Tudo o que podemos fazer com o insucesso

1. Ia começar esta crónica quando tropecei na conquista do Leste do Iraque e do Norte da Síria por aquele exército demente que declarou a restauração do Califado. Estive no Leste do Iraque em 2003, no Norte da Síria em 2009, esta história também é minha. Dementes manobrando deus como manobram um arsenal, muito bem sucedidos: ninguém fez tanto mal ao islão quanto eles. Há sucessos aniquiladores, a nossa história comum está cheia deles, tal como a nossa história individual está cheia de insucessos à espera de tudo o que podemos fazer com eles.

2. Alguém aqui sabe quem foi Blarmino? Não confundir com o pugilista Belarmino, com que Fernando Lopes marcou o Cinema Novo, em 1964. Este Blarmino é uma personagem contemporânea: a figura do insucesso. Fiz uma busca de Blarmino no Google e as primeiras imagens que aparecem são todas de Belarmino. Aliás, o Google tenta corrigir Blarmino para Belarmino, e depois de nos dar imagens de Belarmino dá-nos umas moças em pose sexy. Em suma, não há uma única imagem de Blarmino no Google, e ele foi um artista. Caso de insucesso agudo.

3. Digo foi porque já não é, largou o nome. Blarmino era o pseudónimo de um duo de Coimbra que tocava tecno e em seguida do rapaz que escrevia as canções desse duo, e continuou a escrever a solo, pop-rock. Compôs pelo menos umas 70 canções na primeira década do século XXI, deu vários concertos em Portugal, mas nunca gravou um disco e hoje ninguém sabe quem ele foi, sendo que tudo isto aconteceu ontem.

4. Este ninguém é retórico. Algumas pessoas sabem. Músicos que terão tocado com ele. Cantores para quem ele terá composto. Gente que terá partilhado casa com ele. Vamos parar nesta última hipótese: Rui Catalão. O inventor-de-um-género-cénico Rui Catalão partilhou casa com Blarmino. Não apenas: admirava-o tanto que foi até ao Minho para dançar em concertos de Blarmino. Isto é muito, porque o Rui não é de admiração fácil. Mais ainda: o Rui admira-o tanto que no domingo em que lerem esta crónica estará em palco a apresentar/representar canções i comentários ? Exmo. Sr. Blarmino no Teatro Maria Matos, em Lisboa, depois da estreia sábado, e antes da continuação terça e quarta. Declaração de interesses: sou amiga do Rui há muitos anos, desde que ambos trabalhávamos na redacção do PÚBLICO. Vi esta peça-concerto-documentário em antestreia na Black Box de Montemor-o-Novo no mês passado.

5. Eu não fazia ideia do que ia ver. À entrada, recebíamos uma folhinha com letras minúsculas. Percebi adiante que eram as letras de Blarmino, e que ele tinha sido um músico. Como o Rui falava sempre no passado passei o espectáculo a achar que Blarmino já tinha morrido. O Rui falava porque é isso que ele faz, fala connosco. Em pé, quase sempre à boca de cena, começa a contar-nos a história de uma catástrofe, o dia em que uma conduta de água rebentou na Rua de Alfama onde eles moravam, Rui e Blarmino, e uma enxurrada entrou por uma janela e saiu por outra, porque a casa tinha janelas na frente e nas traseiras, sendo que de um lado era cave, do outro primeiro andar, ou vice-versa, estou a resumir de memória. Ora, além dos bens do Rui, que nesse momento se achava na Roménia, o tesouro da casa era o estúdio de Blarmino. Foi um rio que passou na vida dele, diria Paulinho da Viola. Blarmino nunca descolara como músico e agora a água levara tudo. E isto é só o prólogo, pouco revelo. Saibam apenas que por trás de Rui está o antigo parceiro do duo, Pedro Oliveira, mais João Bento no som e Cristóvão Cunha na luz, trio que toma conta da cena entre os episódios falados, recriando mais do que a música de Blarmino, a sua ausência.

6. No Maria Matos, Rui fará uma coisa que não fez na antestreia. Canta uma canção que Blarmino compôs para amigos, e começa assim: boy / vou te contar como até dói / a bicharada emergiu do esgoto e invadiu o cristo-rei. Talvez Blarmino tenha soado demasiado tarde e escrito demasiado cedo. “A tese que defendo em canções i comentários é a de que Blarmino é a grande voz da sua geração exactamente porque não foi escutada pela sua geração”, diz Rui Catalão no press release do espectáculo. “Nós pensamos que vivemos um tempo difícil porque não há trabalho, não há dinheiro e não conseguimos fazer o que queremos; mas este é um tempo difícil porque ainda não aprendemos a fazer coisas consideradas importantes por quem está à nossa volta. É um problema de poder, de falta de empatia.” Nunca tinha visto isso posto em cena assim. É exactamente por isso que esta peça é uma grande peça da sua geração.

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7. Então, Rui canta e há vários registos de Blarmino em várias versões: concerto. Mas também teatro: texto, luz, cena. Quando o corpo domina a expressão, dança. Tudo somado, autobiografia. Já era assim em Por Dentro das Palavras, o espectáculo de 2010 em que Rui Catalão inventou este género literário em palco. Há um momento de canções i comentários em que ele fala da geração de talentosos fracassados, nascidos pouco antes ou já depois do 25 de Abril, autores de música que não se grava, filmes que não se filmam, livros que não se publicam. O que Rui tem feito desde 2010 é expandir o seu próprio género, que consiste em levar para cena a sua arca de noé e transformar a música que não foi editada, o filme que não foi feito, o livro que não foi publicado, na paródia trágico-marítima do seu próprio naufrágio, desde a adolescência no Cacém. Multiplicado na plateia, será o naufrágio de cada um.

8. Depois da fase em que achei que Blarmino estava morto e que o espectáculo era uma espécie de luto (não deixa de ser, seja como for), veio a fase em que achei que talvez tivesse visto Blarmino ao vivo sem saber. Porque, entre as rarefeitas informações aqui e ali na Internet, colhi a referência de uns concertos no Arcaz Velho e de um derradeiro concerto no Left. Ora, o Arcaz Velho era um bar ao fundo da rua onde morei durante anos em Alfama. E o Left era um bar em Santos onde me lembro de ver música ao vivo. No fim dessa fase, eu já estava convencida de que de certeza vira Blarmino. Foi mesmo antes de me assaltar a certeza: Blarmino não existia.

9. Liguei ao autor da personagem. Porque é que não havia fotografias de Blarmino na Net, nem uma fotozinha vagabunda? O autor explicou que a personagem tinha uma relação difícil com a exposição e que além disso naquela altura não havia estas câmaras todas. Naquela altura, tipo, ontem, hummm. E onde é que ele estava agora? O autor nomeou uma cidade europeia onde, por estranha coincidência, me acharei no momento em que esta crónica for publicada. Quando disse isso ao autor, ele ofereceu-se para me dar os contactos de Blarmino, rapaz aliás encantador, que com certeza falaria comigo. Mencionou músicos como B Fachada e Samuel Úria, que conheceram Blarmino. Deu-me novas do que ele anda a fazer nessa tal cidade europeia, sob outro nome: baterista aqui, parceiro de um velho músico africano ali. Passou-me o gmail dele.

10. Ao longo do telefonema caiu a ficha. Ou Blarmino escolheu deixar de ser Blarmino ou o autor escolheu que Blarmino deixaria de ser Blarmino, fosse como fosse, não havia razão para lhe escrever. Blarmino é o seu próprio desfecho, tudo o que é possível fazer com o insucesso. Nada nos aproxima tanto, portanto nada mais poderoso.     

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