Ali Smith: um poema no pós-Brexit

O romance de Ali Smith é um questionar sobre o nosso tempo a partir da amizade de duas pessoas com 70 anos de diferença. Escrito depois do Brexit, comove pela simplicidade e exercício poético acerca de como ler um mundo onde somos muito frágeis.

Foto
Partindo da ideia de finitude humana, do papel da memória e do esquecimento, Ali constrói um livro de uma beleza perturbante STEPHEN HIRD/REUTERS

“Pode fazer uma cama por aqui. Pode permanecer por aqui enquanto se procura um sentido”, pensa Daniel Glück, inesperadamente sem sentir o peso do corpo velho ou a pressão do tempo. É logo no início de Outono, o mais recente romance da escocesa Ali Smith (Inverness, 1962), livro marcado pela perplexidade em relação ao presente histórico, que vai retirar o título ao poema de John Keats Ao Outono, deixando-se contaminar pelo ritmo poético e por uma nostalgia determinada pelo observar meticuloso da passagem do tempo, enquanto se procura achar o tal sentido.

Quando editado nos países de língua inglesa, foi apresentado como o primeiro romance do pós-Brexit e contém todas as interrogações — e  interpelação — a um presente de que está demasiado próximo para que se possa obter  resposta. Mas é o impulso de tentar entender, ao mesmo tempo que explora a noção de desenraizamento ou de incómodo face a um lugar ou a um tempo. Partindo da ideia de finitude do ser humano, do papel da memória e necessariamente do esquecimento, Ali constrói um livro de uma beleza perturbante em contraste com um tempo que parece trazer enorme fealdade. “Daniel Glück olha da morte para a vida, depois novamente para a morte. A tristeza do mundo”, escreve o narrador no princípio de Outono, quando Daniel se descobr morto. A partir daí, Ali inicia um jogo onde cruza passado e presente baseando-se na relação singular entre duas personagens: Daniel e Elisabeth, uma rapariga 70 anos mais nova. É através dos diálogos que estabelecem sobre arte, literatura, natureza que se irá construir a harmonia de Outono, primeiro volume de uma tetralogia sobre as estações do ano que já foi anunciada por Smith

Elisabeth Demand é uma criança de oito quando vai viver com a mãe para a casa ao lado do misterioso Daniel Glück, homem de quem se sabe pouco mais a não ser que gosta de arte, de ler e que foi autor de canções. A partir daí nasce uma relação de amizade. “Não é esse tipo de relacionamento”, dirá Elisabeh a um namorado que sente ciúmes de Daniel. “Não tem absolutamente nada de físico. Nunca teve. Mas é amor. Não posso fingir que não é.”

Elisabeth e Daniel são metáforas de dois tempos que se encontram no presente. Ele, o homem que olha o mundo; Elisabeth, uma espécie de escrava que materializa os males do tempo em que se fez adulta, mas que procura libertar-se deles à custa das palavras que aprendeu com Daniel. Ela actua num presente de que Daniel se sente sobretudo observador. “Elisabeth Demand — trinta e dois anos, leitora numa universidade em Londres com contrato sem termo nem horário fixo, a viver o sonho, diz a mãe, e vive, se o sonho equivaler a não ter qualquer estabilidade profissional e quase tudo ser demasiado caro para se fazer e se continuar no mesmo apartamento arrendado em que se vivia nos tempos de estudante mais de uma década atrás — deslocou se à principal estação dos correios da cidade mais próxima da aldeia onde a mãe agora vive, para utilizar o serviço de Verificação e Envio, munida do formulário de solicitação de passaporte.”

Enquanto Elisabeth enfrenta o absurdo da máquina burocrática, Daniel tem 101 anos e dorme numa cama de hospital; recebe a visita diária de Elisabeth que lhe leva excertos das suas leituras. O Maravilhoso Mundo Novo, de Aldous Huxley, ou A Tempestade, de Shakespeare, História de Duas Cidades, de Dickens. São referências com uma carga onírica que atravessa a fronteira do real. O real tantas vezes diluído na capa do sonho que nos chega do sono de Daniel e que permite a Ali manipular a cronologia e, com isso, atingir mais um ponto alto da sua carreira literária

Ela é uma exímia estilista da língua sem que isso se sinta. Tudo parece fluir, simplesmente. Neste caso de forma muito rápida, natural, em dois tipos de respiração que se ouvem como único fôlego; o de Elisabeth e o de Daniel. O modo, por exemplo, em que um e outro se encontram no trabalho de Pauline Boty, a única artista da Pop Art britânica que morreu muito cedo. Elisabeth estuda-a. Daniel amou-a e recupera-a no seu sono. “É um privilégio, ver alguém dormir, diz Elisabeth de si para consigo. Um privilégio poder testemunhar alguém que a um tempo está aqui e não está aqui. Ser incluída na ausência de alguém. Uma honra, e pede silêncio. Pede respeito.”

Através de analepses e prolepses, Ali Smith traça o percurso de uma aprendizagem – a de Elisabeth — que é também a da tentativa de apreender o mundo. Quando Daniel lhe pergunta recorrentemente o que anda a ler, quer dizer-lhe: “Devemos estar sempre a ler alguma coisa, disse ele. Mesmo que não estejamos a ler fisicamente. Caso contrário, como seremos nós capazes de ler o mundo?”

É um mundo que se apresenta zangado, ou carrancudo, como a aldeia onde vive a mãe de Elisabeth. “Tornou se um tempo em que as pessoas dizem coisas entre si e nada do que dizem chega verdadeiramente a ser diálogo”, lê-se num romance que é também um questionar sobre o poder da mentira, um olhar sobre a História como a grande materialização da ironia. “Por todo o país, as pessoas pesquisavam no Google: o que é a UE? Por todo o país, as pessoas pesquisavam no Google: ir viver para a Escócia. Por todo o país, as pessoas pesquisavam no Google: pedidos de passaporte irlandês.” E sempre a ideia de que o tempo voa e pode voar mesmo, literal ou poeticamente, como quando Daniel atirou para o ar o relógio de pulso perante o olhar incrédulo da então pequena Elisabeth. Só aumenta a angústia até nos libertar totalmente dela fixando-nos noutro tempo, ou num intervalo de tempo, o “intervalo temporal de uma infinidade de flores a desabrocharem, de uma infinidade de flores a curvarem, a fecharem novamente a cabeça, de uma infinidade de novas flores a abrirem no seu lugar, de uma infinidade de botões a originarem folhas e depois as folhas a caírem e a decomporem se na terra, de uma infinidade de ramos a dividirem se numa infinidade de novos botões.”

Uma transição, pausa, quando nas paredes das cidades se lêem frases como “IDE PARA A VOSSA TERRA”.

“Vê como está tão profundamente enraizado na nossa natureza animal, disse Daniel. Não vermos o que está a acontecer diante dos nossos olhos.” E isso enquanto lhe ensina a capacidade de ultrapassar o abominável, a vergonha, a distinguir a arte da pretenciosismo, a fragilidade das coisas de que é preciso cuidar e lhe diz que quem inventa a história inventa o mundo. Se ela quiser escrever não se esqueça disso. “Portanto tenta sempre acolher bem as pessoas na casa da tua história. É a sugestão que te dou.”

Ali Smith inventou essa história e tomou como bom o conselho da sua personagem.

Sugerir correcção
Comentar