Um livro de fotografia em que se sente o peso do medo

Mário Cruz documentou – denunciou – as condições em que vivem os rapazes que mendigam nas ruas do Senegal quando deviam estar na escola. Com a série dos talibés ganhou um prémio do World Press Photo e fez um livro que é lançado este sábado. Um álbum delicado cheio de histórias invisíveis.

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Criança acorrentada numa daara em Touba, lendo o Corão Mário Cruz
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Amadou, um talibé fugido, em Saint-Louis, junto ao rio Mário Cruz
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Marabout bate num dos seus "alunos". Integrou a série publicada na revista Newsweek Mário Cruz
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Talibés esperam pela abertura de um centro de acolhimento onde podem receber cuidados médicos Mário Cruz
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Um marabout com os pequenos talibés que explora. Mário Cruz retirou-lhes a identidade porque eles são “invisíveis” Mário Cruz
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Os "espectros" de Saint Louis, uma das fotografias premiadas pelo World Press Photo Mário Cruz
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Talibés dormem no chão numa das falsas escolas corânicas Mário Cruz

2016 está a ser um ano incrível para Mário Cruz. E não é só por ter sido um dos premiados pelo World Press Photo (WPP), o maior concurso de fotojornalismo do mundo. 2016 ficará como o ano em que editou o seu primeiro livro e, mais do que isso, em que constatou que aquilo que faz pode, à sua medida, ajudar a mudar o mundo que muitas vezes nos envergonha.

“Saber que, depois de as fotografias terem sido publicadas [na revista norte-americana Newsweek] e dos prémios [além do 1.º lugar no WPP na categoria Temas Contemporâneos recebeu o Picture of the Year], houve dezenas de crianças resgatadas, deixou-me uma sensação indescritível. Foi tão bom… Ter algumas delas à minha espera quando este Verão fui à Guiné-Bissau foi daquelas surpresas que não se explicam”, diz ao PÚBLICO, enquanto folheia o álbum Talibes — Modern Day Slaves, a edição quadrilingue (português, inglês, francês e árabe) que é este sábado lançada na Fnac Chiado, em Lisboa, com apresentação do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e do jornalista Fernando Alves.

O livro que agora chega às livrarias (a Fnac distribui em exclusivo para Portugal e está à venda online na Amazon e na FotoEvidence, que o edita) mostra 70 fotografias a preto e branco que o fotógrafo tirou no Verão de 2015 no Senegal e na Guiné-Bissau, um conjunto que documenta a vida dos talibés, rapazes entre os cinco e os 15 anos que, a pretexto de uma garantia de educação, são confinados em escolas corânicas tradicionais, as Daaras, e acabam forçados a mendigar pelas ruas do Senegal e de países limítrofes como a Gâmbia e o Mali. Vivem em condições miseráveis, são muitas vezes espancados e violados pelos marabouts, os seus professores, e parecem invisíveis à maioria da população. “O facto de haver centenas de miúdos a pedir nas ruas tornou-se tão natural que as pessoas já não os vêem. E muitas vezes eles estão a dormir à porta de uma loja ou num passeio – é preciso contorná-los. Ninguém se choca, poucos são os que se incomodam.”

Mário Cruz soube que existiam em 2009 – ouviu histórias sem ver nenhum – e ficou com a ideia de um trabalho na cabeça. A tarefa não era fácil, já que o acesso às escolas é muito restrito e o seu emprego – é fotojornalista da agência Lusa – não lhe permitia ausentar-se do país com facilidade. Acabou por tirar uma licença sem vencimento e pôr a mochila às costas, depois de muitos contactos com organizações não governamentais (ONG) no terreno e fora dele. “É difícil equilibrar a agência com estes trabalhos, mas eu preciso de o fazer, porque me interessam muito estas histórias que estão fora do foco noticioso diário, que não aparecem nas televisões. Quero mostrar o que está escondido e isso tem-me levado a temas que lidam com situações sociais difíceis, com direitos humanos.” Fora assim antes de Talibes — Modern Day Slaves (Talibés – Escravos dos Tempos Modernos) com Roof (2014), série que documenta a crise em Portugal acompanhando pessoas que vivem em edifícios abandonados da Grande Lisboa, publicado pelo diário americano The New York Times e premiado pela cooperativa de fotografia Magnum.

No caso dos talibés, lembra, o trabalho exigiu conviver também com vários tipos de crime, incluindo o tráfico de seres humanos. Foi, garante, o mais difícil que já fez na sua carreira de dez anos (tem 29), pelas condições práticas, mas também pelo lado mais emocional. “Durante um mês e meio estive no Senegal e na Guiné-Bissau a documentar uma realidade absolutamente diferente daquela em que tinha vivido nos últimos 28 anos, e sem a segurança que pode dar a um fotojornalista estar ao serviço de uma agência ou de um jornal. Estava praticamente sozinho e era assim que, todos os dias, tinha de lidar com o que sentia. Como homem, foi muito difícil. É que, para fazer o que me tinha proposto fazer, tinha de conter a raiva e a tendência natural de intervir sempre que via uma criança acorrentada à minha frente ou a tremer.”

O mais difícil

Há seis anos eram 50 mil os rapazes explorados só no Senegal, embora nem todos tivessem nascido no país. Muitos chegavam ali graças a redes de tráfico, deixando para trás as suas casas na Guiné-Bissau, na Gâmbia, na Mauritânia e no Mali. Hoje estima-se que sejam muitos mais, atendendo a que, em 2014, só na região de Dacar, foram contabilizados 30 mil, explica Lauren Seibert, activista dos direitos humanos que trabalha para a Human Rights Watch (HRW), no texto que assina no livro agora lançado e em que explica como funciona “o negócio” destas escolas que são tudo menos escolas.

“Muitas vezes são os pais que confiam os rapazes aos marabouts, porque eles tiveram uma educação boa numa daara”, diz o fotógrafo, explicando que este sistema de escolas corânicas é muito antigo e que há umas que funcionam (‘talibé’ quer dizer ‘aluno’ e não tinha inicialmente qualquer carga negativa), “nem todos os professores são criminosos”.

Foi em 2010 que a HRW começou a produzir relatórios sobre a situação dos talibés no Senegal, fazendo zoom sobre os abusos de que eram alvo, forçados a mendigar oito horas por dia, sujeitos a grande violência física e psicológica e sem acesso à educação ou a quaisquer cuidados de saúde. Muitos trabalham também nas lixeiras à procura de coisas que possam ser vendidas ou fazem entregas. Muitos ficam acorrentados nas daaras, onde “são raros os que dormem com medo de serem violados durante a noite”, diz Mário Cruz. “Comem muito mal, têm problemas de pele por causa da falta de condições de higiene e ficamos com a sensação de que mal sabem brincar. Chegam àquelas escolas falsas muito novos, com cinco ou seis anos, e não conhecem outra vida até aos 16, alguns mais.”

Muitos acabam depois a prostituir-se nas ruas onde tantas vezes dormiram quando andavam de lata na mão a pedir a mando do seu marabout, num clima de terror constante. “Quando hoje penso nalgumas das situações a que assisti, reconheço que, até chegar a estas daaras e a estes miúdos, nunca tinha sido confrontado verdadeiramente com o peso do medo, com o que ele pode fazer. Eles vivem completamente aterrorizados e em silêncio. Só abrem a boca para pedir dinheiro e arroz ou açúcar, que os marabouts depois revendem.” Os únicos que falam, precisa, são os que já fugiram das escolas. É de um deles a citação que Mário Cruz escolheu para abrir este livro que obedece a um guião preciso e em que os retratos funcionam como uma espécie de separadores entre capítulos. Chama-se Amadou, tinha 15 anos na altura e não sabia de onde vinha. Mário Cruz fotografa-o ao pé do rio, em Saint-Louis, segunda cidade do Senegal, no mesmo lugar em que fez uma das oito imagens que a Newsweek publicou um dia antes do anúncio do prémio do WPP, aquela em que nos perguntamos se fotografou um grupo de rapazes ou uma série de corpos sem peso que já pertencem a outra dimensão.

O último documento

A primeira vez que entrou numa daara foi um Rufisque, perto da capital. Era um edifício inacabado, onde havia 30 rapazes pequenos, a tremer de medo, muitos deles a chorar. Estava ainda muito escuro – começava a fotografar por volta das cinco e meia da manhã – e o cenário impressionou-o. “Foi muito perturbador. Eu não estava preparado para aquilo, como não estava preparado para ver [dias depois] um marabout chicotear um miúdo.”

Daaras como aquela passaram a ser uma constante naquele mês e meio em que contou com um guia a quem diz ter confiado a sua vida. Ibrahima Diop – chama-lhe Kapitan ou Kapi – trabalha para uma ONG e serviu muitas vezes de distracção para que Mário Cruz conseguisse usar a câmara. “Era preciso controlar os riscos e o Kapi ajudou-me a fazer isso.” Só não respeitou o acordo entre ambos – “Tínhamos combinado que, quando ele dissesse que eu não podia entrar numa escola, eu não entrava” – uma vez. Foi quando saltou o muro de uma daara em Touba, um centro religioso muito controlado, para fotografar o menino acorrentado que tem na mão páginas do Corão. “Escrevo com imagens – tinha absolutamente de fotografar. Sabia-se que havia marabouts que acorrentavam as crianças, mas não havia uma fotografia que o provasse.” Agora há. Várias. “Quando eles perceberam que eu estava ali, os mais pequenos assustaram-se e começaram a gritar, o que alertou os mais velhos. Tive de sair a correr e voltar a Dacar por uma estrada secundária, de terra batida. Levámos mais de seis horas a chegar. No caminho gravei as fotografias que tinha acabado de fazer em vários cartões [de memória] que escondi nas meias… Eu tinha de fazer aquela fotografia.” Para denunciar? “Primeiro para documentar. O que faço é documentar a realidade. Se os documentos que produzo servem para denunciar, melhor ainda.”

Os “documentos” que produziu serviram já para uma grande campanha de sensibilização para o problema dos talibés. Desde que em Fevereiro ganhou o prémio do WPP, que deu ao trabalho e à situação dos talibés projecção mundial (a série foi publicada também em jornais como o Washington Post e o El País e mostrada na CNN), o Presidente senegalês comprometeu-se a combater as falsas daaras e decidiu já que as crianças encontradas a mendigar devem ter apoio das forças policiais e ser encaminhadas para centros de acolhimento. Desde que a medida foi anunciada, em Junho, foram já mais de 500 os rapazes retirados das ruas e das escolas.

“Não sou ingénuo, mas gosto de pensar que estas fotografias podem ajudar as ONG que há anos alertam para este problema”, diz Mário Cruz. A eficácia das imagens não passa só pelo lado estético: “Quando trabalho neste contexto não tenho apenas de fazer uma fotografia boa esteticamente. Tenho cinco segundos para, em condições muito difíceis, fazer um documento explícito que as pessoas queiram ver. Dez anos de Lusa ajudam-me muito a ser eficaz em cinco segundos.”

Talibés – Escravos dos Tempos Modernos é uma edição cuidada de 1000 exemplares (250 estão a caminho do Senegal e da Guiné-Bissau para serem entregues em escolas e bibliotecas), cheia de pormenores e detalhes deliciosos, como aquela sequência de cinco planos em que uma fotografia que mostra um grupo de talibés a dormir no chão se vai revelando aos nossos olhos. Foi impressa na Turquia, na mesma gráfica de onde saem muitos dos catálogos da prestigiada Magnum, graças a uma campanha de crowdfunding que tinha por objectivo angariar 20 mil euros e acabou nos 33 mil. Com mais dinheiro, explica, todos os “impossíveis” – como ter partes do livro com papel diferente ou dobradas à mão – se tornaram viáveis.

“O livro é o último documento, uma alternativa interessante para os fotojornalistas, que têm cada vez menos espaço para publicar o seu trabalho nos jornais e nas revistas”, defende Mário Cruz. Além disso, acrescenta, “há histórias que não se podem contar em oito imagens”. A de Amadou e dos talibés como ele é uma delas.

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