Um palco aberto à cidade e ao mundo

Chega esta quarta-feira ao fim a 3.ª Escola de Verão para Actores que o Teatro do Noroeste está a promover em Viana do Castelo. Durante dez dias, 21 participantes de diferentes idades quiseram experimentar o palco e os seus desafios. “Para o que der e vier”.

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O Teatro Sá de Miranda é a casa do Teatro do Noroeste/Centro Dramático de Viana Inês Barbosa
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Guillermo Heras é um encenador e professor espanhol Inês Barbosa
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Guillermo Heras dirigiu mais uma vez o Curso de Verão Ana Reguengo
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Alexandra Moreira da Silva explicou as vanguardas artísticas de há um século Andreia Lopes
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Ricardo Simões, de costas, trabalhou sobre textos de Almada Inês Barbosa
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Tiago e Chloé no palco do Teatro Sá de Miranda Andreia Lopes
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Gonçalo Amorim trabalhou sobre um texto de Maiakovski Inês Barbosa

“Olá! Chamo-me Lúcia, tenho 19 anos; venho de Évora e estou aqui porque quero crescer, aprender, e ser actriz”. “Sou o Pedro, 40 anos; venho de Lisboa, tenho andado pelo teatro, A Barraca, Os Improváveis…, e estou aqui para o que der e vier”. “Sou a Filipa, 28 anos; nasci no Porto, tenho formação em Saúde Ambiental, sou profissional na área da higiene e saúde no trabalho; fiz um curso de teatro musical e estou aqui mais com curiosidade do que com expectativa”. “Ana, 58 anos; sou professora desempregada com formação em Línguas e Literaturas; tenho ligação ao Centro Dramático de Viana desde o início, e estou aqui com grande disponibilidade”. “Eu sou a Chloé, 25 anos; sou francesa, nascida em Nova Iorque, vivo há um ano em Lisboa, depois de uma experiência no Brasil, onde encontrei o meu namorado; quero fazer teatro e fortalecer a minha presença em Portugal, saber se hoje tenho alguma coisa para fazer nesta terra, e se ela me dá a energia que procuro”. “Tiago, 26 anos; sou de Ermesinde e tenho uma relação com o CDV desde 2010; venho à procura do vislumbre particular destes criadores, com quem podemos sempre experimentar coisas novas”…

Seis casos em 21, tantos quantos os participantes na terceira edição da Escola de Verão para Actores promovida pelo Teatro do Noroeste/ Centro Dramático de Viana (TN/CDV), a decorrer até esta quarta-feira no Teatro Sá de Miranda, na capital do Alto Minho.

São 15 mulheres e seis homens, entre os 18 e os 58 anos. A maioria vem do mundo do teatro, seja como actores ou ainda estudantes. Mas há também desempregados, e profissionais de outras áreas, que decidiram apostar em passar 10 dias em Viana do Castelo a contactar com outros actores, encenadores, dramaturgos e professores de artes cénicas, à procura do seu “vislumbre de criadores”.

À frente desta Escola de Verão está o professor, dramaturgo e encenador espanhol Guillermo Heras, que de resto a propôs ao CDV, com quem colabora desde há quase duas décadas.

Ia o curso quase a chegar a meio, quinta-feira passada, Heras explicava ao PÚBLICO que era ainda cedo para perceber se se iria formar um grupo ou não. “Esta não é uma questão meramente convencional; ensinar teatro é algo que nunca acaba, é um trabalho contínuo, onde há sempre novos horizontes a abrir”, dizia o encenador no intervalo de sessões em que Ricardo Simões, director artístico do TN, tinha desafiado os participantes a ler e dar corpo a textos de Almada Negreiros, e Gonçalo Amorim, director do Teatro Experimental do Porto (TEP), iria explicar quem foi Maiakovski.

Estes dois nomes incontornáveis da cultura europeia do início do século XX, com García Lorca, foram os autores escolhidos por Heras para o curso deste ano. Três nomes que, para alguns dos participantes, eram ainda desconhecidos. Não era o caso de Filomena Mouta, 57 anos, professora de Expressão Dramática e actriz natural de Lisboa mas a viver em Viana desde os 14 anos, e com uma carreira profissional ligada ao TN/CDV desde a sua pré-história. Mouta integrou o elenco da produção Adieu, de Jaime Salazar Sampaio, que José Martins, então a trabalhar no Teatro da Malaposta, encenou em 1990 para o Centro Cultural do Alto Minho. No ano seguinte, nascia o Teatro do Noroeste, com Martins como seu primeiro director artístico.

“Tenho muito orgulho nesta ligação ao CDV, e estou agora a frequentar o curso pela primeira vez”, diz a actriz e professora, explicando que, “por muitos anos que se tenha, podemos sempre evoluir através da troca de saberes e experiências”.

Filomena Mouta integrou, de resto, o elenco da produção – a 130.ª – com que o TN/CDV assinalou, no final do ano passado, os seus 25 anos, numa encenação que Guillermo Heras fez de Bodas de Sangue, de Lorca – curiosamente, “e não foi por acaso”, explica o encenador espanhol, o mesmo autor com que a companhia iniciou a sua actividade em 1991, apresentando Amor de D. Perlimplim com Belisa em seu Jardim.

Vanguardas artísticas

“Lorca, com Maiakovski e Almada, mesmo trabalhando em realidades diferentes, marcaram decisivamente não só as artes performativas como o próprio conceito de espectáculo teatral, e da dramaturgia”, nota Alexandra Moreira da Silva, dramaturga e professora no Instituto de Estudos de Teatro na Universidade de Paris (Sorbonne Nouvelle), que nas três primeiras noites do curso tinha explicado aos participantes o contexto das vanguardas artísticas de há um século atrás.

Concordando com Heras quando este diz que a verdadeira importância de Almada “está ainda por descobrir ibericamente”, a monitora pegou num seu texto de 1948, O pintor no teatro, precisamente dedicado à memória de Lorca, para mostrar como ele manifesta “uma modernidade extraordinária sobre o lugar do público e o facto de que é o público que deve formar a sua opinião sobre um espectáculo e não ser este a impor-se ao espectador”.

“Esta reflexão é em tudo equivalente à de um grande encenador contemporâneo, o Romeo Castellucci [que no início deste ano esteve no Porto com a sua criação Júlio César: Peças Soltas, no âmbito da BoCA – Bienal de Arte Contemporânea], quando ele fala da criação partilhada”, defende Alexandra Moreira da Silva.

Almada foi também matéria para as sessões dirigidas por Ricardo Simões, que, depois de propor ao grupo uma espécie de “aquecimento” com a leitura em coro do Manifesto Anti-Dantas (1915), lhes forneceu a peça em um acto Aquela Noite (1949), sobre o tema do sonho e do crime, que também caracterizou como de “grande modernidade”. “Almada era a libertação do texto, a improvisação, o corpo total, o autor total”, definiu-o, realçando o que isso significava de fuga ao realismo então reinante.

Antes de entrarem directamente nesse texto, e com música de Rão Kyao em fundo, os 21 participantes foram chamados ao centro do palco para fazerem pequenos exercícios de improvisação, sob o mote – que Ricardo Simões pediu de empréstimo a Heras – “O corpo fala”. “Tudo o que é visto, é lido, mesmo aquilo que não queríamos mostrar, e em cima de um palco isso é ainda mais verdade”, explicava o monitor.

Contra o realismo

A mesma demarcação do realismo, neste caso do realismo socialista, é visível no texto O Percevejo (1928), com que Maiakovski satirizou os caminhos da Revolução Russa de 1917, antecipando de forma especialmente crítica o futuro do comunismo soviético. A peça foi estreada em 1929, com encenação de Meyerhold, cenários de Rodchenko e música de Shostakovitch. “O Percevejo é um texto verdadeiramente pré-orwelliano, que reuniu, na sua estreia, uma data de desalinhados do regime”, explicou Gonçalo Amorim à roda de alunos do curso ao iniciar o seu ciclo de sessões.

Além daquilo que se espera num curso deste género, o encenador do TEP explicou ao PÚBLICO o que também motivava a sua presença em Viana: “Em tempos de nova overdose de realismo, que nos vem da televisão e do cinema, com a eficácia da Direita, sabe bem fazer este contraponto de Esquerda, pegar noutro tipo de universo”. “Maiakovski permite-nos fazer teatro de intervenção, e permite, para estes alunos, pensar o teatro como espaço de criatividade e de imaginação, em que a linha única não tem que ser a construção do personagem realista, e que não há apenas uma maneira de fazer teatro”, acrescentou Amorim.

Elisabete Pinto via isto tudo como “uma lufada de ar fresco”. A actriz nascida em Castro Daire, mas fixada em Viana desde 1996, e que entre 2012 e 2015 (os anos da crise) assegurou a direcção e a sobrevivência do Teatro do Noroeste, entrou no curso de Verão para poder “voltar às origens, voltar a aprender” com professoras – Isabel Barros e Teresa Lima, que asseguraram os dois primeiros dias do currículo – que foram as suas há mais de duas décadas na escola do Balleteatro, no Porto.

Proposta cénica final

Repetindo o figurino dos anos anteriores, o Curso de Verão irá terminar esta quarta-feira à noite com um espectáculo aberto ao público no Teatro Sá de Miranda. Mas Guillermo Heras recusa esta designação: “Não será um espectáculo, não trabalhamos com esse objectivo; será uma proposta cénica”, diz o encenador, lembrando que “um laboratório é sobretudo um lugar de encontro”.

O grupo irá então mostrar o resultando deste seu encontro de dez dias. “Este ano apostámos em trabalhos poéticos, fragmentários, criados a partir do desenho poético de cada professor”, diz Heras, para quem a emoção é fundamental na prestação de cada participante.

Sentada na plateia do teatro municipal vianense, Maria Alcina Cruz, uma senhora de 84 anos, pedia a Inês Barbosa, assistente do TN/CDV, que lhe descrevesse as partes principais do que se dizia no palco. “Eu tenho dificuldade em ouvir, mas gosto de ver, porque gosto imenso de teatro”, confessa ao PÚBLICO, explicando que faz parte da Oficina Sénior da companhia. Maria Alcina recorda os tempos em que vivia no Porto e participava nas récitas do colégio, ou tocava bandolim nos aniversários do seu pai. “Uma vez entrei numa pecinha, que teve sucesso, mas nunca mais pensei nisso”. Mas o "bichinho" ficou, e a prova desse amor pelo teatro é a sua presença repetida no Sá de Miranda – “quando me podem dar o guião antes, torna-se tudo mais fácil para mim”, nota.

Para a noite desta quarta-feira, foi-lhe pedido que trouxesse “a fatiota” com que entrou em Anjo Branco, a produção do TN/CDV apresentada no ano passado no navio-hospital Gil Eanes. “Eu era a comandante do navio!”, diz Maria Alcina, com um sorriso nos olhos.

 

 

 

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