Sete conversas com Luis Miguel Cintra entre a fé e a recusa

O Cego que Atravessou Montanhas é um livro que recupera sete entrevistas realizadas a Luis Miguel Cintra durante um período de três anos. O mote era a estreia de um novo espectáculo do encenador no Teatro da Cornucópia, mas as conversas extravasaram.

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Um livro sobre a vida, sobre a vontade de fazer e sobre o teatro: O Cego que Atravessou Montanhas NUNO FERREIRA SANTOS

O Cego que Atravessou Montanhas recupera sete entrevistas que Tiago Bartolomeu Costa realizou a Luis Miguel Cintra durante um período de três anos. As conversas tinham sempre por mote a estreia de um novo espectáculo do encenador no Teatro da Cornucópia, mas extravasaram, em cada uma das ocasiões, essa circunstância. Por sete vezes, no gabinete de Luis Miguel Cintra, “nem rede de telemóvel, nem relógio a marcar o tempo”, descreve Bartolomeu Costa – na altura jornalista e crítico do PÚBLICO – no prefácio do livro publicado pela Orfeu Negro, assim foram registadas estas conversas que compõem um livro “livro sobre a vida, sobre a vontade de fazer” e, naturalmente, sobre o teatro.

A revelação de que as entrevistas a Luis Miguel Cintra (LMC) poderiam proporcionar uma leitura conjunta para além do contexto específico daquelas peças – Fim de Citação, A Cacatua Verde, A Varanda, Fingido e Verdadeiro, O Sonho da Razão, Os Desastres do Amor e O Estado do Bosque – naquele momento concreto, anunciou-se ao autor quando se foi apercebendo de que “havia uma série de recorrências” no discurso de LMC. “Tanto relativamente a um espectáculo, o Miserere, que foi apresentado em 2010 no Teatro Nacional D. Maria II, como a um questionamento que vinha do facto de ele se ter aproximado da fé.”

Miserere é uma coordenada fundamental nas conversas. Implica um começo antes do começo. “Não começamos do zero porque todos os espectáculos que ele fez a seguir ao Miserere, tivessem ou não sido previstos, são condicionados pelos objectivos que traça, intuitivos ou estratégicos, para compreender por que razão um texto de Gil Vicente, encenado pela Cornucópia no Nacional foi um choque”, comenta Bartolomeu Costa. “Era a última coisa de que ele estava à espera e isso dá-lhe uma alegria imensa enquanto criador, dá-lhe uma espécie de kick de adrenalina vindo da recusa dos espectadores – alguns deles tendo crescido com a Cornucópia.”

Ver-se questionado “num contexto em que a companhia perde subvenções e em que ele começa a receber convites e a ficar incomodado com a ideia de que tudo aquilo que diz é absolutamente reverencial” funciona como prova de vitalidade artística. O Cego que Atravessou Montanhas documenta a resposta continuada a esse espectáculo, mas contraria também a morte sistemática de cada espectáculo depois da cortina cerrar na última representação. “Apetecia-me fixar uma espécie de anacronismo entre a reflexão sobre um dado espectáculo que já não existe e o modo como esse espectáculo está nas escolhas que ele faz a seguir.” E essas escolhas, acredita o autor, respeitam sempre a dois pilares: “o teatro enquanto máquina de mentira – diferente de uma máquina de ilusão –, e o lugar do encenador numa sociedade de consumo rápido em que a ideia de eficácia contraria o tempo de que o teatro precisa para existir.”

À medida que LMC vai convocando passagens de Genet, Pasolini ou textos religiosos, a relação entre os dois vai também gozando de uma confiança maior – algo particularmente evidente no “tu” adoptado a partir de determinado ponto pelo entrevistador –, assente em grande parte numa disponibilidade para ir além de cada um dos espectáculos. “Começo a perceber que ele quer falar de outras coisas, eu tenho dúvidas, e isso vai suscitando questões”, resume Tiago.

As entrevistas no seu conjunto ajudaram também a que o jornalista pudesse “reclamar um lugar de espectador quando se está numa missão profissional, porque isso tem que ver com um prazer de partilha.” Daí o título, que remete para o desejo de ser guiado sem que lhe seja oferecida a chave da descodificação de cada peça. Por mero acidente, as entrevistas concluem-se em 2013, antes do anúncio público do abandono dos palcos por Luis Miguel Cintra após o fim da carreira de Hamlet. Mas a Tiago Bartolomeu Costa agrada-lhe que o livro possa ignorar esse facto. Como se o encenador e actor pudesse escolher o momento em que deixa os palcos, mas nunca o momento em que os palcos continuarão, hoje e de futuro, a continuar a chamá-lo à cena.

 

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