Stefan Zweig no meio da multidão

É um dos grandes filmes do ano: uma biografia de Stefan Zweig que é também uma radiografia do fim de um mundo. Maria Schrader, a realizadora de Stefan Zweig – Adeus, Europa, explica que quis fazer um filme sobre a Europa vista de longe, à distância do exílio.

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No papel, a biografia do escritor judeu austríaco (1888-1942) que foi o cronista da “Mitteleuropa” na transição do século XIX para o século XX; na prática, a radiografia minuciosa de um mundo que acabava
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Maria Schrader toma um café no foyer do balcão do São Jorge, a poucos passos da varanda sobre a avenida da Liberdade, em Lisboa, e parece ainda estar incrédula que o filme que aqui a trouxe tenha feito a carreira que fez. “Toda a gente nos dizia que não íamos ser capazes de montar este filme”, diz. “Diziam-nos que éramos malucos, que o filme era tão anacronista que não ia fazer espectadores. Houve momentos em que achámos que nunca conseguiríamos financiamento, mas nesses momentos eu contentava-me por saber que tinha feito esta viagem maravilhosa durante a escrita do guião. Tivemos metade do dinheiro que devíamos ter tido, houve uma equipa fabulosa que nos ajudou a levar o barco a bom porto. E, por isso, é óptimo saber que fomos capazes de o fazer.”

Esse filme é Stefan Zweig – Adeus, Europa; no papel, uma biografia do escritor judeu austríaco (1888-1942) que foi o cronista superior da lenta decadência da “Mitteleuropa” na transição do século XIX para o século XX; na prática, uma radiografia minuciosa de um mundo que acabava através da história de um homem que manteve intacta, até ao fim, a sua dignidade moral e o seu humanismo rigoroso. Apreciável sucesso crítico e de bilheteira um pouco por toda a Europa, Stefan Zweig estreia esta semana nas nossas salas, depois de algumas sessões com historiadores e políticos e uma ante-estreia na mostra Kino 2017 que trouxe a Lisboa a realizadora e o seu co-argumentista, Jan Schomburg.

O projecto levou cinco anos a pôr em prática, explica Schrader, mas, na origem, seria uma encomenda totalmente diferente. “O filme é dedicado a um produtor francês chamado Denis Poncet [1948-2014], que veio ter comigo à procura de uma realizadora de língua alemã, para um filme sobre a segunda mulher de Zweig, Lotte. Eu tinha feito um filme anterior muito semelhante, sobre uma jovem que construia uma obsessão estranha por um homem mais velho, muito icónico… Quando comecei a ler sobre Lotte disse que não me parecia interessante, ela não era realmente a protagonista da história e não me queria repetir. No entanto, tudo o que eu lia sobre Zweig me parecia incrivelmente interessante. E pedi ao Jan que passasse algum tempo a pesquisar comigo, a pensarmos juntos como poderíamos falar de Zweig e do exílio…”

O projecto desenvolveu-se então numa direcção completamente diferente, mas sempre recusando as convenções do filme biográfico. “Quando começámos a ler sobre Zweig, sentimo-nos muito intrigados pelo tema do exílio,” explica Schrader. “Quisemos fazer um filme que se passasse num tempo difícil sobre a Europa, mas sem mostrar a Europa.” Jan Schomburg, que acompanha a entrevista, interjecta que a ideia era fugir aos lugares-comuns do filme passado durante a Segunda Guerra Mundial, porque a iconografia do período está de tal modo “gasta” que automaticamente iria minimizar a história de Zweig e a dor do exílio que lhe está no centro. “Achámos que seria bem mais intrigante mostrar a natureza tropical enquanto pensamos no Holocausto. Falar da Europa sem nunca a mostrar, sem nunca ter de recorrer às imagens que já conhecemos, que já estão normalizadas”. “Foi nesse momento,” continua Schrader, “que decidimos mostrar momentos muito específicos da sua biografia. Sentimos que era preciso abordar tudo de uma maneira muito forte.”

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Por isso, Stefan Zweig está estruturado como uma novela, com prólogo, quatro capítulos e um epílogo, fazendo corresponder a cada capítulo um local e uma data específicos: a visita de Zweig ao Congresso PEN de Buenos Aires em 1937; a sua primeira viagem ao Recife em 1941; uma passagem por Nova Iorque em 1941, no pico da fuga dos judeus da Europa onde visita a ex-mulher e os filhos; a sua instalação definitiva com a segunda mulher, Lotte, em Petrópolis, no Brasil, em 1941, onde se suicidaria no ano seguinte. “Tornou-se-nos evidente,” explica a realizadora, “que enquadrar o filme entre a sua primeira visita ao Brasil e a sua morte. Porque o Brasil parecia ser uma espécie de «amante substituto» de Zweig, e permite-nos seguir um arco narrativo clássico. Ele apaixona-se pelo Brasil, pela possibilidade de identificar-se mais uma vez com um local, de construir uma vida nova. Essa possibilidade de seguir em frente com a vida e com o trabalho existia realmente. Mas ele percebe que não consegue construir essa vida nova...”

Morte no paraíso

É esse o “mistério”, a “pergunta” que persegue todo o filme: o suicídio de Zweig e de Lotte em Petrópolis, como se o Brasil fosse perfeito demais, ou imperfeito demais para alguém que conheceu Viena no seu auge. “Como é que alguém de tão privilegiado, comparado com milhões de outros, se decide matar no meio deste paraíso?”, diz Maria Schrader. “Foi esse mistério que lançou o filme. Zweig era realmente uma cabeça que pensava na Europa que pensava numa Europa unida. Fez as perguntas certas no tempo certo, e teve consciência que tinha um papel público a representar, e abdicou de voltar à privacidade da escrita. Sentiu a responsabilidade de ajudar os outros a fugir à Europa, de fazer as perguntas importantes, de tentar responder-lhes, de estar em diálogo com o seu tempo… Como diz o Josef Hader [o actor austríaco que interpreta o escritor], a vida de Zweig parecia, ela própria, ser um dos seus livros, como se ele fosse personagem da sua própria história.”

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Maria Schrader, a realizadora de Stefan Zweig — Adeus, Europa Miguel Manso

As ressonâncias que Stefan Zweig – Adeus, Europa tem nos nossos dias sobre o questionamento interno da consciência e da moral europeias, sobre as questões levantadas sobre os exílios, as diásporas, os asilos, os refugiados são evidentes, incluindo para a realizadora. “Mas como poderíamos ter sabido?”, diz. “Começámos a trabalhar neste filme há cinco anos, e a primeira montagem ficou pronta no pico da crise dos refugiados.” “Há um momento no filme,” aponta Schomburg, “em que a filha de Zweig diz que estavam no cais de Marselha com mais de 2000 pessoas a quererem entrar num barco. E naquele preciso momento aquilo estava a acontecer, mas do outro lado do Mediterrâneo. Foi muito estranho, e perturbante, e comovente, ver que este filme sobre um intelectual a atravessar um momento histórico nos anos 1940 falava de repente ao nosso mundo.”

Isso pode também ser atribuído à dimensão instintiva, intuitiva, inscrita no filme por Maria Schrader, que tem uma longa carreira de actriz (e, nas palavras de Schomburg, “é tão perfeccionista como realizadora como o é enquanto actriz). “Muitas das minhas decisões são instintivas, sim. No meu caso, sempre que acabava de escrever uma cena, via-a à frente dos olhos. Chegava a um cenário, a um exterior, e instintivamente dizia: isto bate certo, isto não. Mesmo com os actores, apenas percebo a dimensão intuitiva da minha escolha já depois de falar com eles. No caso do Josef Hader, por exemplo, reconheci nele uma capacidade de pensamento e de emoção ideal para o papel. Não duvidei por um momento que ele fosse capaz de ser Zweig. Ele, sim, duvidava. Avisou-me: «Maria, vais ficar desiludida, não sou o actor profissional de que precisas…» Estava enganado. Ou antes,” ri-se, “sim, estava certo, porque não é um actor com estudos, virtuoso. Mas não era isso que eu queria. Queria ver um escritor no meio da multidão.”

É esta frase - “um escritor no meio da multidão” - que explica toda a abordagem de Maria Schrader à sua história: “Pensei no filme como um documentário histórico filmado como se fosse uma ficção: pensar que o Stefan Zweig nos permitiu acompanhar a sua vida. Isso implicava dar aos actores o máximo de possibilidades de movimento, a maior liberdade em frente à câmara. A câmara, no nosso filme, vai sempre atrás. Só no prólogo e no epílogo [rodados em plano-sequência único] é que havia marcações a seguir, uma coreografia formal, mas todo o resto do filme era completamente livre. O nosso director de fotografia, Wolfgang Thaler, vem do documentário e percebeu isso completamente.”

“Queríamos um filme que fosse ao mesmo tempo pensativo, inteligente, mas também sensual, sensorial, cheio de camadas,” remata Maria Schrader. “Não queríamos ter de escolher entre a imagem e a ideia. É óptimo ver que conseguimos fazer o filme que queríamos, apesar de todos os momentos em que receámos que nunca o conseguíssemos levar a cabo. E que fizemos esta viagem por todo o mundo com ele.”

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