Sobre quem trabalha

Uma história dos discursos sobre os trabalhadores que acrescenta valor à história dos trabalhadores

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As greves da Lisnave na década de 1980: um momento particular da reconfiguração do discurso sobre os trabalhadores

Mais do que uma história dos trabalhadores e operários de meados do século passado aos nossos dias, este livro pretende ser “uma história dos discursos sobre quem trabalha”. Porquê? Precisamente por se considerar que são as representações que constroem as imagens dos operários. Ou seja, são as categorias que compõem os discursos que, por sua vez, configuram os “cálculos pragmáticos” feitos pelos próprios trabalhadores. E quais são as principais categorias que organizam as configurações em que trabalhadores e operários se inserem? O autor identifica três configurações distintas.

Uma primeira que correspondeu à multiplicação dos discursos posteriores à Segunda Guerra Mundial. Mais concretamente, trata-se da denominada segunda arrancada do corporativismo. Mas não só, uma vez que as directrizes políticas — emanadas dos centros de tomada de decisão do Estado Novo, em busca de um sentido concreto para o enquadramento integrador e não conflitual dos trabalhadores — confluíram com outros discursos, oriundos do Vaticano e do catolicismo, das novas ideias técnicas sobre a gestão e do trabalhador como um colaborador, e ainda das ciências sociais. Uma segunda configuração, marcada pela ruptura instaurada pelo 25 de Abril de 1974, teve nas greves da Lisnave uma das suas principais expressões, e conheceu no pólo oposto os discursos dos consultores das grandes empresas, nomeadamente da McKinsey, acerca da “realização pessoal e profissional dos colaboradores da empresa”. E, em terceiro e último lugar, uma configuração onde avultam os conselhos acerca da “boa apresentação” curricular, em tempos de precariedade, da Internet, dos call-centers, da gestão dos recursos humanos, mas também de redução salarial e de diluição do Estado-Providência.

De um ponto de vista da análise histórica e sociológica, o estudo de tais configurações discursivas sugere a existência de uma mudança, do Estado Novo aos nossos dias, bem como a existência de saberes que circularam internacionalmente. Há também que registar, com apreço, a chamada de atenção para uma série de pequenas instituições e organizações que interferiram no modo de representar o trabalho e de lhe impor prescrições. Sobretudo no que respeita ao Estado Novo e ao modo de fazer a sua história com base em instituições centrais e em processos de tomada de decisão governamentais, o livro demonstra a necessidade de se cavar mais abaixo para, assim, se poder fazer sobressair a actividade prescritiva de agentes e de grupos normalmente esquecidos pela história das grandes figuras.

Em que é que uma história dos discursos sobre os trabalhadores acrescenta valor a uma história dos trabalhadores? Karl Marx — um autor que nunca poderá ser esquecido nestas matérias — recusou-se a distinguir entre as duas coisas, tratando-as em conjunto. Para ele, uma das grandes alterações do capitalismo consistiu não só na passagem de formas de dependência pessoal para outras de carácter impessoal, mas também na capacidade das ideologias burguesas — com os seus discursos de defesa da liberdade do mercado e das escolhas individuais na celebração de novos contratos — para justificar as novas formas de exploração do trabalho e de manter os explorados em estado de alienação ou de falta de consciência.

José Nuno Matos insiste na necessidade de distinguir os dois planos, para se fixar exclusivamente na análise do segundo, isto é, para se concentrar numa história das ideias ou das categorias. E, ao fazê-lo, revela a sua principal fonte de inspiração: a obra de Michel Foucault, sobretudo no ponto que se refere aos dispositivos de vigilância e de controlo social, estudados com base nos discursos e na relação de implicação do saberes relativamente aos micro-poderes. Porém, ao longo da sua análise, o próprio autor constata que o modelo da sociedade disciplinar — estudado por Foucault a partir do hospital e da prisão, mas transferível para o mundo da fábrica —, nas fases mais avançadas de desenvolvimento do capitalismo, dificilmente poderia continuar a ser aplicado, dada a atomização dos sujeitos ou, mais propriamente, a “individualização dos resultados”. Melhor dizendo, no seu último estádio, é eliminado o recurso a uma disciplina exterior, surgindo uma disciplina interior — uma auto-disciplina incorporada —, que se confunde com a autonomia do sujeito e que está na origem de todas as teorias sobre a biopolítica.

As principais críticas que podem e devem ser apontadas a este livro, primeira obra de fôlego do autor, prendem-se com questões de forma. A introdução, com as suas dimensões teóricas e metodológicas, é no mínimo pesada e ineficaz na clarificação do argumento principal e na identificação do problema a que o livro procura responder. As análises de Elton Mayo são ali citadas em segunda mão e as suas obras nem sequer constam da bibliografia. E pouco adianta constatar que, através das investigações de Mayo, era possível questionar o poder disciplinar, pois elas demonstravam como é que os trabalhadores desencadeavam, na sua autonomia, “momentos tanto de conspiração como de organização e divisão de tarefas, muitas vezes com maior sucesso do que os modelos definidos a partir de cima” (p. 21). Para se considerar, de seguida, que foram os discursos dos gestores que se alteraram, devido à crescente “participação dos trabalhadores nos meandros produtivos”, fazendo com que “eles próprios tenham de assumir a função de gestores” (p. 25). Não se estará, aqui, a confundir as investigações de Mayo relativas ao modo de aumentar a produtividade nas fábricas, a partir de uma maior motivação dos trabalhadores, com discursos mais recentes acerca da autonomia dos mesmos em remos da sua própria organização?

Que dizer, também, da intenção inicial do livro, procurar “lógicas e racionalidades que se desenvolvem à margem do regime político”? Pelo menos quando se fala na segunda arrancada do corporativismo, é bem para o centro político do Estado Novo que o leitor é levado. Facto que conduz à formulação de uma última crítica: em nenhum ponto deste livro o leitor é surpreendido por uma dessas passagens das fontes escritas ou orais que desafiam a nossa capacidade analítica e em que os “discursos” políticos são férteis. Aliás, mais frequentes são as referências à literatura dos nossos dias, de Bakhtin a Deleuze, que podem intrigar o leitor. Ora, se se quisesse fugir à simples dicotomia da sociedade dual, dividida entre trabalhadores e empregadores, pobres e ricos, seria necessário entender melhor o processo de construção de uma classe média, pelo menos durante o Estado Novo.

Por exemplo, Santos Costa, ministro da Guerra e um dos colaboradores mais próximos de Salazar no período posterior à Segunda Guerra Mundial, encontrava na referida classe um dos principais reflexos da situação económica. Constituída pela massa dos funcionários públicos, militares, professores, magistrados, a que se somavam os pequenos proprietários, empregados de escritório, bancários e técnicos, estava em vias de perder poder de compra. Ao mesmo tempo, nas cidades, as rendas aumentavam, a especulação também, e o fosso entre pobres e ricos agravava-se com a construção de fortunas fabulosas durante a guerra. Em contraste com a concentração de riqueza “nas mãos de umas centenas de pessoas”, concluía o ministro do Estado Novo, estava a “situação de miséria da classe média e duma parte importante do operariado”. Quanto às medidas tomadas pelo Governo, a aplicação do imposto sobre os lucros de guerra fora demasiado tímida e era necessário rever toda a organização corporativa, “a fim de impedir que ela seja desvirtuada no seu espírito e nas suas realizações, favorecendo o domínio do capitalismo e domínio da plutocracia” (ANTT, Arquivo Oliveira Salazar, CO, Pc.3J, pp. 120-121).

A questão social de que Santos Costa falava exigia a reformulação de um corporativismo que era forte nos discursos e anti-capitalista, mas muito fraco no terreno. Foi a partir dos anos 50 que o corporativismo passou a ser mais fraco nos discursos e mais eficaz no terreno — uma eficácia relativa em muitos aspectos. De qualquer forma, o que mais parece é que as preocupações de Santos Costa nunca puseram em causa a concentração da riqueza. No fundo, uma das suas preocupações consistia em saber quais os efeitos sociais e políticos de tal concentração. É que a classe média tanto podia ser um perigo, caso se politizasse e se voltasse contra o regime, como servir de tampão, caso fosse cooptada por ele.

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