Uma história de exílio

Tendo como cenário a América do século XIX, Sebastian Barry continua a sua indagação sobre a identidade de uma família irlandesa.

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O lirismo da sua prosa, o estilo elegíaco, e a exactidão poética: um dos mais talentosos autores de língua inglesa da sua geração COLIN MCPHERSON

Em Dias Sem Fim — vencedor do importante Costa Award — o escritor irlandês Sebastian Barry (n. 1955) continua a contar a história da família McNulty — familiares de outras gerações já surgiram em romances anteriores, nomeadamente em Escritos Secretos e em A História de Eneas (Bertrand, 2009 e 2010, respectivamente) — mas desta vez recua ao século XIX e à época da Grande Fome na Irlanda, e escolhe o cenário da guerra americana e do massacre dos índios, mas sempre com a vontade de indagar a identidade irlandesa. Thomas McNulty, a personagem principal e narrador deste romance, alistou-se no exército norte-americano em 1851, com dezassete anos de idade. Chegara da Irlanda havia quatro anos. Viajara sem familiares num barco de emigrantes (“os pobres, os destruídos e os famintos”), durante seis semanas, com destino ao Canadá. Filho de gente pobre de Sligo, vinha de uma família arruinada (o pai era exportador de manteiga para Inglaterra), que morrera nos anos da fome, e à qual apenas ele sobrevivera. “A fome é uma espécie de incêndio, uma fornalha.” De certa forma escorraçado da sua terra natal, Thomas começa a sua deambulação em busca de uma redenção que talvez nunca chegue.

Durante dois anos (antes de se alistar no exército) trabalha, com o seu inseparável amigo John Cole (bisneto de uma índia americana), como dançarino travestido num bar de mineiros; eles eram as únicas ‘raparigas’ no lugar de Daggsville. Mas o passado nunca deixa de ser um terreno minado, porque o passado afinal ainda não passou. O que se segue é uma longa história de exílio, dias de terríveis agruras, de horrores, de perigos, mas também de espanto e vida.

Sebastian Barry, três vezes nomeado para o Booker Prize — primeiro com A Long Long Way (1995), depois com o belíssimo Escritos Secretos (2009), e a última, em 2011, com Do Lado de Canaã (Bertrand, 2012) — para além de romancista, é também um prolífico dramaturgo e poeta. O lirismo da sua prosa, o estilo elegíaco, e a exactidão poética, associados ao cuidado de atento ourives com que urde as tramas das suas histórias, fazem de Barry um dos mais talentosos autores de língua inglesa da sua geração. Esse virtuosismo é bem notório em Dias Sem Fim, um romance que apesar de ter a América como cenário, não deixa de se remeter para a Irlanda do atribulado Eneas McNulty (a personagem de A História de Eneas, que tinha lugar nos começos do século XX), o mesmo país deste Thomas que emigra, também ele nascido no lugar de Sligo, na Irlanda rural dos “velhos muros sombrios” e das “azinhagas assombradas”.

A vida desta espécie de anti-heróis irlandeses, começa sempre de maneira conturbada, como se o destino quisesse que logo bastante novos eles vivam numa espécie de “lado errado” da História e das atribulações dos tempos, com o destino sempre a dificultar. Como num jogo de espelhos, Sebastian Barry serve-se, mais uma vez, de um anti-herói (em jeito de pícaro moderno) para nos mostrar como a história da Irlanda, de maneira maligna, se insinua e pode perturbar e alastrar como uma mancha na vida dos irlandeses quando estes menos esperam. “Reconhece-se um irlandês porque ele o tem escrito na cara. Fala de um modo diferente e não tem muito jeito para cortes de cabelo, e quando bebe, um irlandês não se parece com nenhum outro ser humano. Não me digam que o irlandês é um exemplo de humanidade civilizada.”

Em Dias Sem Fim há um mundo interior que não se mistura com o horror por que passam os protagonistas, esse mundo calmo e quase sagrado tão característico das personagens dos romances de Barry. Curiosamente, neste livro é esse mundo que salva os dois homens, pois numa época como a que viveram, conseguiram como que isolar-se dela e viver o espanto da vida no meio dos terríveis perigos que enfrentam; é assim que Barry nos apresenta o modo como viveram a homosexualidade e a ‘adopção’ de uma menina índia Sioux que tentam salvar a todo o custo. Mais uma vez, o que fascina em Barry é o minucioso trabalho de escrita, a capacidade de descrever tudo intensamente e de maneira bastante visual, ao mesmo tempo que a história vai montando a sua teia diante do leitor.

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