Uma peça em passo de corrida

Pedindo ajuda ao passado e identificando as questões essenciais da sua obra, João Fiadeiro estreia no Teatro Maria Matos O que Fazer Daqui para Trás, após uma ausência criativa de oito anos. Uma peça em passo de corrida, em que importa tanto o que se vê quanto o que se imagina.

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Há um lastro que se adivinha em cada um dos performers e que é também um lastro que pareceu essencial a Fiadeiro para retomar a sua actividade criativa depois de Para Onde Vai a Luz Quando se Apaga?, de 2007 DR

No momento em que tomamos contacto com O que Fazer Daqui para Trás, peça com que João Fiadeiro põe fim a um silêncio de oito anos, vemos um corpo exausto que corre até um microfone colocado no centro do palco. Quando o aborda, ofegante, é esse corpo que naquela sala de teatro, naquele momento, nos diz sentir-se como um ponto que pode seguir em qualquer direcção, cair para qualquer lado como a bola de ténis de Woody Allen em Match Point, quando bate na rede, sobe e, por um segundo, a nossa atenção fica suspensa, sem perceber se é uma vitória ou uma derrota que se segue. Tudo pode acontecer a partir daí. Depois esse corpo abandona a cena em passo de corrida e passados alguns momentos outro virá, igualmente esbaforido, partilhar uma qualquer ideia em duas ou três frases. E assim sucessivamente, até percebermos que cinco corpos vão alternando a sua tomada da cena para depositarem no público fragmentos que pouco ou nada dizem.

E se pouco ou nada dizem é porque as suas partilhas são pistas que cada um terá de trabalhar, são a sugestão de uma compreensão e interpretação do mundo feita sempre com um conhecimento parcial. Opinamos muitas vezes sem saber, com acesso a uma parcela ínfima de informação e fabricamos teorias frequentemente preenchendo todas as lacunas com projecções e desejos pessoais. E se os corpos nos aparecem exaustos, logo desde o início, e em seguida se esfumam durante minutos, é porque Fiadeiro nos empurra para a conclusão de que a corrida destes cinco se terá iniciado antes sequer da abertura das portas do teatro e de que estamos condenados a adivinhar sempre o que acontece com os intérpretes quando estão fora do nosso campo de visão.

O que Fazer Daqui para Trás, no Teatro Maria Matos, Lisboa, de 11 a 14 de Novembro, remete de forma clara para um passado que precede a peça e espera pacientemente pela chegada do público. O que Fazer… não tenta convencer-nos de que o início do espectáculo começa com as primeiras imagens e os primeiros sons que se desvendam ao público. Há um lastro que se adivinha em cada um dos performers e que é também um lastro que pareceu essencial a Fiadeiro para retomar a sua actividade criativa depois de Para Onde Vai a Luz Quando se Apaga?, de 2007. Esse lastro, inevitavelmente, carrega consigo a “reconciliação” de Fiadeiro com os seus solos passados, quando no final de 2014 apresentou em Lisboa I Am Sitting in a Room Different from the One You Are Now, I Was Here e Este Corpo que me Ocupa. Em comum com essa revisitação, O que Fazer… partilha “um movimento inscrito na mesma ideia de retorno ou de recuperação de um lugar ligado à arte, à composição coreográfica e ao espaço do teatro”.

Ao partir para esta nova criação, acompanhado de dois performers com quem trabalhou em anos recentes na área da investigação, Carolina Campos e Daniel Pizamiglio, Fiadeiro propôs-se identificar as grandes questões apensas ao conjunto da obra que desenvolveu durante os últimos 25 anos. “Fizemos um trabalho exaustivo não só de olhar para muitas obras antigas”, descreve ao Ípsilon, “mas também para textos que fui escrevendo, diários de bordo, trabalhos de artistas que me afectavam e os afectavam a eles. Ao fazermos isso, elaborámos um mapa e nesse mapa identificámos três zonas cruciais e recorrentes.” Tal desbaste prévio daqueles que deveriam ser os fundamentos de O que Fazer… marcou uma diferença de vulto em relação à prática habitual deste coreógrafo em pele de dramaturgo. “Até à minha criação anterior quase pedia que os performers confiassem. Não tinham logo acesso à questão e isso às vezes prolongava-se durante meses – não há resistência que aguente tanto silêncio. Agora coloquei as questões em cima da mesa desde o primeiro dia de ensaios.”

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Em cima da mesa, portanto, três questões fundamentais: a relação entre ausência e presença; a relação entre apresentação e representação; a tensão entre tempo circular e tempo linear. A partir daqui, havia que criar um dispositivo que respondesse a estas inquietações. E esse dispositivo, precisamente, constrói-se também sobre a questão “Como vivermos juntos?”, à qual Fiadeiro dedicou a sua investigação. “Como não sou cientista nem filósofo nem teórico, no sentido académico, não posso colocar a informação nos lugares tradicionais – não escrevo artigos, não descubro verdade nem soluções. A arte era o lugar privilegiado para prosseguir, um território onde se pode continuar a perguntar.”

História incompleta
Se é de um corpo exausto que parte O que Fazer…, isso deve-se a Fiadeiro ter querido começar pelo fim, invocar um passado que, não se vendo, está obrigatoriamente lá. Daí ter pedido aos seus performers que integrassem o palco como um lugar de passagem nas corridas que descrevem nas imediações do teatro, prescindindo do absoluto controlo dramatúrgico sobre uma narrativa. Fiadeiro não sabe por que ordem os performers passarão diante do público, não pode antecipar com precisão o texto que cada um entregará (se uns respondem perante um texto fixado, outros correm para se cruzarem deambulando pelas ruas com aquilo que depois partilharão), não pode sequer prever se um percurso individual poderá desembocar numa situação em que a sua entrada em cena coincida com a presença de outro performer – que assim se verá interrompido e destituído.

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MIGUEL MANSO

O que João Fiadeiro acaba por explorar a partir de uma proposta e de um posto de observador é esta peça em que os intervenientes desconhecem a relação que estabelecem entre si, visível e descodificável apenas pelo público. Ao mesmo tempo, obriga os intérpretes a tomarem o palco para dizerem “alguma coisa”. Devem fazê-lo quando sentirem que têm algo a partilhar e cientes de que podem ser interrompidos nesse momento por obra do acaso. “Um dos grandes exercícios aqui”, confirma Fiadeiro, “é aceitar a interrupção não como uma frustração, mas como parte da vida. Nem sempre se consegue acabar uma história.”

E, de certa forma, antes do repouso final de quem passa a peça movido pela urgência, resta talvez essa ideia espelhada nos intérpretes de não se saber colectivamente do que corremos, do que fugimos e o que impede, afinal, que alguém pare e espere pelo outro sem sentir que a cada chegada deve corresponder uma partida.

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