Teatro no sangue argentino

É por Buenos Aires – pelas 500 peças em cartaz ao finde, pelas lotações esgotadas um mês antes, por essa coisa de ter de ir ao teatro como se tem de comer ou de amar – que suspira o 31.º Festival de Almada (e, já hoje, a sua extensão em Matosinhos).

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Em Alemania, Nacho Ciatti põe em cena um dos temas recorrentes do novo teatro argentino: a família disfuncional
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Sudado, criação colectiva encenada por Jorge Eiro, aborda o fantasma da morte de um pai e o corpo presente da imigração peruana em Buenos Aires
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Bernardo Cappa acha que a Argentina tem um "hábito consolidado para a mentira"; por isso chamou à sua peça La verdad
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Em El tiempo todo entero, Romina Paula revisita O Jardim Zoológico de Cristal, de Tennessee Williams GIOVANNI CITTADINI CESI
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A gramática e a grande ilusão do cinema clássico dominam Impalpable NATALIA RUBINSTEIN

Carlos Pacheco é rápido a atender a extensão 114 do Instituto Nacional del Teatro (INT) onde acaba de chegar para mais um dia de trabalho e mais rápido ainda a disparar a pergunta – fatal, como todo o teatro argentino desde os anos 1990 – com que nos dá uma goleada tão difícil de engolir como aqueles 4-0 de há umas semanas com a Alemanha: “Imaginas o que é ser crítico de teatro numa cidade onde há 500 peças em cartaz todos os fins-de-semana?”.

Seria um golpe baixo se não fosse a verdade sobre o teatro em Buenos Aires – pelo menos do sítio de onde o vê Carlos Pacheco, que além de funcionário do INT (integra o Conselho Editorial, responsável pela editora INTeatro e pela revista Picadero) é um dos sete críticos de teatro do diário La Nación. E no entanto parece mentira, o furor do teatro num país em risco de declarar a sua segunda falência técnica em apenas 13 anos (mas verdade e mentira, como veremos mais adiante, não são termos tão radicalmente opostos na Argentina como no resto do mundo). Parece mentira pelo menos do sítio de onde o vemos, onde também é finde e não há mais do que 12 peças para ver em Lisboa – 13, se fizermos jogo sujo e contarmos com Orquídeas, de Pippo Delbono, que hoje abre o 31.º Festival de Almada, mas do outro lado do rio.

Podemos continuar a fazer contas (como naquele Mundial, talvez ainda estejam lembrados, em que a Argentina seguiu em frente e nós não): é mesmo para este país com quatro vezes menos pessoas e 20 vezes menos teatro que uma pequeníssima ponta do gigantesco – e expansionista – fenómeno Buenos Aires vai transferir-se nas próximas semanas, através de uma ponte aérea, o ciclo Novíssimo Teatro Argentino, que o Festival de Almada montou em co-produção com o Cine-Teatro Constantino Nery, de Matosinhos (onde o ciclo arranca esta noite com a primeira apresentação de Impalpable, que desce até ao Fórum Romeu Correia na próxima segunda-feira, dia 7), e o Centro Cultural de Belém, de Lisboa (que receberá, respectivamente dias 9 e 12, El tiempo todo entero e Fauna, de Romina Paula, de longe a figura mais internacional, e em certo sentido mais fenomenal, deste contingente). No mesmo avião viajam ainda La verdad, de Bernardo Cappa (domingo, dia 6, em Matosinhos; sexta-feira, dia 11, em Almada), Sudado, criação colectiva de Facundo Aquinos, Julián Cabrera, Belén Charpentier, Jorge Eiro, Facundo Livio Mejía e Paul Romero (dia 11 em Matosinhos; dia 13 em Almada) e Alemania, de Nacho Ciatti (dia 13 em Matosinhos; dia 17 em Almada): seis casos exemplares da nova geração de autores-encenadores independentes que o director da Companhia de Teatro de Almada, Rodrigo Francisco, quis trazer na mala como recuerdo depois de ter ido propositadamente a Buenos Aires para ver de perto aquilo que ainda só conhecia de ouvir falar.

É, conta ao Ípsilon, tudo aquilo que se diz e ainda mais do que isso. Quinhentas peças em cartaz ao finde, verdade. Lotações esgotadas a um mês da estreia, verdade. Essa coisa de ter de ir ao teatro como se tem de comer ou de amar, verdade. Mais, Rodrigo, estamos preparados para o KO final: “É um meio incrivelmente efervescente. Há uma sede de teatro incrível naquela cidade – de fazer teatro e de ver teatro. Vive-se numa instabilidade económica brutal, sob a ameaça dos fundos-abutre, e no entanto as salas estão completamente cheias – e cheias para ver um teatro que é impossível não admirar. A falta de meios leva de facto a um investimento no essencial: um actor, um texto, o público. E sim, vem-se de lá com uma nostalgia…”, suspira o director do Festival de Almada.

Vamos suspirar todos: os seis espectáculos que integram este Novíssimo Teatro Argentino podiam não estar à altura desse mito urbano que é o circuito independente de Buenos Aires mas estão. “Destes seis há três que para mim são verdadeiras obras-primas: El tiempo todo entero, La verdad e Alemania. Mas todos são muito típicos do teatro que se fez aqui nos últimos cinco anos – e muito diferentes uns dos outros também, porque é um universo tão grande que não há propriamente tendências dominantes”, admite, com um certo espanto, Carlos Pacheco. Ele sabe o que é ser crítico de teatro em Buenos Aires: sabe o que é escaparem-lhe coisas importantes “a todo o momento”, sabe o que é ter de escolher os melhores espectáculos do ano quando só viu “uma ínfima parte do que havia para ver” (por exemplo: não viu Sudado), sabe como é quase impossível, tipo agulha num palheiro, chegar a uma amostra minimamente representativa. “E esta, que junta o modo de produção verdadeiramente colectivo de criações como La Verdad, Impalpable e Sudado, o notável trabalho a partir dos clássicos de El tiempo todo entero, e o olhar sobre a família disfuncional de Alemania, parece perfeita.”

 

Um fenómeno

Antes de chegar a Buenos Aires em 2013, Rodrigo Francisco sabia do teatro argentino aquilo que ao longo das últimas duas décadas foi aparecendo na Europa, geração pós-Ricardo Bartís (a figura tutelar do movimento independente que em 1986 transformou um antigo depósito de ambulâncias numa instituição fundadora, o Sportivo Teatral). Daniel Veronese (n. 1955), Rodrigo García (n. 1964), Rafael Spregelburd (n. 1970), Claudio Tolcachir (n. 1975), Lola Arías (n. 1976), todos fizeram a sua escala em Portugal (e nalguns casos em Almada) com a faixa de next big thing a tiracolo. Mas para os teatristas que integram o ciclo organizado por esta 31.ª edição do festival – à excepção de Romina Paula, que em 2011 aterrou no Festival d’Automne, em Paris, para logo ali se transformar numa “das realidades mais estimulantes do teatro argentino” – a Europa começa hoje em Portugal. “Eu tinha uma pasta com 50 bons espectáculos. Para escolher estes seis foi uma questão de olhar para eles mais com os olhos do Brecht do que com os olhos do Stanislavski. Mas um dado interessante acerca desta novíssima geração que lá fui descobrir, e que a distancia da anterior, é a relação com a Europa. A dada altura, a geração anterior caiu nas mãos dos programadores europeus, que a venderam por todo o mundo como ‘a nova geração do teatro argentino’. Os que apareceram entretanto sentem-se tapados pelos novos que já não são assim tão novos – e têm uma grande ânsia de mostrar o seu trabalho fora da América Latina”, diz o director do Festival de Almada.

Descobriu-os, sublinha, não na Avenida Corrientes, eixo principal do pujante circuito comercial que nunca esmoreceu em Buenos Aires – e está vivo desde finais do século XIX... –, nem nos vários teatros públicos, funcionais apesar da crise, da capital argentina. “A maioria destes espectáculos produziu-se nas salas esconsas, mas sempre cheias, do circuito não oficial, onde a escassez de meios faz com que não haja uma verdadeira profissionalização. Justamente o que me impressionou: como é que só com uma mesa e duas cadeiras eles conseguem aproximar-se tão profundamente de um texto? A verdade é que é por não poderem pagar um salário aos actores para que eles estejam dois meses a ensaiar a tempo inteiro estes colectivos acabam por ficar às vezes um ano a trabalhar um texto – e as carreiras também podem ser enormes, porque passam ao lado das salas convencionais e os espaços alternativos são elásticos. Isso faz toda a diferença: os actores vão-se fazendo na relação com as personagens, os textos vão-se fazendo na relação com os actores. Aliás não é por acaso que esta é uma geração de autores: quase sempre os textos são criações originais, o que torna a experiência teatral muito verdadeira, muito próxima da vida”, continua Rodrigo.

Apesar de se ter fixado na capital argentina há muito anos, Alberto Ligaluppi, o director do Complejo Teatral de Buenos Aires, ainda se espanta com isso: “Quinhentas peças, várias sessões por dia e todas têm gente. Para mim, que nasci no interior da Argentina, isto é um fenómeno assombroso de Buenos Aires – que vem pelo menos desde os anos 40. Há um vínculo doido, irreproduzível, entre os teatristas e o público da cidade. Para os porteños, o teatro é uma actividade básica: tanto te cruzas com o intelectual como com o sapateiro, com o pai como com o filho, é uma arte verdadeiramente popular. E quanto maior é a crise, mais se vai ao teatro”, explica ao Ípsilon. Com oito salas e uma estrutura fixa de mais de 700 empregados (aos quais se juntam cerca de 300 contratados para as cerca de 25 novas produções que estreiam anualmente, e que muitas vezes estão esgotadas um mês antes da estreia), o complexo municipal que dirige é “o maior da América Latina” (“ou seja: um pesadelo”) – mas, garante, “não é o apoio financeiro do Estado e da cidade que explica o fenómeno”, antes a incessante renovação que acontece fora do sistema, num circuito que o fim da ditadura, primeiro, e a crise dos anos 90, depois, fizeram proliferar em casas particulares, pátios, armazéns, fábricas desactivadas, garagens, o que quer que esteja disponível.

 

A verdade da mentira

Entendido: há toda uma tradição de teatro off – nem comercial nem estatal – por trás do Novíssimo Teatro Argentino, uma tradição que é tão histórica quanto biológica, no sentido de correr de facto no sangue da cidade (diz Alberto: “Buenos Aires acolheu uma grande imigração de artistas espanhóis e do centro da Europa, muitos dos quais judeus, formados nas melhores escolas; a mistura das duas influências fez dos porteños fanáticos de duas actividades: a psicanálise e o teatro”). Mas há marcas que distanciam a nova geração de teatristas dessa antiga tradição, e mesmo da geração de Spregelburd e Tolcachir; talvez a mais evidente delas seja o hiper-realismo às vezes quase absurdo destas seis peças “em que os actores quase não actuam” – um realismo que toca muito fundo na ferida da persistência da mentira na sociedade argentina, o tema de Bernardo Cappa em La Verdad, mas também nas feridas do abandono familiar (o pai que regressa 20 anos depois de ter desaparecido para ser feliz noutro lugar: Alemania, de Nacho Ciatti) e da morte do pai (Sudado, uma das raras demonstrações de interesse do teatro independente de Buenos Aires pela figura do imigrante peruano).

Família à parte – foi o tópico da geração de Spregelburd e Tolcachir, ainda é o tópico desta, como confirma Romina Paula: “Falar de neuroses familiares é uma actividade quotidiana e natural em Buenos Aires” –, a tensão entre a verdade e a mentira (no limite: entre a vida e o teatro) parece ser o campo de forças de boa parte destes seis espectáculos. Sublinhando, diz Carlos Pacheco, “a necessidade de deixar cair as máscaras”. Vejamos Fauna, em que um realizador e uma actriz fazem os possíveis por aproximar-se da vida de uma mulher mítica, que pretendem reproduzir no cinema: é a ficção, não a realidade, que desmascara as personagens, como se em vez de as proteger as expusesse. “Para mim, essa fronteira entre a vida e o teatro não é uma questão teórica, é uma questão vital: que parte da nossa vida é verdade e que parte é representação, em que é que a construção de uma personalidade se assemelha à construção de uma personagem? Esta peça tem a ver com a minha inquietude acerca disso – com uma inquietude, repito, não com uma certeza”, explicava a dramaturga e encenadora numa entrevista.

Imaginamo-la a falar sobre esse trânsito com Ignacio de Santis e Sergio Calvo, os autores e encenadores de Impalpable, peça que abre este ciclo: província, anos 50,a ilusão do cinema como fuga à realidade para três mulheres solitárias. Ignacio e Sergio imaginaram-nas a partir de textos e entrevistas de Manuel Puig (1932-1990), o argentino que se tornou escritor a ver filmes, obsessivamente, nas matinés de domingo: “Recusei totalmente a realidade que me calhou viver. As comédias, os musicais: isso para mim passou a ser a realidade. O resto, a aldeia, era como um western no qual eu tinha entrado por engano, um filme do qual não podia sair.” Tal como a imaginamos a falar com Jorge Eiro, que para encenar Sudado trabalhou “obsessivamente o verosímil” (e frequentou os muitos restaurantes peruanos do bairro de Abastos, o epicentro do teatro independente), e com Bernardo Cappa, que tem a mais inconveniente das explicações para a força do teatro do seu país: “Em todo o lado na Argentina as coisas são duplas. Aqui entras num táxi e tens de representar para o taxista não te levar a dar voltas. O espectador já possui uma espécie de hábito consolidado para a mentira – para perceber a mentira e para a praticar. O actor tem de lutar contra isso, tem de se sobrepor a essa incredulidade que circula (…). É por isso que cá se representa muito bem, porque para sobreviver é preciso fazê-lo, e muito.”

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