgia num branco imaculado e no interior cheirava a um misto de gesso, madeira cortada, cola e tinta. A luz filtrada pelas muitas janelas iluminava as paredes a serem descascadas de papel, pintura e tudo o que alterava uma ideia de originalidade. O soalho raspado estava quase todo coberto de plásticos e as portas interiores não existiam nos seus lugares. A poeira acumulava-se nas vidraças das janelas e uma estrututura de madeira erguia-se para suportar uma parede nova. Estava ao lado do quarto onde John Updike dormiu até aos 13 anos, e com ela voltava a surgir o quarto escuro que deu título ao conto autobiográfico The Black Room, originalmente publicado na New Yorker em 1993, e sobre a devoção de um adulto à velha casa da cidade de onde teve de sair no início da adolescência para ir viver no isolamento de uma quinta. 

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Dave Rouff é o cicerone neste périplo pelo universo de John Updike. Lembra-se de ver “um rapaz meio tímido, com um porte altivo, de quem se dizia ter talento”
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Dave Rouff é o cicerone neste périplo pessoal pelo universo de John Updike. Como John, Dave nasceu em Shillington, mas dez anos depois, há 74 anos. Arrendou o anexo do 117 da Philadelphia Avenue, um acrescento face ao original que não existia quando os Updike ali moravam. Um médico que viveu depois deles naquela casa construiu ali o seu consultório no anos 50 e hoje é o escritório de Rouff. “Trabalho em seguros, financiamento, essas coisas”, diz num sotaque que engole os L e abrevia frases num som onde se notam mais consoantes do que vogais e se associa à Pensilvânia holandesa, rural, conservadora, marcada pela cultura e imaginário Amish que o filme de Peter Weir, A Testemunha (1985), ajudou a alimentar. 

A casa fica numa das ruas centrais de Shillington, a uma hora e meia de carro para Leste de Gettysburg, onde se deu a última batalha da Guerra Civil Americana, em 1865, que dividiu o Norte e o Sul, e a menos de uma hora da cosmopolita Filadélfia, a capital do estado, cidade onde foi assinada a independência dos Estados Unidos em 1776. É uma paisagem de campos de cultivo, searas por aqueles dias à espera do primeiro calor para romper, celeiros, leitarias e vacarias, grandes depósitos de leite, um território cuidado, pontuado por centros comerciais de beira de estrada iguais aos que existem, com as mesmas marcas, detidos pelas mesmas corporações. Camiões cisterna cruzam-se com carroças dos Amish numa estranha metáfora sobre a possibilidade de coexistência de muitos tempos e culturas no mesmo território. Ilusão?

Uma intimidade estranha

Passa pouco das duas da tarde e a chuva miúda que caiu toda a manhã deixou no ar um cheiro a terra molhada. Há pouco movimento entre as casas de um e dois pisos ao longo das ruas. Ninguém anda pelos passeios limpos e os poucos carros estão estacionados de forma ordenada. Destaca-se um. É um contraste de cor. Uma carrinha preta em frente de uma casa branca sem mácula, e junto a um arbusto cor-de-rosa. Era aquela a dogwood tree do conto com o mesmo nome,The Dogwood Tree: a Boyhood, publicado por Updike em 1965. Escreveu ele: “Quando eu nasci, os meus pais e os pais da minha mãe plantaram uma dogwood tree no pátio lateral da grande casa branca onde vivemos durante a minha infância. ... Essa árvore era eu, num certo sentido.” 

A carrinha preta pertence a Dave Rouff, um homem alto, cabelo louro grisalho penteado para trás, relógio grande no pulso e um grande anel de ouro com monograma e um símbolo difícil de perceber a brilhar na mão esquerda. Veste preto e os olhos claros, entre o verde e o azul, tentam perceber quem tem pela frente. “Pelo sotaque pensei que fosse uma judia novaiorquina gorda”, diz, enquanto tenta quebrar o gelo com um efusivo aperto de mão, lançando a pergunta que lhe permite acertar o discurso: “Leu os livros do John?” Mas antes que a conversa avance, conta que vem de um funeral e precisa de deixar em casa a mulher, Maria. Depois terá todo o prazer em abrir as portas da casa e falar.

Não há qualquer barreira física entre a casa e a rua. Pode-se avançar pelo jardim e ficar numa das cadeiras de ripas colocadas debaixo da grande cerejeira que já está em flor. Nos anos de austeridade, a família Updike criava ali galinhas e cultivava espargos que depois vendia para aumentar o rendimento doméstico. Tenta-se imaginar onde estaria o galinheiro, os canteiros, onde iria dar a mangueira caída agora no chão. Há flores recém-plantadas a contornar o passeio e ouvem-se vozes de crianças num quintal ao fundo. Dave Rouff regressa, chama a atenção para a sujidade da obra no interior e enquanto abre a porta conta a sua própria relação com aquela terra, diz, orgulhosamente, que o avô foi o primeiro habitante de Shillington a ter automóvel e que as pessoas paravam na rua para o ver passar. “Talvez John  também tivesse olhado, quem sabe?” Dave tem menos dez anos que John — é assim que chama àquele que foi até há pouco tempo o mais famoso filho da terra e que agora partilha o protagonismo local com a cantora e compositora Tayler Swift. Afirma que se lembra de o ver, “um rapaz meio tímido, com um porte altivo, de quem se dizia ter talento” e se estranhava a atitude. Conta ainda que essa imagem é vaga e contrasta com a de Wesley Updike, o “simpático professor de Matemática” do liceu, efusivo, que gostava muito dos alunos e os mandava sentarem-se por tamanhos na sala de aula. “Era um professor diferente. Cuidava do jardim, fumava cigarros”, precisa Rouff sobre aquele homem natural de Trenton, New Jersey, que tentou lidar o melhor possível com o que considerava o “encarceramento rural” da vida na terra dos Hoyer, a família da mulher. 

“Vi o meu pai chorar uma única vez”, escreveu John Updike noutro conto, My Father’s Tears (2006). Foi numa estação de comboios numa cidade de ficção, pai e filhos apertavam as mãos enquanto o filho ia para mais um ano na universidade. “Ele era mais alto que que eu, apesar de eu não ser baixo, e percebi, a sua mão quente na minha enquanto ele tentava sorrir, que a sua perspectiva era diferente da que eu tinha. Eu ia para algum lugar e ele estava a ver-me ir. (...) Ele tinha-me amado e isso nunca foi tão claro para mim. Foi uma coisa que nunca precisou de ser dita e agora as suas lágrimas estavam a dizê-la.” Como o filho que viu o pai chorar, John também deixou um dia a Pensilvânia num comboio para Boston e ficou a viver no estado do Massachussetts até morrer, em 2009. 

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No final de Março, a casa no centro dessa paisagem era um estaleiro discreto. Da rua, surgia num branco imaculado e no interior cheirava a um misto de gesso, madeira cortada, cola e tinta

Com 26 romances publicados em 49 anos e vários volumes de contos, poesia, teatro, livros para crianças, além de crítica e ensaio, John Updike escreveu pofusamente sobre ele mesmo e a autobiografia era o seu subtexto. Os biógrafos defendem isso. No recente Updike (2014), Adam Begley estica a afirmação numa pergunta que é também uma provocação e lhe serve de alicerce à biografia que tenta demonstrar como a vida pessoal de Updike foi o alimento da sua ficção: porque não dizer que Updike escreveu “compulsivamente sobre si mesmo”, até “à nausea”? A casa onde a mãe quis provar que era escritora e onde criou o filho para ser escritor, entre livros e leitura, foi central no que se seguiu. “O meu mais profundo sentido de mim mesmo tem a ver com Shillington”, declarou numa frase que Adam Begley recupera.

A casa da família fica perto da Casa dos Pobres — a Poorhouse do romance de estreia publicado em Portugal com o título A Feira — como nota Dave Rouff. “Já não existe”, salienta, apontando para a parte de baixo da rua, junto a um muro branco, próximo da casa do gelo, onde no início do século XX, nos verões quentes da Pensilvânia, a população da terra ia buscar meios para conservar alimentos e manter fresca a água. Por detrás do muro, há uma colina. “No Inverno, os rapazes costumavam descê-la de trenó depois dos nevões. Eu fiz isso muitas vezes, o John também. Todos fazíamos”, assegura Dave Rouff, sublinhando que naquela época dez anos de diferença não chegavam para alterar costumes na Pensilvânia que olhava de lado a mudança. Apenas o fizeram privar com o escritor que viveu na casa de que agora é o guardião quase acidental. 

Rouff sobe as escadas, um vulto negro em contra-luz. Os degraus de madeira ligam o espaço social, rigidamente gerido pela família Updike, ao piso dos quartos onde a casa de banho entretanto acrescentada ao projecto original foi retirada. A um canto, uma pilha de radiadores em ferro trabalhado vão substituir outros, mais modernos. Nas janelas, a madeira está rodeada por fita adesiva para uma primeira demão de pintura. A reconstrução da casa de Shillington — orçada em 350 mil dólares (315 mil euros) — quer recuperar um modo de vida e ser repositório do universo criativo de Updike. Todas as intervenções feitas após 1945 foram rejeitadas num projecto que segue a arquitectura dos anos 30 e privilegia, nos detalhes, informações contidas nas notas autobiográficas de Updike e da mãe, Linda. Um e outro tinham no entanto uma relação diferente com o espaço. Para Linda foi o contacto com momentos difíceis, a perda de poder económico. Para John era o seu centro que viu ser-lhe retirado. A mãe deu-lhe os livros, mas foi a responsável por um luto do qual ele nunca recuperou, desde o dia em que, retiradas as últimas coisas, viu a casa encolher na paisagem enquanto a olhava pela janela de trás do carro que seguia em direcção à quinta. John nunca lhe perdoou. 

Ir para a escola passava a ser uma viagem de carro com o pai, em vez do passeio a pé, já não era possível descer o monte de trenó. Ir para o campo foi aprofundar a sua solidão de filho único num mundo de adultos. Em 1950, cinco anos depois da mudança, já em Boston, a mãe escrevia-lhe num carta: “Se eu pudesse saber o quanto odiavas deixar aquela casa talvez tivesse arranjado coragem para não ir embora.” John voltaria lá várias vezes ao longo da vida e em todas disse que o único espaço que se mantinha imutável era o sótão. 

Chega-se lá por uma porta baixa e larga com uma velha fechadura de ferro forjado e seguem-se os degraus estreitos. Àquela hora do dia, umas quatro da tarde, o espaço é um triângulo invadido por uma luz dourada a entrar pela única janela. O soalho, de longas tábuas perfiladas, parece intocado há anos. Podia ser um lugar de qualquer tempo que lhe lembrava um período bastante concreto: o de um momento em que alguma coisa se desfez para sempre. Retratou um sentimento semelhante em Still of Some Use, conto publicado em 1980, em que um rapaz entra no sótão para o despejar dos seus brinquedos quando os pais se dirvorciam. Aí, John Updike mistura a sua biografia com a do seu terceiro filho, Michael, após o fim do seu primeiro casamento com Mary Pennington, em 1974, e cria uma personagem capaz de sintetizar o sentimento de perda experimentado por ambos quando deixaram as casas de origem. 

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A reconstrução da casa de Shillington — orçada em 350 mil dólares (315 mil euros) — quer recuperar um modo de vida e ser um repositório do universo criativo de Updike
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“Conta-se que era este o lugar preferido de John”, continua Dave Rouff que cola agora a sua própria biografia à do célebre conterrâneo. “Se não fosse o dele seria o meu”, acrescenta, já a descer as escadas, chave do carro na mão, intercalando aquele espaço íntimo de Updike com o território social que partilharam. O parque de jogos onde os rapazes jogavam roofball, desporto que consiste em atirar a bola ao telhado e antes que ela caia ir marcando pontos no que parece ser uma adaptação do baseball. O campo fica a uns dez minutos a pé da casa, próximo do antigo liceu. Algumas dezenas de adolescentes correm agora pelo campo, antes de um jogo de basquetebol. A neve das últimas semanas deu tréguas e começa “a temporada dos jogos ao ar livre”, precisa Dave que narra logo de seguida uma sucessão de episódios bizarros sobre o que é viver em Shillington e arredores. Guia em direcção a um ponto alto fora da cidade e pára junto a um lago com uma grande casa. É uma clareira numa floresta, onde se ouvem pássaros e o barulho do vento nas árvores. “Era uma casa de Verão”, vai dizendo. “Conta-se que era o ponto de encontro de um grupo semi-privado religioso com ligações à Alemanha. Quando éramos miúdos vínhamos para aqui nas férias grandes, trazíamos pressões de ar e atirávamos aos pássaros, aos coelhos. Toda a gente vivia na rua. Agora não vê ninguém”.

São uns cinco, seis quilómetros desde o centro de Shillington. Conta que viviam por ali umas freiras católicas que os admoestavam nas suas aventuras juvenis. “Fugíamos delas a sete pés”, ri com uma espécie de nostalgia e segue a estrada. Entra um frio de fim de tarde pela janela aberta. Diz que é comum quem anda por ali levar armas nos carros. “O crime aumentou e ninguém quer ser apanhado desprevenido.” Já não fala de Updike mas de uma realidade que talvez Updike tivesse trabalhado na ficção caso tivesse testemunhado a chegada de uma comunidade nova. “São imigrantes ilegais, mexicanos e porto-riquenhos”, conta Dave, “que fazem o que ninguém quer fazer, trabalho duro...” A estrada desce pela colina oposta até um restaurante. São seis da tarde, horas de jantar no campo. As conversas perdem-se... O lugar está cheio e todos parecem notar a chegada de alguém estranho à terra junto com alguém da terra. “Aqui come-se comida tradicional holandesa”, anuncia Rouff. Sopa de cebola, fígado frito, carne estufada com puré de batata, tartes. Come-se em silêncio, olhares curiosos por cima dos pratos. “A maior parte destas pessoas nunca saiu daqui nem quer sair”, diz, enquanto bebe uma coca-cola, se certifica de que não há multibanco e comenta novos episódios que não se sabe bem se são verdade ou ficção. Conta-se que...  “Na noite de Natal um rapaz de boas famílias estoirou os miolos a um porto-riquenho que lhe entrou em casa para o assaltar...” Faz silêncio. Diz os nomes de alguns políticos. Trump, Obama, fala da 2ª Emenda à Constituição dos EUA que dá o direito aos cidadãos de possuírem armas e garante que não vale a pena ninguém vir contestar esse direito por ali. Rouff fala como se testasse quem o ouve sobre uma terra que só ele conhece. “John gostava deste sítio mas não tinha uma relação fácil com ele... Se leu os livros percebe esse mal-estar. Será mal-estar?”

Comparado com aquele campo a uns seis, talvez oito quilómetros de Shillington, por sua vez uma cidade muito rural quando comparada com Reading e muito mais ainda com Filadélfia, pressente-se pelo menos o isolamento que terá sentido quando o levaram para a quinta. Em Couples (original de 1968, Casais Trocados, na tradução portuguesa) Updike escreveu sobre essa espécie de desenraizamento sentido na primeira grande mudança que é a saída de casa. “Deixem-me falar-vos de casas. Todas têm uma saída.” Depois de Shillington e de Plowville seguiram-se outras na sua vida. Boston, Ipswich, Tucson, Beverly... Quando, pouco tempo antes de morrer, recordou na ficção as únicas lágrimas do pai no comboio em que ele, John, deixava a Pensilvânia, percebia outra sensação mais profunda nesse denraizamento original e que seria central na última fase da sua vida literária. Sair de casa, da primeira casa, fora a primeira grande experiência de morte. Ao deixar o número 117 da Philadephia Avenue, John Updike sentiu que morria pela primeira vez. 

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