Uma bateria de jazz que se move ao ritmo do afrobeat

À frente do sexteto Communion, o baterista João Lencastre crava cada vez mais fundo o seu nome entre os mais elásticos e desafiantes compositores do jazz nacional. What Is this All About? foi gravado, uma vez mais, na companhia de uma criteriosa trupe nova-iorquina.

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A partir de umas lições de Max Roach a que conseguiu deitar a mão na revista Down Beat, Tony Allen redefiniu a sua forma de tocar. Ninguém em Lagos (Nigéria) usava, segundo ele, os pratos de choque para além de uma função decorativa e foi com Roach, os Jazz Messengers de Art Blakey e Gene Krupa na ponta dos dedos que o sustentáculo rítmico de Fela Kuti juntou estas aprendizagens à linguagem prevalente do high life e a padrões vindos da cultura ioruba para parir o modelo que havia de enformar o afrobeat. Essa cadência hipnotizante, um funk que percorre o corpo todo puxando-o e repuxando-o, havia de ficar impressa em cada um dos discos gravado por Allen desde então, tornando-se a grande bandeira do afrobeat após a morte de Fela Kuti em 1997.

Foi precisamente Black Voices, o álbum gravado por Allen logo em seguida com músicos habitantes do planeta de George Clinton (o aluado líder dos Parliament-Funkadelic), que enfeitiçou o baterista de jazz português João Lencastre a ponto de, durante um certo período, colocar repetidamente o disco a tocar e acompanhá-lo do início ao fim. A insistência em Black Voices acabaria por fazer com que tragasse a linguagem de Allen e a guardasse dentro de si, pronta a manifestar-se em qualquer ocasião. Pode até já ser uma memória distante ou uma resposta instintiva de caminhos pouco claros, mas é uma tentação demasiado grande ouvir essa assinatura na marcha rítmica desenhada por Lencastre em View over the palace, primeiro tema do seu quarto álbum enquanto líder dos Communion. A formação funciona como ponte transatlântica que Lencastre mantém aberta para os Estados Unidos, gravando com um naipe de músicos de topo da cena nova-iorquina, como David Binney, Phil Grenadier, Jacob Sacks e Thomas Morgan, a que se junta ainda o emigrado André Santos. E soa precisamente a isso. Não se trata apenas da questão prática de juntar estes músicos com quem Lencastre diz ter “uma empatia musical e uma boa relação humana”; a própria música, inevitavelmente, soa a uma viagem exploratória empreendida pelas suas composições em busca de solo norte-americano.

“Esteticamente estou mais ligado ao jazz nova-iorquino”, reconhece o músico. “Talvez por ter passado bastante tempo por lá e continuar a viver a cidade. Se de cada vez que fui a Nova Iorque tivesse antes ido para um qualquer país nórdico talvez me identificasse mais com o estilo deles.” Esse encantamento prende-se, em grande parte, com os músicos que compõem Communion e com a sua órbita descrita em torno do saxofonista David Binney. Entre eles, fundamental no percurso de Lencastre, o baterista Dan Weiss. “Já me inspirava só de o ver ao vivo porque é sempre um músico incrível, com muita espontaneidade, ideias muito diferentes e uma forma muito própria de tocar”, conta. Mas aproveitando uma passagem de Weiss por Portugal com a banda de Binney, em 2004, Lencastre pediu-lhe uma aula particular e juntaram-se na casa dos avós do músico português, perto de Sintra, com duas baterias às ordens. “Mudei muito depois dessa tarde. Não tem a ver com questões técnicas, tem mais a ver com a forma como se encara a música – não ter medo do risco, não ter medo de procurar soluções diferentes”, resume. “E continuo a aprender muito com ele. Já o vi dezenas de vezes ao vivo, tenho dezenas de discos dele e sempre que passa por Portugal vamos jantar ou beber um copo. Basta falarmos de bateristas como Philly Joe Jones e já é bastante inspirador.” Em Weiss, João Lencastre encontrou o seu Max Roach.



Elevador para a estratosfera

Não é só no afrobeat sugerido por View over the palace que João Lencastre faz prova inequívoca da sua largueza de horizontes musicais em What Is this All About? Nem apenas na forma estruturada com que trabalha temas assentes em sólidas ideias melódicas. O seu próprio percurso fora do jazz aparece pontuado pelas participações de Tiago Bettencourt (voz) e de Ary (dos Blasted Mechanism, em sintetizador modular). Se as vozes de Bettencourt e também de Sara Serpa servem não propriamente canções, aparecendo a conferir espessura às frases rasgadas por saxofone e trompete, a intervenção de Ary abre as comportas para uma paisagem mais espacial, sobretudo em The house of fun. Claro que, não havendo dúvida de que é o homem dos Blasted a rodar os botões e a lançar o tema para a estratosfera, é a imaginação de Lencastre a fabricar este cenário em que um sexteto de jazz parece repentinamente perder gravidade (em ambos os sentidos).

Tendo como instrumento de composição o piano, João havia de se cruzar com um livro de peças clássicas que comprou sem outra ambição que não fosse a de praticar no seu recato. Mas ao folhear o livro e ver a sua curiosidade desafiada por uma das Dezasseis Valsas compostas por Johannes Brahms no seu opus 39, o músico não resistiu a experimentar testá-la num contexto de banda. É o tema de What Is this All About? que dispensa sopros e guitarra, interpretado em trio clássico de piano, contrabaixo e bateria com uma delicadeza reminiscente dos espaços buscados por Bernardo Sassetti. E foi uma das primeiras composições testadas pelo baterista em palco, ainda em Portugal, antes de enfiá-las no porão a caminho de Nova Iorque.

Depois dessa estada em Nova Iorque, seguiu-se uma longa espera pela edição. What Is this All About? foi gravado em Novembro de 2012, em Brooklyn, misturado quase um ano depois por André Fernandes em Lisboa e só agora editado pela italiana Auand, podendo ser comprado através do site do músico e da sua página no bandcamp. Daí que neste momento, quando planeia avançar para a gravação de um quarteto português – concertos entre 22 e 24 de Janeiro, no Hot Clube de Portugal – com inclinação para “a electrónica e o rock psicadélico” (com André Fernandes, João Paulo Esteves da Silva e Mário Franco), o baterista e compositor não queira ver-se refém de um processo tão arrastado. Até porque para ser justo com a sua actividade actual terá ainda de gravar o trio partilhado com Rodrigo Amado e Miguel Mira, e editar as muitas horas de gravação do No Project Trio com João Paulo e Nelson Cascais, numa formação dedicada à improvisação que não ensaia sequer e depende exclusivamente da cumplicidade existente no momento da execução. É assim, de resto, que João Lencastre acredita que a sua história poderá ser reconstituída. Os concertos podem mudar vidas, mas os discos documentam-nas.
 

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