Uma lucidez sem véus

Trabalhos recentes de Ângela Ferreira mostram-se em Lisboa.

A reflexão sobre um passado colonial e pós-colonial que se cruza com uma história pessoal
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A reflexão sobre um passado colonial e pós-colonial que se cruza com uma história pessoal
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O espaço da exposição é introduzido por uma enorme estrutura exterior de madeira encimada por megafones e incluindo uma instalação sonora, numa citação das torres de rádio de que fala o título escolhido por Ângela Ferreira para esta sua antológica. Trata-se, como sempre sucede no trabalho da artista, do ponto culminante de uma pesquisa extensa, com semelhanças importantes com as suas congéneres académicas, sobre os vestígios materiais das utopias políticas em Moçambique no período entre 1975 e 1977.

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A peça, intitulada Kaapse Sonnette/Cape Sonnets, reproduz uma torre vista no documentário Kuxa Kanema de Margarida Cardoso (de 2003), que é ele próprio uma leitura da realizadora dos resquícios dos primeiros filmes documentais feitos em Moçambique no período pós-independência. Encontramos assim, nesta peça que nos recebe à entrada do edifício da Galeria Avenida da Índia, uma síntese daquilo que define o trabalho de Ferreira: a reflexão sobre um passado colonial e pós-colonial que se cruza com a sua própria história pessoal, e a materialização dessa reflexão em objectos artísticos que se apropriam de diferentes disciplinas – escultura, fotografia, filme, desenho, xilogravura a laser, etc. – para concretizar uma síntese pessoalíssima de cada questão abordada.

A exposição, comissariada por Ana Balona de Oliveira, mostra um conjunto de trabalhos relativamente recentes, muitos deles a incluir peças de escultura que parecem exigir maior respiração num espaço que, contudo, não é exíguo. O processo de trabalho da artista condu-la a estabelecer pontes conceptuais entre os vestígios iconográficos da história moçambicana e momentos chave da arte modernista até à transição para a contemporaneidade. O utópico (e nunca concretizado) Monumento à Terceira Internacional de Tatlin, ou os quiosques agit-prop de Klucis, por exemplo, ambos ícones tantas vezes citados dos tempos heróicos pós-revolução soviética, podem conviver aqui com outras formas, e nomeadamente com aquelas que – neste caso – Robert Smithson definiu sobre a arte do futuro – já não utópica, porque definitivamente descrente sobre a possibilidade de alcançar a fórmula perfeita, mas atópica, nem eufórica, nem disfórica.

Estão neste caso as salas de cinema que imaginou em minas abandonadas, e que formalmente acabam por dialogar com outros espaços subterrâneos, cada um deles com a sua própria história. É aqui que encontramos referências, por exemplo, às minas de diamantes da África do Sul, a lugares de reunião clandestinos no Ocidente, e que nos deparamos, por fim, com uma história feita de redes, de cruzamentos onde Ângela Ferreira está permanentemente a marcar o seu lugar de artista plástica.

E porque este corpo de trabalho também toca a imagem fílmica encontramos tanto o cinema de Jean Rouch como o de Godard, o de Margot e Jorge Dias como o de Margarida Cardoso já mencionado. Dito de outra forma, navegamos entre as imagens do cinema documental, antropológico e ficcional, sem que nunca Ferreira tome posição sobre a interpretação que devemos fazer de cada peça apresentada. De destacar as obras Studies for viewing cabinets for Margot and Jorge Dias, de 2013, e A tendency to forget, que valeu à artista o Prémio Novo Banco Photo em 2015. Ambas exemplificam essa indeterminação interpretativa que se afasta definitivamente da tese académica – e por isso as críticas feitas por Pais de Brito ao trabalho de Ângela Ferreira, referidas em artigo sobre a reedição dos filmes de Margot Dias na edição de 5 de Agosto do Ípsilon, não só não fazem sentido como revelam com clareza a possibilidade de suscitar emoções que os temas abordados por Ferreira continuam a possuir. É que o olhar da artista nunca é frio, distante. É sempre um olhar sobre a história própria, dela e dos que a precederam, mas lavado, limpo, de uma lucidez sem véus.

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