Um romance tão monstruoso, deslumbrante e avassalador como a Índia

Complexa poética do amor e da perda, fruto da escrita de Arundhati Roy, sumptuosa na riqueza de pormenores, lírica na descrição das paisagens e dos afectos profundos, sem um átomo de exotismo ou sentimentalismo.

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Num país de diferenças bizarras, é a escritora ideal, a que contraria divisões, para juntar tudo na grande festa da confraternização

Passaram-se 20 anos sobre a publicação de O Deus das Pequenas Coisas, o romance que valeu à indiana Arundhati Roy o Booker Prize, em 1997. Aí se conta a história de dois gémeos, um rapaz e uma rapariga, que fazem parte de uma família em declínio, manchada por escândalos e abalada por dramas. Tudo se passa nos finais dos anos 60 do século XX, em Kerala, onde Roy cresceu com a mãe e as irmãs. A narrativa está pejada de detalhes autobiográficos e, tal como agora, com O Ministério da Felicidade Suprema, a Índia com a sua imensa diversidade, faz a vez de personagem principal, suprema e soberana.

Até ganhar o Booker, Roy, então com 35 anos, estudara arquitectura, trabalhara em cinema como actriz e guionista — estava casada com o realizador Pradip Krishen — e ganhava a vida dando aulas de aeróbica. O sucesso mundial de O Deus das Pequenas Coisas fez dela uma escritora aclamada e respeitada mundialmente. No entanto, foi com surpresa que nos apercebemos de que largara a ficção para se dedicar à política, escrevendo textos torrenciais — ensaios, artigos de opinião, documentários — sobre os graves problemas da Índia que incluem, evidentemente, o nacionalismo hindu (cada vez mais acentuado pela ascensão ao poder de Narendra Damodardas Modi), a proliferação nuclear, a degradação ambiental, a corrupção governamental, a desigualdade social e os conflitos político-religiosos. Durante duas décadas, Roy habituou-se a ser ora louvada pelas suas tomadas de posição — uma voz da esquerda radical, activa e empenhada —, ora vilipendiada por aqueles que a consideram ingénua e irrealista, até perigosa. A sua acção durante o longo, exasperante e mortífero processo de emancipação de Caxemira valeu-lhe tempo na prisão e o receio pela sua vida.

Agora, com a publicação de O Ministério da Felicidade Suprema, é muito provável que seja de novo perseguida, uma vez que esta obra, embora esteja inserida na categoria de ficção, é, também, uma transposição de toda uma agenda política fortemente militante. Houve já quem tivesse equiparado este romance ao clássico de Salman Rushdie Os Filhos da Meia-Noite, pela importância e abrangência da descrição do tecido humano do subcontinente indiano e, também, pelo cariz pós-colonial da narrativa. No entanto, existem duas diferenças fundamentais: Roy possui uma ironia muito própria e não se apoia tão fortemente nos “truques” próprios do “realismo mágico”, sendo mais dolorosamente fiel à violência do quotidiano num país que emergiu do colonialismo com um acto traumático — a Partition, separação do Índia e do Paquistão — do qual nunca se refez.

Em Ministério da Felicidade Suprema Roy conta muitas histórias que se vão desenrolando como a corrente majestosa do Ganges, numa cadência que evoca As Mil e Uma Noites. O livro, dividido em 12 capítulos, pode, ainda, ser decomposto em três partes: a primeira passa-se em Nova Deli, a segunda em Caxemira e a terceira novamente numa Nova Deli, mas desta feita uma Nova Deli contemporânea, com a Internet, as comunicações rápidas, a tecnologia, a televisão omnipresente com os seus reality-shows e o cinema de Bollywood, com as alterações drásticas no traçado urbano, visíveis no trânsito caótico, na construção de centros comerciais ofuscantes e de condomínios novos em folha que empurram, sem conseguir eliminar, (ou fazer diminuir) os gigantescos bairros da lata que se espraiam com os seus enxames de gente, numa complexa amálgama de géneros, personalidades, crenças e mesteres.

É em Nova Deli que encontramos uma das figuras principais deste romance: Anjum, uma transexual, ou seja, uma hijra. Anjum já foi Aftab, um menino hermafrodita que deixa a sua família (muçulmana) ainda criança — dá-se conta de que as hijras gozam de um estatuto especial, uma vez que são simultaneamente aduladas e rejeitadas — para viver numa comunidade de hijras. Anjum é maravilhosamente estranha, corajosa, desafiadora, sarcástica, caprichosa e bondosa, uma mistura tão cativante quanto exasperante. Quando, depois de uma viagem ao Gujarat, é a única a sobreviver a um massacre — salva-se porque dá azar matar uma hijra —, abandona a comunidade e instala-se, sozinha, num velho cemitério muçulmano. Estende um tapete entre duas campas e, a pouco e pouco, constrói ou manda construir diversos abrigos ou habitações que se expandem até formar a Casa de Hóspedes Jannat, onde são acolhidos os fugitivos, os perseguidos, os mais frágeis, os exilados, os solitários, os intocáveis, os drogados, os inadaptados, bem como os animais vadios e as crianças abandonadas. Anjum, na sua condição de hijra, com os seus conflitos pessoais, psicológicos, sexuais, morais, impõe-se como uma metáfora dos grandes dilemas da própria Índia.

A segunda parte do romance — que poderia funcionar autonomamente — passa-se em Caxemira e gira em torno de outra personagem feminina portentosa que apresenta características semelhantes às da autora. Tilo é a filha ilegítima de um intocável e de uma cristã síria. A sua personalidade indomável atrai os amigos Musa e Naga, quando frequentam a universidade. O triângulo amoroso é dramático e excitante. Tilo acaba por casar com Naga mas segue Musa até Caxemira e vive com ele os dias intensos e terríveis das lutas, das perseguições, dos massacres e das torturas, quando “a crueldade se tornou banal” e “os vivos são apenas mortos a fingir que estão vivos.”

Há um arrebatamento romântico na forma como a autora descreve Musa, o combatente na clandestinidade, a sua aura de herói, os seus companheiros, os seus encontros fortuitos com Tilo na casa-barco delapidada, no cenário deslumbrante dos lagos de Caxemira — onde anteriormente os casais iam em lua-de-mel e onde, nos anos 90, se escondiam os insurrectos. Mais tarde, Tilo cruzar-se-á com Anjum e a narrativa fecha-se sobre estas duas inadaptadas que travam batalhas e percorrem um longo caminho para encontrarem algo que se assemelhe ao “seu lugar”, no universo.

O Ministério da Felicidade Suprema é um romance tão monstruoso, caótico, deslumbrante e avassalador como a própria Índia, mas, tal como o país, permite entrever uma beleza incomensurável nos lugares mais inesperados e uma complexa poética do amor e da perda, fruto da escrita de Roy, sumptuosa na riqueza de pormenores, lírica na descrição das paisagens e dos afectos profundos, sem um átomo de exotismo ou de sentimentalismo. A vida e a morte confundem-se — o lugar mais seguro, o que acolhe tudo e todos, é o velhíssimo cemitério — e a história, como todos os bons contos, parece não ter fim, embora, nas últimas páginas, haja um casamento e uma menina a olhar para um céu pejado de estrelas, como promessas redentoras. Num país gigantesco e tão diversificado, onde permanecem ainda as diferenças mais bizarras — com a enraizada estrutura das castas —, Roy é a escritora ideal, a que contraria as divisões e fronteiras para juntar tudo e todos na grande festa — e paródia — da confraternização, da solidariedade e do amor na famosa Casa de Hóspedes Jannat, lugar da suprema felicidade, ancorada nos ossos dos antepassados, sob a direcção da esplendorosa diva Anjum.

Nota: As hijras conseguiram o direito ao voto na Índia em 1994 e no Paquistão em 2009. A primeira hijra a ganhar assento no Parlamento da Índia foi Shabnam (Mausi) Bano (1998- 2003), pelo estado de Madhya Pradesh.

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