Uma despedida compelindo o pranto

Neste longo poema, Jacques Roubaud lutou contra a impossibilidade da escrita, da fala, após a morte da mulher. O livro que escreveu põe em conflito a possibilidade e a insuficiência da palavra no derrube da barreira do mutismo.

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É como se o absurdo avassalador da morte precisasse de ser construído após o baque da própria morte

Ao contrário do que acontecia no poema de John Donne, o livro de Jacques Roubaud­ longo poema sequenciado em ocorrências organizativas que trabalham em torno do número nove ­ não é uma despedida que proíbe, mas uma que impele o pranto. Alguma Coisa Negro é a reacção que tenta contrariar a paralisia causada pela dor. O poeta metafísico inglês, dado o patamar estratosférico em que posicionava o amor, concebia a matéria do afastamento como acidente negligenciável; em Jacques Roubaud, o poema funciona como um dos mais árduos instrumentos na luta contra uma afasia resultante do afastamento mais radical: o da morte. Afasia, essa, que não é unicamente um recurso da retórica posta ao serviço do texto poético, mas uma circunstância nascida da biografia de Jacques Roubaud, que passa a integrar o organismo actuante do poema.

Após a morte da mulher, Alix Cléo Roubaud, o poeta atravessou um traumático período de depressão que anulou qualquer tentativa de comunicar. Há um poema da poeta galesa Gwyneth Lewis chamado Afasia, que termina com os seguintes versos, que quase se diria poderem comunicar com o esfacelamento sintáctico, compositivo e referencial de Roubaud: “Cortaram o fio/ entre cada coisa e a palavra correspondente// e a minha cabeça é uma loja de velharias/ de todos os lugares onde estive.” Esse esfacelo da frase, através do trabalho de rasgamento da sintaxe, funciona de forma dupla. Ele constitui o modo como esta poética assume a sua interpretação do vanguardismo e é uma actualização da corrente autodestrutiva ou inibitória que preenche a orgânica deste livro de poemas. É como se o poema se recusasse a seguir uma via obediente, perfeitamente disposta.

Alguma Coisa de Negro é o exorcismar simbólico (efectivo?) desse estado de bloqueio comunicativo­  e da própria expressão escrita. Um exercício de esconjuro de um mal nunca passível de aplacar por completo, compreender a fundo, nem, realmente, resolver. Todo o livro é percorrido por um decorrente cepticismo perante a possibilidade de derrubar a barreira silenciadora da morte; todo ele é a tentativa relutante de defrontar a inutilidade de afirmar, de escrever­  “Estou descontente diante das palavras.” (p.209) é um verso importante em Alguma Coisa Negro. Uma modulação que se manifesta através da resistência dos materiais, da acumulação de elementos como o pó, a lama, a sujidade, que parecem rodear as realizações e os efeitos do poema, como ameaças ou entraves­  “arquipélagos de pó castanho transformam-se em ilhas negras, bordejadas por uma lama cremosa, que se vão afundando aso poucos, horríveis” (p.41); “Na minha tigela arquipélagos de lama escura que se/ fundem” (p.55).

São presenças imagéticas que agem como forças de bloqueio, mas que também funcionam como memoriais da morte, da terra que acolhe os corpos. De um modo similar, a paisagem que rodeia o poema é frequentemente cifrada numa ocorrência que se repete­  “a luz entra, desde sempre, desde o abismo dos telhados” (p.149); “Do fim da tarde, que pesa, sobre o abismo dos telhados/ entre as duas janelas” (p.169). Não se trata bem de uma “paisagem interior”, mas de uma selectividade na forma como se regista o espaço que o poema acolhe, oscilando entre o mundo natural e a geografia humana (como aqui), que torna mais acutilante a brutalidade da morte de que o livro é a obra póstuma, como se lê num dos versos de Alguma Coisa Negro.

A presença da morte, que, obviamente, prevalece ao longo de todo o livro, é por vezes filtrada através de momentos de intenso pendor simbólico. Sirva de exemplo o poema em que o poeta descreve uma visita à campa de Wittgenstein. Essa composição, intitulada, precisamente, Ludwig Wittgenstein, desdobra os seus sentidos como faixas que se pudessem ir levantando e deixando cair, sem completamente desfazer o cômputo geral. Não se trata apenas da situação do sujeito que recorda um momento passado diante de uma campa e, portanto, perante a ideia da morte, mas também do que esse passo da biografia comum­  do poeta e da sua mulher­  transportou para momentos posteriores­  “Penduraste a fotografia da lápide na parede, sobre o papel castanho, escuro, japonês, da parede” (p.69). Portanto, já não é apenas a evocação de um episódio familiar, conjugal, mas o lastro desse instante, captado em fotografia­  elemento importante, porque Alix Cléo Roubaud era fotógrafa­ , que passou a integrar um quotidiano prolongável no tempo do casal. E que o poema resgata e faz repetir ad aeternum. Mas a convocação de Wittgenstein abre, possivelmente, uma outra possibilidade de interpretação, se nos lembrarmos que o filósofo afirmou, famosamente, que “sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar”. Uma proposição que facilmente poderia integrar alguns dos princípios que este livro desenvolve, mas também contra os quais tenta reagir.

O poema é uma forma de dar forma ao informe, de encontrar contornos para o que é dilacerante. Porque a morte não é um acontecimento estático após o qual tudo cesse. O que não tem obrigatoriamente que ver com uma dimensão metafísica, de vida para lá da morte, articula-se, nesta poesia, com uma noção da morte como processo em aberto ­  enquanto ontologia, mais do que teologia. Como processo que se vai sedimentando sem realmente se fixar no instante do último fôlego­  “A tua morte não pára de se cumprir de se completar.” (p.225); “a tua morte em mim progride” (id.); “quando a tua morte tiver acabado. E ela acabará./ como todas as mortes. como tudo.” Consequentemente, o derradeiro verso do penúltimo poema de Alguma Coisa Negro afirma: “Reconheci a tua morte e vi-a.” É como se o absurdo avassalador da morte precisasse de ser construído após o baque da própria morte. O que, de resto, nos poderia recordar o Michaux de Nós Dois Ainda­  “A que já não é, exige, e a sua ausência absorvente devora-me e invade-me.” (& etc., 1988, trad. Rui Caeiro) Em mais de um ponto se parecem, estes dois poemas escritos como inscrição mutável poisada provisoriamente sobre a morte.

Uma palavra de apreço para a tradução, precisa mas inventiva (quando foi necessário, o que sucedeu com certa frequência) que José Mário Silva fez deste poeta que, até à data, se encontrava praticamente inédito entre nós. Com a breve excepção de um grupo de traduções da autoria de Urbano Tavares Rodrigues, insertas na antologia Sud-Express­  Poesia Francesa de Hoje (coord. Guilhermina Jorge, Jean-Pierre Léger e Etienne Rabaté, vários tradutores, Relógio D’Água, 1993) e, curiosamente, também retiradas de Alguma Coisa Negro.

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