Uma orquestra de dedos e delicadas canções de resistência no FMM

Na primeira noite do 19.º Festival Músicas do Mundo, dois concertos para guardar: Mohammad Reza Mortazavi soou a uma armada de percussionistas e Leyla McCalla cantou histórias do Haiti.

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O percussionista iraniano Mohammad Reza Mortazavi MÁRIO PIRES/FMM
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A cantora norte-americana Leyla McCalla MÁRIO PIRES/FMM
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O percussionista iraniano Mohammad Reza Mortazavi MÁRIO PIRES/FMM
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A cantora norte-americana Leyla McCalla MÁRIO PIRES/FMM

Há um jogo de sombras e de luzes que permite agigantar aquilo que, na verdade, pode ser mínimo. É algo que se mostra muitas vezes às crianças para as encantar com dispositivos simples de criação de ilusões, é um recurso frequente em espectáculos de palco pela beleza imensa que pode convocar a sombra ciclópica de um pequeno corpo, é um símbolo recorrente dos sentimentos grandiosos (de uma imensa perfídia a um desmesurado amor) que podem habitar em corpos franzinos ou um truque sempre eficaz usado em filmes de suspense e de terror (geralmente como comic relief) quando uma enorme ameaça se revela, afinal, uma pobre figura inofensiva.

Pensa-se em tudo isto (e em tanto mais) quando se vê e ouve o percussionista iraniano Mohammad Reza Mortazavi actuar a solo no dia de arranque do Festival Músicas do Mundo (FMM). Por enquanto, os finais de tarde e as noites acontecem no Largo Marquês de Pombal, no centro da aldeia de Porto Covo, onde o FMM está instalado até domingo – na segunda-feira, muda-se para a sua morada habitual em Sines. E pensa-se nisto também porque o povo que vai chegando ao largo para o primeiro concerto pós-jantar vai verbalizando o espanto de olhar para o palco e perceber que o som que segundos antes lhe chegava aos ouvidos é produzido por um único homem em palco. Mas Mortazavi não é uma one man band, alguém que acumula instrumentos para construir uma pequena orquestra que toca em simultâneo; é um músico que apenas faz correr os dedos por um tonbak e um daf, alternados, e que com esses gestos parece criar o rumor de uma armada de percussionistas.

Há quem desconfie que está a ser enganado – “Não é possível ser só ele!”, ouve-se aqui ao lado –, há quem converta a estupefacção em gracejos – “Onde é que estão os outros todos?” ou “Mas quantos dedos é que o tipo tem?” –, há quem acredite que só um deus hindu teria braços para tanta percussão. E há crianças a perguntar aos pais – tão espantados e incapacitados para uma resposta cabal quanto elas – como é que aquilo se faz. Aquilo que Mortazavi faz é pegar num dos seus instrumentos tradicionais persas e criar cavalgadas rítmicas que embalam e hipnotizam, numa tal profusão de sons que parece rodear-nos e enlear-nos num vórtice de irresistível encantamento. Se, por vezes, as suas mãos parecem reproduzir o som de um exército de formigas em marcha acelerada ou a chuva a cair vagarosamente, a experiência de assistir a um concerto de Mortazavi é sempre de um deslumbramento musical. Não é mero virtuosismo nem número circense. É de uma musicalidade que se basta a si mesma. Pensar que aquilo que faz poderia ser o acompanhamento de outro instrumento seria quase criminoso.

Migração, detenções, colonialismo

Após uma rápida consulta popular feita a partir do palco, a cantora norte-americana Leyla McCalla logo conclui que o amor de Porto Covo por Donald Trump não será muito diferente do seu. E de pronto arranca com Money is king, tema de Neville Marcano, que diz coisas como “if a man has money today / (…) he can commit morder and get off free / live in the governer’s company” e prossegue descrevendo um mundo de permissividade e indulgência para os ricos e poderosos, contrabalançado por dificuldades e interditos para quem não tem um tostão. Uma outra forma de falar das presas e dos predadores que, à boleia de um provérbio haitiano, dão título ao seu segundo álbum a solo – A Day for the Hunter, a Day for the Prey.

Depois de virar costas a uma carreira de música de orquestra e após mergulhar num intenso estágio de folk americana com os ouvidos sintonizados no passado rural quando se juntou aos Carolina Chocolate Drops, a violoncelista assumiu a sua voz com um disco dedicado aos poemas de Langston Hughes (Vari-Colored Songs). A Day for the Hunter… veio, no ano passado, aprofundar e iluminar a ligação centenária entre o Haiti (terra dos pais de McCalla) e a comunidade crioula do estado do Louisiana. É também a imagem de uma descoberta da sua personalidade musical construída em New Orleans, reduzindo as canções a um trio de instrumentos (que varia nas suas combinações entre banjo, violoncelo, viola d’arco e guitarra) responsável pela manutenção de cada canção num estado de beleza pouco rebuscada e de uma leveza esplêndida. Mas que se ouve também como uma forma de resistência aos relatos em inglês, francês ou crioulo a que Leyla dá voz, mascarando com estas canções delicadas a dureza da migração haitiana, das detenções discricionárias que se canta no tradicional Peze Café ou das penosas histórias do colonialismo.

Um colonialismo que, diz a cantora ao microfone, cada vez mais lhe parece ter dividido o mundo entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, entre ricos e pobres. Também por detrás da festa rija que garantem os peruanos Bareto – últimos de um dia que se iniciou com o fado ao jeito de Tony de Matos de um André Baptista que precisa ainda de crescer e de criar repertório, e da guitarra portuguesa sabedora de mestre António Chainho – há muito mais do que apenas celebração despreocupada e alheada. Mas no fim de noite de Porto Covo, aquilo que se pedia aos Bareto era aquilo que ofereceram: uma cumbia elástica, campesina e tradicional num segundo, psicadélica e propensa a rasgos rockeiros no seguinte. Uma forma justa de festejar a chegada do 19.º FMM – que continua por Porto Covo este sábado (Waldemar Bastos, Mabang) e domingo (Nessi Gomes, The Barbarettes).

O PÚBLICO esteve no Festival Músicas do Mundo a convite da organização

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