Sob as abstracções da fotografia, marcas de vidas

A nova exposição de Edgar Martins integra textos e imagens documentais, construindo uma ambiguidade sobre a qual o espectador pode julgar o que vê.

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Sob as abstrações das imagens, escondem-se traços, sinais de vidas passadas; a humanidade sob a fotografia
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Quem visitar Silóquios e solilóquios sobre a morte, a vida e outros interlúdios e estiver familiarizado com o percurso de Edgar Martins, reparará que algo mudou no trabalho do artista nascido na cidade de Évora, em 1977. Como sublinha Sérgio Mah, o curador da exposição, não se evidencia a homogeneidade formal de outros momentos, não prevalecem as temáticas associadas à arquitectura, à tecnologia ou à paisagem, que marcaram trabalhos anteriores. Resumindo, num olhar distante e breve, aquilo que se mostra na sala Cinzeiro 8 podia remeter para universos criativos e práticas fotográficas de outros artistas. No lugar da espectacularidade lisa e polida, das imagens que surgiam como superfícies estilizadas, há agora fotografias de origens distintas, documentos, textos, uma projecção de slides.

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Esta mudança desorienta o espectador que procurará um caminho, uma orientação, algo que ligue as imagens entre si. E o que as liga? A morte. Não é um significado óbvio, pese embora a intensa relação que a arte fotográfica tem com o tema e a presença de vários indícios nas paredes. É à medida que a leitura se junta ao olhar, que se vai desvelando. Ao lado das principais fotografias, estão curtas descrições de suicídios, acidentes trágicos e crimes que Edgar Martins encontrou durante a sua pesquisa no Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses em Lisboa. Foi esse trabalho que começou por estruturar Silóquios e solilóquios sobre a morte, a vida e outros interlúdios. Aliás, as imagens que vemos nos slides e que convidam o olhar a percorrer uma parede parecem ter sido recolhidas no arquivo da instituição: uma mão, o detalhe de uma nuca, objectos, a cena de um crime, o corpo de um homem abatido, imagens realizadas com o fim de classificar e identificar.

Acontece que o artista não se limitou a uma apropriação. Edgar Martins acrescentou outras imagens, inéditas e preexistentes, aos materiais recolhidos. Com esse processo, permitiu que paradoxos aparentes se transformassem em justaposições ou que imagens vulgares ganhassem um sentido revelador de dramas pessoais ou de biografias anónimas. A relação entre os textos e as imagens surge aqui fundamental, pois é sobre a sua ambiguidade que o espectador pode julgar o que vê. Assim, se há fotografias cuja apreciação estética se vê contrariada, com mais ou menos gravidade, pelas breves histórias relatadas (reaproximando-nos da realidade), outras parecem suspender os significados, abandonar o espectador ao silêncio de um monocromo ou à aparição de uma pessoa numa praia, na noite. E nesse instante, provavelmente, todas as referências concretas, documentais, cederão lugar às experiências subjectivas do sonho, da recordação, da percepção, da imaginação de quem vê. Frise-se, as imagens de Edgar Martins não falam apenas da morte. Mencione-se, a propósito, aquele que será o trabalho mais forte de Silóquios e solilóquios sobre a morte, a vida e outros interlúdios: um conjunto de imagens fotográficas de manchas, borrões, toscas formas geométricas que correspondem  a versos de fotografias de suspeitos de crimes graves: vestígios materiais de velhos e anónimos álbuns de família. Sob as abstrações das imagens, escondem-se traços, sinais de vidas passadas. A humanidade sob a fotografia.

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