Tudo se passa na cabeça delas

Uma das vozes mais singulares do teatro europeu traz ao Festival de Almada a sua intensa versão de Menina Júlia, de Strindberg. Na arrebatadora versão de Katie Mitchell, inspirada por Bergman, Fräulein Julie centra o texto numa personagem secundária e assume uma via feminista

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A recusa em ficar refém do texto tornou Mitchell de difícil assimilação em Inglaterra, trabalhando preferencialmente na Europa continental

A revolução no teatro de Katie Mitchell foi provocada, em primeiro lugar, por um sentimento de impossibilidade.

Em 2007, ao decidir adaptar o romance As Ondas, de Virginia Woolf, a encenadora inglesa chegou a meio do processo convencida de que havia uma barreira intransponível entre si e os pensamentos das sete personagens que lhe serviam de matéria. Após várias tentativas de abordagem, à medida que tentava encurtar a distância daqueles seres que habitavam o palco, nada parecia alterar-se, continuavam a escapar-lhe. Foi então que tomou uma decisão arriscada, sem saber exactamente o que buscava, chamando para a cena o realizador Leo Warner, cuja imaginação Mitchell reconhece ter sido crucial para reinventar o seu teatro. Ao introduzir um registo vídeo, recolhido e tratado em tempo real, também a distância entre o público e as personagens se esbatia. O uso das câmaras atirava-nos para dentro de personagens em que seria possível perceber cada expressão facial, cada esgar, cada subtileza de um discurso corporal que os palcos não costumam explorar. Abria-se assim toda uma dimensão psicológica que desde então passou a ser a imagem de marca do trabalho de uma encenadora que se diz fascinada pela não utilização da palavra no teatro. “Mas embora o Leo seja um colega extraordinário”, ressalva Mitchell ao PÚBLICO, “o crédito tem de ser atribuído à Virginia.”

Estamos sentados a uma mesa de trabalho instalada no palco do Grand Théâtre de Provence, onde Katie Mitchell estreará por estes dias, no Festival d’Aix, a sua encenação da ópera de Händel Alcina. O cenário composto por dois andares e várias divisões, pelas quais circulam várias câmaras, denunciam de forma evidente tratar-se de uma criação sua. Desde As Ondas que esta linguagem teatral se tornou uma assinatura inconfundível – em Lisboa pôde ser testemunhada na soberba encenação de Mitchell para The House Taken Over, ópera do compositor português Vasco Mendonça inspirada por um conto de Julio Cortázar – e esse cunho é imediatamente reconhecível logo nos ecrãs da entrada de artistas do Grand Théâtre que perscrutam o palco. “Reconhecível?”, questiona Mitchell. “Oh não! Mas de uma forma aborrecida?”

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Nada há de aborrecido na construção deste teatro tomado de assalto por um filme realizado em directo, dirigido com um rigor absoluto e que desde As Ondas tem sido saudado como a fabricação de uma nova prática performativa, valendo a Mitchell repetidas vezes a enunciação pela imprensa britânica de se tratar de uma das raras vozes autorais do teatro nacional. A ligeira e aparente preocupação de que possa trabalhar sobre uma forma pouco elástica não corresponde minimamente à absoluta segurança de ter encontrado o seu caminho. “Comparemos com as artes visuais: pensando em pintores como Mondrian, por exemplo, podemos dizer que trabalhou durante anos com uma paleta de cores muito restrita, mas todas as variações e subtilezas que explorou são válidas. Já me preocupei com essas questões, porque achei que poderia estar a repetir-me. Mas agora já não me preocupo. Será que isso deveria realmente importar? Não sei. Parece-me que todos os encenadores têm a sua assinatura própria, todos defendem uma estética. É também isso que o público paga e que uma instituição compra – a assinatura, a atmosfera, o tom, a cor dos espectáculos. E sinto-me confortável com isso.”

O desconforto, é fácil intuí-lo nas respostas de Katie Mitchell, aconteceria apenas se fosse forçada a concluir que passara “30 anos simplesmente a encenar peças”. Não é acidental que a experiência de As Ondas tenha passado por uma reinvenção dos seus recursos, no mesmíssimo momento em que se via com um bebé nos braços – “havia muitas mudanças a operarem-se em mim”, resume. A descoberta de então permitiu-lhe acercar-se daquilo que perseguia já anteriormente: “a representação da experiência e da percepção humana”, evitando as regras “sempre bastante masculinas que impõem o modelo de uma peça bem feita, com um herói que atravessa uma narrativa linear e emerge feliz ou triste no final, quando não é necessariamente assim que milhões de pessoas (sobretudo as mulheres) passam pela vida”. “A maioria das pessoas não tem experiências heróicas nem gasta o tempo na superação de grandes obstáculos. É por isso que estou a procurar outras formas de representar a experiência e a percepção do que é estar vivo porque há um controlo excessivo e nefasto sobre a forma como o fazemos em teatro. E esse processo parece-me interminável.”

Os recados de Bergman
A utilização recorrente do vídeo tem permitido a Katie Mitchell aceitar melhor a sua “relação ambivalente com a linguagem”, que suspeita ser consequência de um teatro inglês com uma tradição tão oral que, confessa, amiúde a leva a sentir-se esmagada e sufocada. “Desejo lutar por tudo quanto é visual, comportamental, emocional, que dispense as palavras”, reforça. Essa recusa em ficar refém do texto – e que faz com que professe a sua admiração pelo teatro de Strindberg, Ibsen, Beckett, Pinter ou, mais recentemente, Martin Crimp – tornou-a igualmente de difícil assimilação em Inglaterra, trabalhando preferencialmente na Europa continental. Mais uma vez, Katie Mitchell remete-nos para o quotidiano: “Acho excessivo um teatro em que tudo tem de ser expressado pela linguagem quando na vida há tão pouco que acontece através da linguagem.” Mas também aqui há uma carga de exagero nas suas palavras, embora se compreenda facilmente a argumentação de que “hoje em dia, culturalmente, somos capazes de digerir a informação visual muitíssimo rápido e não precisamos de tanta linguagem quanto aquela que existe numa peça do século XIX para que uma plateia mais nova a perceba.”

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É precisamente uma peça do século XIX (de 1888) que Katie Mitchell traz ao Festival de Almada, dias 13 e 14 de Julho, no Teatro Municipal Joaquim Benite. Fräulein Julie (A Menina Júlia) é uma criação em colaboração com Leo Warner a partir do clássico de August Strindberg, em resposta a uma encomenda da berlinense Schaubühne am Lehniner Platz, em 2010, com contornos razoavelmente definidos e assim enunciada: “Katie, não és muito conhecida na Alemanha, tens de fazer um clássico, um texto que toda a gente conheça. E queremos vídeo.” A encenadora, mais uma vez, viu-se perante uma outra aparente impossibilidade. Ainda se debateu e respondeu que não era praticável usar o vídeo numa peça com uma vincada natureza teatral. Uma coisa era partir de um texto literário (Virginia Woolf) ou abordar óperas (sobretudo contemporâneas) que dirige com frequência; outra bem diferente era aplicar esse mesmo dispositivo a um clássico.

Munida de alguns textos canónicos na Dinamarca, lembra-se de estar rodeada de uma neve densa que associa a esse momento de súbita epifania em que se apercebeu que poderia tomar a decisão radical de eliminar todas as cenas de Menina Júlia em que a criada Kristin não estava presente, sem atrofiar o sentido da peça. “Encontrei algo de francamente bom, económico e contundente”, confessa. Desbastando o texto do autor sueco e elegendo como ponto de vista uma figura secundária na história de sedução, de manipulação, de luta de poder e de classes, que se centra em Jean e Julie, descobria também forma de equilibrar uma obra assinada por um autor com popularidade de misógino com um pulsar feminista que assume ter-se apoderado do olhar que actualmente procura colocar em cena. “Quantas destas personagens secundárias femininas há espalhadas por toda a dramaturgia, desde que se começou a escrever teatro até hoje? Quantas há empurradas para as margens?”, pergunta.

Ao escalpelizar drasticamente o texto de Strindberg, Mitchell decidiu encontrar-lhe um contraponto, consultando os seus amigos do teatro escandinavo na procura de uma autora feminista que servisse de contraponto. A resposta, de todos os lados, chegou-lhe com o nome Inger Christensen. “E fiquei surpreendida por, no final, decisões tão simples como cortar as cenas em que Kristin não está presente e inserir os pensamentos desta poetisa dinamarquesa se encaixarem de forma tão escorreita. Isso também me permitiu acrescentar uma boa contribuição formal e feminina para o cânone, espero, e para a forma como apresentamos peças de homens brancos, europeus e mortos.” A outra consequência, tremenda, dos cortes aplicados no texto de Strindberg é a de ficarmos frente a frente com Kristin numa série de tarefas domésticas, realizadas desapressada e metodicamente, permitindo uma notável imersão na dimensão psicológica da personagem, que se refugia em gestos mecânicos como antídoto para uma ansiedade, um ciúme e um conflito interior a resvalar para o desespero.

Em cada imagem, em que o silêncio (ou a festa que decorre em segundo plano e atira Julie e Jean para os braços um do outro, ou a discussão lá atrás entre os dois amantes empurrando-os para acções extremas) cava ainda mais fundo o mergulho em Kristin, dir-se-ia ecoar o cinema de Ingmar Bergman. “Sim, trata-se de uma pequena homenagem”, admite Katie Mitchell. “Filmes como Mónica e o Desejo e Através de Um Espelho foram muito importantes para dar forma a esta peça.” Foi inclusive através de Bergman, assumidamente influenciado pela obra de Strindberg, que a encenadora chegou pela primeira vez aos textos do dramaturgo sueco. E embora nunca se tenham chegado verdadeiramente a cruzar, quando Mitchell montou Easter em Estocolmo, na histórica sala Dramaten e com alguns dos actores que povoam a obra de Bergman, recebia todas as manhãs recados do cineasta enviados pelo actor Erland Josephson que, no final do dia, relatava sempre ao mestre o que a inglesa andava a fazer com as palavras de Strindberg. “O Ingmar pergunta o que está a fazer com a peça”, “o Ingmar acha que não devia fazer isto, devia fazer antes aquilo”, “o Ingmar gosta dessa solução”, recorda Mitchell sobre as notas espontâneas que recebia sem alguma vez as ter pedido.

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Filmes como Mónica e o Desejo e Através de Um Espelho, de Bergman, foram importantes para dar forma à peça
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Nunca tomou tais observações como uma ingerência no seu trabalho, antes as recebia com espanto de quem mal podia acreditar que Bergman lhe enviava recados, sem que ela os ouvisse de viva voz. Até porque ela mesma procurava habitar o mais possível atalhos para o universo de Strindberg, fosse por que meio fosse. Todos os dias, quando ia para o Dramaten, refazia os passos conhecidos do autor a caminho do teatro, por um caminho onde este ia recolhendo coisas na rua, nas quais pegava e lia sinais. Mitchell imitou-lhe os gestos, coleccionou objectos avulsos procurando neles uma qualquer justificação. Na verdade, fez um movimento semelhante com o seu percurso no teatro, testando várias abordagens isoladas até que, um dia, Virginia Woolf lhe ergueu um muro e a fez perceber que o seu teatro poderia ser mais do que uma soma de acasos.

O Ípsilon viajou a convite do Festival de Almada

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