Um Natal ao lado

Pedimos ao escritor e ilustrador Afonso Cruz que nos escrevesse um conto. No seu Natal há monges, um velho de barba branca que se chama Kostas, um calendário diferente do nosso e café turco que afinal é grego.

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O primeiro mosteiro onde pernoitei, depois de entrar no Monte Athos, foi no Gregoriou. Fui levado por um velho chamado Kostas. Adoptou-me desde que passei do mundo secular para o Monte da Virgem, como lhe chamam, uma península habitada por mais de dois mil monges. Ali, a igualdade não vinga e as mulheres não entram. Nem fêmeas de qualquer espécie, sejam galinhas, cabras ou mulas. As mulas, por lá, são machos. É assim há mais de mil anos e os monges que vivem no Athos pretendem manter a tradição, mesmo que isso lhes custe uma menor, ou mesmo extinção, de ajudas comunitárias para restauro dos mosteiros e sketae.

Numa lojinha, logo à entrada, depois de ter mostrado o diamonitrion (licença para entrar), comprei pão e azeitonas. Umas azeitonas grandes como abrunhos, salgadas, pretas e enrugadas como velhas. Para acompanhar as azeitonas, comprei um enorme pão branco. Tudo a conselho do velho Kostas (era assim que ele se referia a si mesmo).
Quando cheguei ao Gregoriou, bebi um raki, comi uns lokumi (doces que também são conhecidos por turkish delights, mas que os gregos dizem ser gregos) e bebi um café turco (que os gregos dizem ser grego). É hábito e dá ânimo contra o frio intenso e o cansaço das caminhadas. Lá é tudo a subir por caminhos coleantes, de cabras (bodes, nesta geografia específica, visto serem proibidas as fêmeas), com vista para o mar, o mesmo para onde Egeu se atirou por causa de um esquecimento de Teseu.

Assisti às primeiras missas que são longas, mais de duas horas, cheias de incenso e cânticos. Alguns monges dormem durante a cerimónia, embrulhados pela música ou por simples enfado. Pessoas como eu, não passam da primeira sala: as igrejas estão divididas em três espaços, para ouvintes, catecúmenos e fiéis. À antiga. No refeitório também me punham numa mesa à parte. O anagnosta lia qualquer coisa num grego que eu não compreendo enquanto a comida (às vezes com peixe, mas sempre sem carne) era servida juntamente com o vinho do Athos.

— Por que motivo fico aqui à entrada, longe de toda a gente?
— Tradição — respondiam-me.

O velho Kostas traduzia-me o que eu não percebia, apontava o que eu não via e aconselhava-me sobre o que eu não vislumbrava. Ia todos os anos peregrinar para o Monte, durante um mês, com pão, bordão, azeitonas, e cheio de rezas acumuladas no corpo, na pele e nos ossos. Era um homem com uns setenta anos, de barba branca. Tinha sido actor, tinha fugido para a Austrália por ter arreliado a ditadura e tinha voltado. Hoje tinha uma loja de antiguidades em Atenas e já não pensava muito em Brecht. Numa das noites em que estivemos juntos, lá representou qualquer coisa, com os cabelos brancos a esvoaçar, as mãos cerradas, a voz tensa e o rosto vermelho, cheio de paixão.

Lá fora, no mundo, era Natal. O calendário do Athos é diferente do nosso, é o antigo, sem a correcção do calendário gregoriano, por isso, no Monte, ainda faltavam alguns dias para o Natal. Dez, para ser exacto.

Por essa altura, os monges começavam a preparar-se para jejuar e isso não era bom augúrio. Haveria menos refeições.
Noutro mosteiro do Athos, no de S. Paulo, conheci um rapaz com uns vinte e tal anos que me disse que o Deus dos católicos não era o verdadeiro Deus, era uma mentira.

— Não pode haver dois deuses, um falso e um verdadeiro, isso seria um maniqueísmo — argumentei.
— Pode.
— Isso significa que o Deus único não é único. Também há o falso.
— Para onde vais a seguir? — perguntou-me o rapaz.
— Vou para a Macedónia.
— A Macedónia é aqui, nós é que somos macedónios, nós é que descendemos de Alexandre. Os outros são eslavos.
— Os macedónios são eslavos?
— Os macedónios são gregos.
— Então, se não vou para a Macedónia, apesar de ir para um país chamado Macedónia, para onde é que vou?
— Não sei, para Skopje.
— Skopje é a capital da Macedónia.
— A Macedónia é aqui. De onde é que vens?
— De Istambul.
— De Constantinopla — corrigiu ele. E, nessa altura, eu já concordava com tudo.

O rapaz contou-me que tinha ido ao Monte para falar com um eremita. Existem, no Monte, três tipos de monges: os cenobitas (que vivem nos grandes mosteiros muralhados e segundo regra conjunta), os que vivem nas sketae (em casas agrupadas como numa pequena aldeia, onde há entreajuda mas não há regra comum) e os eremitas (que vivem isolados em casas modestas ou grutas). O rapaz queria saber se deveria casar-se. O monge, uma espécie de oráculo pítico, aconselhou-o a deixar a rapariga, pois ela só queria o dinheiro dele.

Nessa noite era preciso acordar antes de madrugada para pôr comida num saco de plástico, pois não haveria nada para comer durante o dia. O Kostas acordou-me para ir buscar o que me caberia, mas a minha preguiça venceu-me. De manhã, quando me levantei, tinha um saco com comida à cabeceira, posto pelo velho Kostas e um bilhete. Dizia que iria visitar um eremita seu amigo e que me desejava boa sorte.

Quando saí desse mosteiro, foi com o rapaz da tarde anterior e com mais outros dois gregos.

— Cristóvão Colombo era grego — dizia-me um, que era professor.

Eu concordava com tudo.

O mau tempo acabou por fazer das suas e não fui aceite no mosteiro para onde me tinha dirigido, pois estava cheio de peregrinos. Tive de voltar para trás. Chovia e fazia um frio difícil de suportar. Tinha as botas molhadas. Quando voltei ao mosteiro de S. Paulo, lá estava o Kostas. Disse-me logo com grande entusiasmo que eu teria de ir ver o seu amigo anacoreta, falar com ele. Perguntou-me:
— Falas francês?
— Safo-me.

E lá fomos nós para perto do mosteiro de Dionisiou (onde haveríamos de pernoitar), conhecer o eremita, outrora escritor de alguma fama na Grécia, agora asceta no Athos. Subimos um monte até à sua cabana, lutando contra o vento e contra a chuva. A vista era esplêndida e o Kostas enquanto admirava a paisagem soltava traques sonoros. O eremita era grande e gordo, nariz tuberculiforme, avermelhado, e a semelhança com a ideia que fazemos do Pai Natal não era só sugestão da época. Sentámo-nos junto ao fogo e ficámos calados. O Kostas abanava o corpo, sibilando umas rezas. O eremita contou-me a sua vida anterior, a de escritor. Falámos de livros, claro, dos seus e dos outros, e de arte. Aconselhou-me a ler o Silouane e Sophrone.

Numa das bibliotecas do mosteiro de Simonopetra (o mais dramático dos mosteiros do Athos) haveria de encontrar um livro do primeiro autor, em inglês, que li acompanhado por lokumis (que os turcos dizem ser turcos) e café turco (que os gregos dizem ser grego).

O velho Kostas era como um guia turístico. Insistiu que era preciso ver os ícones e falar com quem os pinta: fomos às oficinas de uns monges aprender a diferença entre período russo e período grego, o que era preciso para pintar, como se fazem as cores. Acabámos a dormir numa sketae ali perto, a de Sta. Ana. Lá, numa das casas, estava um louco furioso (foi assim que o Kostas mo apresentou). Tinha saído da prisão há pouco e tinha ido peregrinar. Foi a primeira vez que conheci um louco furioso, e até o achei muito calmo. Usava um pea coat com uma camisa de pescador por baixo, de cores alaranjadas.

À noite, o Kostas pôs a cama dele a trancar a porta da nossa cela e sentou-se nela a rezar. Um louco furioso pode fazer muito bem à devoção, pois o Kostas passou toda a noite com as contas na mão, a baloiçar o corpo para trás e para a frente, em completo pânico. Mas sem parar de rezar.

Poucos dias depois, era chegada a altura de sair do Athos, a minha licença estava a expirar, os não-ortodoxos não podem lá ficar mais do que determinado tempo. Fui para o porto e percebi que não havia barcos. Estava preso no Monte devido ao mau tempo.

Enquanto esperava que a tempestade parasse, enquanto esperava por um barco — que não haveria de aparecer tão cedo —, conheci Alexandros, um monge austríaco. Enquanto comia o resto do pão com azeitonas que tinha comprado no dia em que cheguei ao Monte, o monge falava da sua vida. Tinha vivido numa gruta, na Síria, durante uns vinte anos. Noutra gruta, em Israel, tinha vivido uns quinze anos, e agora tinha uma cabana no Monte. Dizia muito mal dos judeus e gabava-se de falar com os animaizinhos todos, especialmente com uma salamandra. Aquecia-a nas mãos, dizia ele, enquanto conversava com ela. Graças a estas informações esópicas passei a chamá-lo, na minha cabeça, de Branca de Neve.

Passados uns dias, o tempo estava melhor e foi possível sair do Athos. O Natal no mundo exterior já tinha acontecido, mas no Monte ainda não, por isso, nesse ano, não tive Natal. Atravessei a Macedónia, a Albânia, a Bósnia, a Croácia e a Eslovénia. Quando cheguei a Lisboa, tinha um embrulho no correio, trazia uma morada do Monte Athos, com um cognome: “Sagrado Monte Athos, aeroporto para o Céu”. Era do Alexandros, o Branca de Neve. Como eu havia trocado, no porto, uma ou outra palavra em romeno com um noviço que estava com ele, o monge ficou com a impressão de que eu era fluente na língua. Por isso, dentro do embrulho, vinham umas fotocópias, em romeno, embrulhadas numa toalha de mesa com motivos natalícios, do livro que ele tinha escrito. Chamava-se o manuscrito: “A invulgar história da minha vida”. Na contracapa, escrito a vermelho, convidava-me para me converter à fé ortodoxa, tornar-me noviço e viver com ele, pois assim poder-me-ia “ajudar a responder às minhas muitas questões sobre a Fé e sobre Deus”. Termina com: “Apesar de o silêncio ser a minha mais amada linguagem, bem como a doce fala dos meus pássaros da floresta.”

Conheci vários monges enquanto estive no Monte Athos. Ouvi discussões sobre João Crisóstomo, El Greco, acusações ao Papa, elogios a Clemente de Alexandria. Uns monges eram mais simpáticos, outros mais austeros, uns eram bastante inteligentes, outros menos, mas o que me pareceu mais próximo de um santo foi o velho Kostas, que nunca mais vi e que não era monge. Não tenho coragem para me dedicar totalmente a Deus, dizia ele, e recusava elogios apontando para os monges do Monte: eles é que têm coragem. Talvez, Kostas, talvez, mas Santa Teresa de Ávila disse um dia: se há uma coisa de que tenho a certeza, é de que não sou santa nenhuma.

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