Um palco para o sacrifício

Nunca antes tinha Akram Khan aceitado colocar uma das suas peças de referência nos corpos de outros bailarinos. Fá-lo agora com a CNB. iTMOi (In the Mind of Igor) inspira-se na Sagração da Primavera e transforma o Teatro Camões num palco para o sacrifício.

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Akram Khan, uma das figuras maiores da dança mundial, nascido em Londres e filho de um casal bangladeshiano Jornal Público

Ao eleger o sacrifício como a temática fundamental que lhe interessava extrair da Sagração da Primavera para trabalhar numa nova criação (encomendada para o centenário dessa peça revolucionária da história da dança), Akram Khan lembrou-se da história de Abraão e Isaac. Mais do que isso, lembrou-se de quando a mãe lhe contou o episódio bíblico uma noite antes de dormir, naqueles momentos em que cada partilha entre pais e filhos parece ser acompanhada sempre de uma qualquer razão moral que deve embalar o sono e ficar a inculcar-se nas cabeças das crianças. Perante o relato de um pai que se dispõe a sacrificar o filho a pedido de Deus, num teste de fé cujo gesto derradeiro seria impedido no último momento por um anjo que detém Abraão, Akram, ainda miúdo, perguntou à mãe aterrorizado se também ela o sacrificaria caso Deus lho pedisse.

O bailarino e coreógrafo carregou esse momento perturbador consigo durante anos e, em 2013, quando trabalhava na coreografia de iTMOi (In the Mind of Igor), telefonou à mãe em busca de algum sentido para aquela noite longínqua que continuou a persegui-lo. “Ela já não se lembrava do que me tinha respondido e riu-se quando lhe falei disso”, conta ao Ípsilon. “Porque te estás a rir?”, disse-lhe. “Isso confundiu-me imenso durante anos. Por um lado falavas-me do poder da fé, uma fé tal que não se questiona, sacrificando-se até os mais amados.

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Akram confessa ter-se “apaixonado completamente” por Luísa Taveira e essa ter sido uma razão fundamental para que iTMOi caiba nos corpos da CNB entre 23 de Fevereiro e 4 de Março, no Teatro Camões Lisboa Bruno Simão

Por outro lado, disseste-me que não o farias e não percebo por que me fizeste passar por isso.” Só então aquele que é hoje considerado uma das figuras maiores da dança mundial, nascido em Londres e filho de um casal bangladeshiano, ganhou algum descanso em relação a esse tormento. Tanto quanto se podia recordar, a mãe quisera “plantar uma pequena semente de dúvida” no seu quotidiano, sabendo que Akram iria crescer numa comunidade muçulmana com a fé muito presente.

Uma fé que desejava ver questionada, porque só assim o seu filho poderia acreditar e amar verdadeiramente algo.

Apesar da perturbação do momento e que se estendeu aos anos seguintes, Akram Khan reconhece hoje os frutos dessa semente de dúvida. E a imagem de Abraão e Isaac (cujo sacrifício seria trocado pelo de um cordeiro), a provar que se cravou fundo na sua imaginação, está por todo lado em iTMOi, primeira peça longa que o coreógrafo alguma vez autoriza a ser produzida fora da sua própria companhia e sem os seus bailarinos. Depois de anos de insistência da anterior directora artística da Companhia Nacional de Bailado, Akram confessa ter-se “apaixonado completamente” por Luísa Taveira e essa ter sido uma razão fundamental para que iTMOi caiba nos corpos da CNB entre 23 de Fevereiro e 4 de Março, no Teatro Camões, em Lisboa.

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“Primeiro pensei numa peça de 10 minutos ou na parte de uma obra – porque isso já cedi a várias companhias”, diz. “Mas depois pensei melhor e achei que podia ser tão entusiasmante quanto assustador testar o iTMOi, que era muito operático na minha cabeça. Não pensei que fosse a peça certa – e foi por isso que a propus. Quis correr esse risco e ver no que dava, porque o meu instinto dizia-me que não ia funcionar, uma vez que foi tão pesquisada especificamente nos bailarinos originais. Não quis que fosse uma mera fotocópia, mas apetecia-me vê-la novamente, sob uma outra luz. Como seres humanos, estamos tão embrenhados em rituais que nos é difícil vermos os nossos parceiros sob uma outra luz depois de vivermos juntos durante muitos anos. Esquecemo-nos que na vida e na morte estamos continuamente a mudar: na vida mudamos porque envelhecemos; na morte porque continuamos a decompor-nos.”

O desafio original do teatro Saddler’s Wells (autêntico templo da dança britânica) para criar a partir da Sagração da Primavera chegou numa altura em que a confiança de Akram Khan “estava estilhaçada, desfeita”. Em 2012, ao romper o tendão de Aquiles quando ensaiava em Paris o dueto Sacred Monsters com Sylvie Guillem, e com a participação na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Londres a consumir-lhe a energia criativa, viu-se subitamente perdido. “E nessas alturas o medo infiltra-se pelas fendas e esmaga-nos – tal como a direita se está a infiltrar agora nas fendas do nosso mundo”, compara. A resposta para essa crise de confiança encontrá-la-ia em leituras sobre Stravinsky (o Igor do título de iTMOi) e, em particular, no relato de que o compositor “era fascinado pelo som do gelo a quebrar-se no rio de São Petersburgo, algo que se lembrava da sua infância”. Akram quis pegar nessa imagem de ruptura e tentar aplicá-la ao próprio processo de trabalho.

Ruptura, morte e sacrifício são as três palavras em torno das quais se volteiam os movimentos de iTMOi. Foram, aliás, as três palavras que Akram Khan entregou aos compositores que criaram música para a peça. Nitin Sawhney, Jocelyn Pook e Ben Frost receberam uma das palavras e foram mantidos totalmente às escuras em relação à música que os outros dois criavam, desconhecendo até em que momento da peça (princípio, meio ou fim) a sua música acabaria por entrar. Akram foi mais longe e sempre que algum dos compositores lhe manifestava a sua curiosidade pelo que os outros dois estariam a fazer, dispunha-se a marcar um encontro entre todos. E assim que viravam costas ligava para o escritório dando ordens para que, em circunstância alguma, os três pudessem coincidir nas visitas ao estúdio em que trabalhava com os bailarinos. “Não queria que se influenciassem mutuamente ou criassem com a consciência do que o outro estava a fazer, que tipo de mundos sonoros estava a utilizar. Fui um agente duplo nesse período.”

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Chef, matemático, bailarino

Akram Khan não tem escondido em entrevistas a exaustão a que se viu chegar com a súbita ascensão a uma das figuras cimeiras da dança contemporânea mundial. Passados apenas dois anos sobre a formação da sua companhia, a estreia em 2002 de Kaash, uma colaboração com o músico Nitin Sawheny e o artista plástico Anish Kapoor, deslumbraria com a combinação sublime entre a dança contemporânea e a linguagem da tradicional kathak, juntando Oriente e Ocidente num movimento de encantadora qualidade poética. “Acho que aquilo que a dança pode alcançar é o sentido da poesia”, confirma. “Numa mesma frase a poesia lida com passado, presente e futuro. E no mundo em que vivemos não temos a certeza se estamos no passado, no presente ou no futuro. Diria que estamos órfãos de mitos. Acho que acontece pela primeira vez em muito tempo e talvez tenha chegado a hora de criar um novo mito. Não sei se a tecnologia substituirá o mito e se tornará o mito. Talvez sim.” A tecnologia é, no seu entender, a provável culpada principal por estarmos “mais desligados dos nossos corpos”, substituindo também a imaginação. “A forma como comunicamos transformou-se, esquecemo-nos de que houve um tempo em que comunicávamos através dos nossos corpos e agora comunicamos através de um teclado. A dança lembra-nos que nos gestos e nos movimentos carregamos uma cultura e um passado.”

Não é à toa que a tecnologia lhe assalta o discurso. Akram está em fase de pesquisa para o seu derradeiro solo, a estrear em 2018, e cujas últimas apresentações – previsivelmente no ano seguinte – deverão ditar o seu abandono enquanto bailarino das peças de longa duração. Diz já não gostar da dor e agora preferir “dar dor aos outros, mais novos”. Quer apenas continuar a criar. Esse solo, confidencia, constrói-se aos poucos sobre um triângulo de ideias cujo encaixe ainda está a descobrir: inteligência artificial, mitologia grega e I Guerra Mundial. Será o último capítulo de um intérprete que começou a dançar aos três anos, aos sete iniciou os estudos de kathak com o mestre Sri Pratap Pawar, ensinamentos que foram essenciais para aos 13 anos ter sido descoberto e chamado por Peter Brook para a sua encenação do épico hindu Mahabharata, com a qual correu o mundo durante dois anos. Terminada essa experiência que acredita ter mudado a sua vida, o pai parou de insistir para que Akram lhe sucedesse enquanto chef e eventual dono de um restaurante bangladeshiano em Londres.

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Foi um de dois destinos que ficaram pelo caminho. O outro era o de matemático. Neto de um génio da matemática, medalhista de campeonatos do sudeste asiático, Akram sentiu que, depois de a sua mãe mergulhar profundamente na literatura e frustrar as expectativas criadas em torno de si, o peso da tocha do prosseguimento da disciplina herdada do avô acabaria por recair sobre ele. “A comunidade de matemática do Bangladesh ficou muito desapontada com a minha mãe e ainda nem sabia dizer ‘um’ ou ‘dois’ e já tinham decidido que eu seria um Messias ou um profeta da matemática.” Chegou a acreditar nisso, mas a realidade havia de demonstrar-lhe que esse talento nunca passou de uma projecção de terceiros. A obsessão que chegou a desenvolver pela disciplina, no entanto, acredita tê-la transposto para a forma como cedo começou a concentrar-se na observação de “padrões de movimentos de pessoas, multidões, gestos, animais”. “E nessa altura adorava Michael Jackson, Fred Astaire, Buster Keaton, Charlie Chaplin Muhammad Ali ou Bruce Lee pela forma como se mexiam”, diz.

Os padrões são parte essencial de uma linguagem que Akram Khan duvida que tenha alcançado, mas em que a sua assinatura é evidente. Na primeira das duas visitas à montagem de iTMOi na CNB – os ensaios foram dirigidos pelo seu assistente Andrej Petrovic, com várias passagens dos bailarinos originais para passar o material coreográfico -, Akram passa parte do tempo sentado frente ao elenco treinando oralmente padrões rítmicos e tempos menos ortodoxos presentes na música (e, em parte, replicados da partitura de Stravinsky). Na semana antes da estreia, passado mais de um mês, o coreógrafo está sobretudo interessado em afinar a intenção dos bailarinos, lembrar-lhes a narrativa que está por detrás de cada gesto, concentrando muitas das suas correcções na dramaturgia. O corpo sacrificial deve estar à beira do desfalecimento, as posturas das testemunhas da tragédia em curso devem chamar ao queixo o sinal de uma impassível aristocracia, a rainha deve ser gélida, a donzela deve ser adorada em cada movimento. Akram pergunta aos bailarinos em que pensam quando desenham determinados gestos, aponta para uma clarificação narrativa nos bailarinos que, depois, se tornará mera sugestão aos olhos do público. “O que adoro na dança contemporânea”, admite, “é o flirt com a abstracção.” Só que em cada bailarino quer encontrar a justificação emocional e não apenas uma mimetização da coreografia original.

Tendo recusado trabalhar com a música de Stravinsky porque já não consegue desligá-la da “peça seminal que é a versão da Pina Bausch – mais do que a do Nijinsky”, diz, Akram precisava de encontrar um novo espaço de diálogo com Igor. Mas iTMOi, chamando para o seu interior sacrifícios quotidianos que não apenas com a dimensão bíblica, responde sobretudo à necessidade de integrar a dúvida que possa pôr o mundo em perspectiva. E que não seja a dúvida alimentada por aquilo que entende ser hoje a terrível banalização da mentira.

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