O sonho de um mundo melhor junta estrelas de África no céu de Lisboa

Por uma música nova e uma causa, Les Amazones d'Afrique, banda criada há menos de um ano, actua esta quinta-feira na Gulbenkian. São sete vozes num encontro de gerações, vários mundos, que junta a cidade e a tradição, a África e o resto do mundo.

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Mulheres que cantam para salvar vidas Ana Dias Cordeiro, Frederico Batista

São mulheres do Mali, Gabão, Senegal, Nigéria. A maioria vive entre Bamaco e Paris ou Berlim. Juntas formam a banda feminina Les Amazones d’Afrique, criada no Mali em Setembro de 2015. O conjunto de sete cantoras, uma baterista, dois guitarristas e um teclista sobe esta quinta-feira ao palco do auditório ao ar livre da Fundação Gulbenkian, no concerto de abertura do festival Jardim de Verão, depois da estreia europeia em Outubro em Marselha, França, e de um concerto no país de origem da maioria das cantoras: Mali.

O destino juntou estrelas da música do Mali a nomes de uma abençoada nova geração de cantoras africanas (da Nigéria, Senegal ou Gabão) que conquistam públicos em todo o mundo.

É tudo muito recente e "totalmente novo", diz no intervalo de um ensaio Pamela Badjogo, uma das cantoras. “Les Amazones d’Afrique é um projecto vanguardista e original”, afirma com alegria. Pamela fala como canta: com um grande sorriso.

Esta semana a banda actuou na Casa das Artes de Sines, onde esteve em ensaios numa residência artística. Quase todas as cantoras têm as suas carreiras a solo em salas ou festivais em França ou noutros países europeus. Este projecto é mais do que isso. É qualquer coisa que as engrandece, dizem. Não só pelo orgulho de estarem ao lado das decanas do grupo – Kandia Kouyaté e Mariam Doumbia da conhecida dupla Amadou & Mariam. Também pela causa comum e urgente de apelar a um respeito global pela mulher. A voz é uma arma para projectar a ideia de um mundo melhor. A riqueza vem da diversidade de experiências e de gerações de cantoras que, no caso de muitas delas, escrevem as suas próprias canções.

“Isso é que é genial. Temos mulheres de várias gerações”, continua Pamela Badjogo. “Temos a geração do tempo da independência, dos anos 50, com a nossa grande titi Kandia [Kouyaté], temos as mulheres da minha geração, dos anos 80, e ainda uma ou duas pessoas dos anos 90. E podemos ver a diferença, como a mundialização influenciou a música ao longo do tempo. Podemos inspirar-nos junto das mais velhas, e as mais velhas podem também ver que há melhorias.”

Nesta quarta-feira, Les Amazones d’Afrique lançaram um EP (Extended Play) e em simultâneo a campanha de crowfunding no site www.generosity.com. O tema I play the kora é como um hino contra a violência sobre as mulheres – conjugal, sexual, ligada à sociedade ou à guerra. Os benefícios financeiros de ambas as iniciativas serão entregues à Fundação Panzi do médico ginecologista congolês Denis Mukwege, em Bukavu, no Leste da República Democrática do Congo, Prémio Sakharov para a Liberdade do Pensamento 2014, Prémio das Nações Unidas de Direitos Humanos 2013 e Prémio Calouste Gulbenkian 2015. No seu hospital no Sul do Kivu já tratou mais de 40 mil sobreviventes de violência sexual durante o conflito.

Música e uma causa

“Este é um grupo com um conteúdo humanitário. Fazemos música como um encontro e para haver unidade temos de a criar, com uma causa comum. Não se trata de uma banda feminista”, explica Valérie Malot, a produtora da agência 3D Family, de Paris, que nos últimos 15 anos se dedicou ao lançamento de artistas de jazz e de músicos de todo o mundo. O conjunto inclui três homens instrumentistas.

“O combate é conjunto", diz. O bem – e não as mulheres – vencerá o mal. "As mulheres africanas precisam dos homens para melhorarem as suas vidas, para poderem combater a violência, e para defenderem os direitos, como o direito de ir à escola”, acrescenta Valérie Malot, que apresenta o tema I play the kora como “uma canção de amor para os homens”. Os temas são originais, interpretados (alguns com acompanhamento de instrumento das próprias cantoras) por Kandia Kouyaté, Mamani Keita, Mariam Doumbia, Nneka, Inna Modja, Rokia Kone, Pamela Badjogo, Mariam Kone, Marema e a baterista Mouneissa Tandina. Oumou Sangaré começou por fazer parte do projecto, e apoia-o, mas teve de o abandonar por impossibilidade de conciliar os seus concertos com concertos e ensaios das Amazones.

“Não há projecto que se assemelhe. A música que fazemos não é só tradicional mandinga. Vamos dizer que é electro-mandinga. É bastante electro. É uma mistura. Cada uma de nós tenta dar o máximo de si mesma para que este projecto seja ouvido e apreciado", diz Pamela Badjogo. “Ainda não sabemos que ecos vai ter. Para já, gostamos da música que fazemos e pensamos que, se nós gostamos, outros vão gostar e a nossa mensagem vai passar. Não é o estilo de música que faço habitualmente. O meu estilo é o afro-jazz. Aqui é realmente diferente. Um grupo onde toda a gente canta ao mesmo tempo, toda a gente faz a mesma coisa. É diferente e é bonito.”

E acrescenta: “As mamãs cantam sobre esta música tocada de forma não tradicional e nós, as mais jovens, temos uma outra maneira de cantar, porque ouvimos a música pop, o rap, o gospel. Na mesma música podemos ter a música electro, que não vem de todo de África, a voz tradicional, com as verdadeiras griottes [griotte é a figura que na África Ocidental herda o papel de transmitir a história de uma tribo ou de uma aldeia através da poesia, do conto ou da canção], e nós que trazemos uma outra influência.”

“O que fazemos não é cantar apenas. Defendemos uma causa. As mulheres são marginalizadas, sobretudo em África ou em países como a Síria. As mulheres podem ser utilizadas como objectos de guerra. É absolutamente necessário que este projecto tenha impacto e alcance.”

A excisão, ainda praticada nalgumas zonas rurais da África Ocidental, é outro tema sobre o qual a maioria das cantoras deste grupo canta. “É um tema com uma importância imensa, no Mali, no Senegal, principalmente na África Ocidental francófona”, diz a cantora mundialmente conhecida Nneka. “Na Nigéria, o meu país, a excisão ainda se pratica nalgumas aldeias.”

Para a cantora e guitarrista, a viver em Berlim, esta é a primeira vez a trabalhar com um grupo de mulheres "num projecto com uma mensagem". "Uma mensagem, como cantoras e também como mulheres. Admiro-as. É por isso que estou aqui. Não é só sobre fazer música. É como usar a violência que vivemos, seja sexual ou doméstica, seja exclusão ou repressão para beneficiar as pessoas na sociedade e a nós mesmas ao mesmo tempo.”

“Estamos a usar a música e esta oportunidade para inspirar as mulheres a tornarem-se mais afirmativas, e terem a ousadia de fazer tudo o que queiram fazer, de se formarem, e irem além do que a sociedade nos oferece, o sonho do planeta. Para irem atrás do seu sonho pessoal, individual”, diz Nneka, que em lgbo, uma das línguas da Nigéria, significa “mãe” ou “mãe é suprema”.

O silêncio quebrado da realeza

A tradição no Mali proíbe os descendentes dos fundadores do Império do Mali de cantar ou de tocar um instrumento. Mas forças ou poderes sobrepõem-se para permitir que se conviva com a tradição, apesar dela, e para haver excepções: como Salif Keita, mestre para muitos músicos da nova geração do Mali, Mamani Keita também tem nome real, mas canta. Mamani, que fez parte da banda de Salif Keita, foi uma das primeiras a juntar a música electrónica à europeia e à música tradicional africana. E é presença frequente, com concertos em nome próprio, em festivais e salas em França.

“Este projecto representa muitas, muitas coisas”, diz. “Para nós, este combate tem uma razão de ser, porque os media em África não falam muito do tema da violência conjugal. A violência conjugal é nosso principal combate. Mesmo se não podemos exprimir-nos podemos cantar e lançar a mensagem através da canção.”

Em Sines, onde a banda participou numa residência artística e em ensaios para o concerto da Casa das Artes, de quarta-feira, e para o concerto da Gulbenkian, desta quinta-feira, Mamani Keita lembra que no seu país, o Mali, “muitas mulheres morrem por causa dos seus maridos”. E explica: “Sempre aconteceu, mas de forma um pouco escondida. Agora com o Facebook, muito pouco fica escondido.” Ainda há pouco tempo, leu que uma mulher foi morta pelo marido em Bamaco. “Não foi a única. Há muitas, muitas mesmo, que perderam a sua vida por causa da violência dos homens. A nós dá-nos vontade e força de lutar. Nós todas, para estarmos aqui, passámos por algumas coisas. Queremos que a nossa voz seja ouvida em todo o mundo."

As letras das canções são escritas em mandinga, e bambara, outro dos idiomas do Mali. A cantora Inna Modja canta partes em francês. E Nneka canta também em inglês. Marema canta em wolof, língua falada principalmente no Senegal, mas igualmente na Gâmbia, Guiné-Bissau e Mauritânia. “Também há homens na nossa banda. Não estamos sozinhas. Há homens que nos ajudam na nossa luta. É preciso que os outros homens, do mundo inteiro, compreendam. Se matas uma mulher, os teus filhos ficam órfãos. Perdeu-se uma vida e deixas crianças sem a mãe, o que as perturba e prejudica a sua educação."

Sumidades no Mali

O nome de Kandia Kouyaté, da primeira geração musical do Mali, depois da independência, uma autêntica griotte, esteve sempre ligado aos direitos das crianças, mesmo quando um problema grave de saúde a forçou e ficar longe dos palcos por mais de dez anos. Desde que regressou, a filha, já adulta, acompanha-a para todo o lado.

Kandia Kouyaté está sentada no palco para os ensaios que duram várias horas, durante vários dias. Recolhe-se no seu véu, para a segunda reza do dia. É muçulmana, como a maior parte das cantoras desta banda, que também junta cristãs. Como duas matriarcas, Kandia Kouyaté e Mariam Doumbia são reverenciadas pelas companheiras de banda à chegada em passo lento ao ensaio em Sines.

Kouyaté apenas vai dizer umas palavras. Mas a filha aproxima-se para lhe retocar o bâton e o pó-de-arroz, para a fotografia e o vídeo, enquanto a “sumidade da canção do Mali e de África” que representa “a tradição pura”, como diz a produtora Valérie Malot, se prepara para falar da importância deste grupo. “Luto contra todo o tipo de violência contra as mulheres, quer seja na guerra, quer em casa.” "Este projecto é importante para mim, porque as crianças sofrem quando as mães sofrem."

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