Só conheciam Saramago e Pessoa, levaram (alguma) literatura portuguesa contemporânea na mala

Primeira visita de editores estrangeiros à feira organizada pela diplomacia portuguesa quis dar a conhecer mais do que os suspeitos do costume. Não fecharam negócios, mas alargaram conhecimento.

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Pessoa é um dos clássicos autores portugueses com visibilidade nos mercados editoriais estrangeiros DANIEL ROCHA

A piada do grupo era “Saramago e Pessoa”, ri-se Mitchell Albert, editor da Periscope Books, no dia mais quente da 86.ª Feira do Livro de Lisboa. “É mesmo só o que conhecíamos”, assume um dos sete editores britânicos que passaram três dias em Lisboa com autores, editores, tradutores e agentes portugueses para tentar mudar esse cenário, ao qual outros publishers da comitiva acrescentavam os nomes de António Lobo Antunes, Eça de Queirós ou Gonçalo M. Tavares.

Os sete britânicos sucederam-se na quarta-feira a três editores alemães que, dias antes, fizeram a mesma visita, promovida pela Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) e pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros a partir de uma ideia nascida na secção cultural da Embaixada de Portugal em Londres – e da constatação “um bocadinho chocante”, diz Catarina Coutinho Ferreira, da diminuta presença da literatura portuguesa no mercado editorial do Reino Unido. Daí nasceu o projecto que coordena e que visa, no interesse da parceira Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), aumentar o potencial negocial da Feira, mas sobretudo, e bem mais genericamente, promover os autores portugueses naqueles dois mercados. As embaixadas em Londres e em Berlim concorreram ao Prémio Diplomacia Económica, atribuído pelo AICEP, e financiaram assim estas visitas, com verbas que não foram divulgadas.

Mitchell Albert tem uma braçada de postais com as capas dos livros que editou recentemente, Jacques Testard alinha os exemplares (capa azul para a ficção, capa branca para o ensaio) da sua jovem editora, a Fitzcarraldo Editions, a fazer lembrar o filme homónimo de Werner Herzog, e Alessandro Gallenzi menciona casual mas orgulhosamente os dois títulos que na última década lhe deram grandes alegrias  A Teoria de Tudo, de Jane Hawking, sobre a relação com o físico Stephen Hawking, que se tornou filme candidato aos Óscares, e The Hundred-Foot Journey, de Richard C. Morais (luso-descendente que escreve em inglês), também um filme. Jacques Testard “era o único editor de língua inglesa a querer” o último livro de Svetlana Alexievich e comprou os direitos. Mesmo antes de Alexievich ganhar o Nobel em 2015. “Depois, toda a gente me telefonou”, sorri.

São três editores independentes, todos acalorados com a canícula que se abateu sobre o Parque Eduardo VII e todos sem escritores portugueses nos seus catálogos, onde apostam tanto na língua inglesa quanto na literatura traduzida. “As editoras independentes são muito importantes a apanhar novas tendências no Reino Unido  é por isso que existem, por paixão , que depois são apanhadas pelos grandes”, contextualiza Rosie Goldsmith, jornalista, consultora literária e colaboradora da European Literature Network, também integrada na comitiva. Mesmo no âmbito da literatura traduzida, tão diminuta num mar de domínio do inglês – no Reino Unido e na Irlanda, representa apenas cerca de 4% do mercado, embora tenha crescido 66% entre 1990 e 2012, segundo um estudo da Literature Across Frontiers.

À procura de "jóias"

Nenhum negócio concreto saiu desta que é a primeira visita do género a Portugal de um grupo de editores estrangeiros, confirmou Catarina Coutinho Ferreira ao PÚBLICO antes da partida da comitiva. Os sete visitantes britânicos (em representação de oito editoras, com um editor a trabalhar simultaneamente com a Granta e a Portobello Books, e ainda responsáveis da OneWorld Editions, da Europa Editions e da Peter Owen, além das três casas acima mencionadas) e, antes deles, os três alemães (da Random House/Luchterhand, da Suhrkamp/Insel e da Droemer) contactaram com cerca de 15 editoras ou grupos editoriais portugueses. Candidataram-se a estes encontros com uma carta de interesses e ideias, que se casaram com o objectivo do projecto de dar a conhecer “nomes da cena literária contemporânea portuguesa”, explica a responsável.

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Portugal foi o país-convidado da Feira do Livro de Frankfurt em 1997, Saramago ganhou o Nobel no ano seguinte NUNO FERREIRA SANTOS

Isto porque Pessoa, Saramago, até Lobo Antunes são “clássicos” e a Fitzcarraldo, a Alma ou a Periscope querem encontrar não só novas vozes, mas “a voz certa”, como diz Alessandro Gallenzi. A sua Alma Books está associada à Bloomsbury para a distribuição global e ele sai de Portugal carregado de catálogos na esperança de encontrar “jóias”. Depois de um jantar com Rui Zink em que também estavam Afonso Cruz, Valério Romão e Patrícia Portela, e antes de outro jantar com Dulce Maria Cardoso, estava ainda “a aprender”, descreve. Identificou “uma cena literária vibrante” onde a figura do “editor é ainda muito importante, é mais curatorial” em contraste com o mercado “muito comercializado” britânico. 

Os escritores com quem se encontraram deixaram impressões marcadas nos editores  que ainda assim lutavam para pronunciar os seus nomes , bem como a visita à livraria Ler Devagar, de José Pinho. “O potencial é enorme, mas há muito, mesmo muito trabalho a fazer”, defende Rosie Goldsmith. É preciso “forçar a identidade literária portuguesa, que está muito subdesenvolvida”, diz, constatando quetodos os outros países se tornaram melhores a promover-se nos últimos anos”. Junta a sua voz à dos editores que o PÚBLICO questionou sobre que outros países lutam pelo mesmo tipo de lugar literário ao sol actualmente – as nações do Báltico, a Grécia.

“É vermos a história de Elena Ferrante [fenómeno literário com os quatro livros A Amiga Genial] e da literatura italiana, ou dos noruegueses: houve uma altura em que não eram muito conhecidos. Foi preciso um grande editor, um grande escritor, e fluiu. Mas tem de haver dinheiro. E paixão”, argumenta Goldsmith. Bruno Pacheco, secretário-geral da APEL, lembra que em 1996 Portugal foi o país-convidado da Feira de Frankfurt e que um ano depois Saramago recebeu o Nobel. “Não é só uma coincidência. É preciso haver dinheiro, investimento”, atesta. E “confiança”, completa Goldsmith. “A literatura não existe isoladamente, existe como parte da cultura. Tem de haver festivais, eventos, críticos”.

As conversas com o PÚBLICO, nos intervalos das reuniões com editores nos seus stands, prestaram-se a impressões gerais sobre um país e uma cidade que se espraiava Marquês de Pombal abaixo até ao rio. “Pensava que a literatura portuguesa era muito mais introspectiva”, diz Gallenzi, “devia ter-me ocorrido que este país outrora foi expansionista. A ideia actual é que Portugal é muito virado para si mesmo”. "Não sei nada sobre o que é que as pessoas estão a escrever ou que estilos são dominantes”, reconhece Testard. “Vimos a Portugal, gostamos da cultura, mas não sabemos nada sobre o que significou a revolução de 1974 e como afectou a geração seguinte, ou não”, foca Mitchell Albert. E isso “dá a tudo o que foi escrito um contexto, uma âncora”.

Mas entre livros e anúncios de sessões de autógrafos, fala-se também do mercado britânico, usam-se palavras como “passividade”, “arrogância”, e questiona-se até a “estreiteza de visão do mundo que fala inglês” – diagnóstico de Jacques Testard, director fundador da sua própria editora aos 29 anos (hoje tem 31), que explica que “a tradução é uma proposta mais difícil” para editores que falam apenas a sua própria língua. “Mas tendo vindo cá, e tendo conhecido alguns editores, também parece que não há um esforço real para levar os escritores portugueses para fora do país no que toca à venda de direitos”, aponta.  

Em Lisboa, os editores estrangeiros contactaram ainda com o Instituto Camões e com o Ministério da Cultura, tiveram conversas sobre como promover a literatura portuguesa, falaram da necessidade de apoios estatais, de mais iniciativas como esta  que a Embaixada de Portugal prevê que se possa realizar de dois em dois anos em Portugal e que tenha eco em Londres em breve com a ida de um pequeno grupo de editores, críticos e outros agentes do sector. “Já fiz várias viagens deste género e mesmo que não se saia delas logo com um livro para publicar, que é o caso, são sempre úteis pelo envolvimento mais próximo que se ganha com o contexto cultural. Quando sabemos de um livro que vem desse país, temos automaticamente um sentimento de propriedade”, diz Mitchell Albert.

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