“É preciso caminhar, ir por cima dos pedregulhos”

É o mais significativo corpo de trabalho que José Pedro Croft apresenta desde a retrospectiva de há 12 anos: Objectos Imediatos, exposição em duas partes (uma na Fundação Carmona e Costa, outra na Cordoaria Nacional), faz o vaivém entre o passado e o presente de um artista que se entrega à sua obra diariamente: "É um sentido de vida."

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Entre José Pedro Croft e a sua obra, identificação total: "Quando eu e toda a minha geração decidimos ser artistas, assumimos um sentido de vida" NUNO FERREIRA SANTOS
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NUNO FERREIRA SANTOS
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"Cada uma [das portas que uso] é única. Têm memórias", diz Croft NUNO FERREIRA SANTOS

Há 12 anos, desde a retrospectiva do Centro Cultural de Belém, que José Pedro Croft (n. 1957) não apresentava em Portugal um tão significativo conjunto de trabalhos. Desenho e gravura na Fundação Carmona e Costa, escultura na Cordoaria Nacional – duas partes que compõem uma mesma exposição, Objectos Imediatos.

Com comissariado de Delfim Sardo, incluem-se, maioritariamente, trabalhos dos últimos dois anos. Apesar de as gravuras recuperarem chapas inicialmente feitas em 1999. No ano passado, Croft voltou a elas. Lixou-as, destruindo o desenho original, e voltou a gravá-las, a partir de fantasmas do que lá estivera antes. “Sem destruição não há criação”, diz. “Primeiro tem de haver morte para que haja as sementes que talvez floresçam e tragam uma nova Primavera.”

As gravuras na exposição da Fundação Carmona e Costa surgem a partir de um processo de rasura: são feitas em chapas antigas que são destruídas e refeitas. Porquê voltar assim atrás no tempo?
Porque se calhar não é voltar atrás. Não saio da mesma rua estreita. Não saio dos mesmos limites. Mas é como se, sem sair desses limites, me obrigasse a fazer um espaço completamente novo. Os resultados são completamente diferentes. Por exemplo, o livro do Persiles [Os Trabalhos de Persiles e Sigismunda, de Miguel de Cervantes]. É um livro muito curioso, escrito no fim da vida de Cervantes. Cervantes sabia que estava a morrer e tinha um problema: achava que o Quixote não era suficientemente erudito. Era um romance de aventuras e cavalaria, não tinha a referência da Renascença ao mundo clássico que ele, [no Persiles], faz a partir de uma reinterpretação da Ilíada e da Odisseia, uma peregrinação que vai de Tânger a Roma, passando por Marrocos, Espanha, Gronelândia, Islândia, Suécia, Dinamarca, França. Para [evocar] a chegada a Roma escolhi a imagem de uns santos que estão numa sacristia nos Açores. Agarrei na fotogravura, envernizei-a e fui riscando até restar apenas uma mancha abstracta. Pode-se entrever o Cristo jacente e as coroas [dos santos]. É uma gravura que é de tal maneira desmanchada e refeita que já não a reconheces. Ficam apenas marcações. É como transformar objectos em espectros ou pequenas pegadas. É como se fosse apagando tudo e deixando apenas pequenos indícios. Acontece que um pequeno indício transporta toda uma história.

É o efeito da madalena do Proust — um elemento aparentemente insignificante atrás do qual vem toda a narrativa.
Claro. O que é fascinante nas artes plásticas é a grande confusão de pensar que aquilo que se mostra é aquilo que há para ver quando, na realidade, aquilo que se mostra é só a ponta do icebergue. Mostramos objectos — pinturas, esculturas, gravuras, desenhos... —, quando, na realidade, estamos a dizer tudo o que não está nesse gesto mas é arrastado por ele. A obra não se esgota naquilo que estamos a ver, mas em toda uma história convocada, mesmo que não evidente. Portanto, com um vocabulário pequeno e sem sair do mesmo gesto repetido, de cada vez estou a fazer uma história completamente diferente.

No fundo é o que se também passa com os espelhos nos trabalhos de escultura.  
Juntar, separar, sobrepor, destruir, pintar. É como se fosse sempre o mesmo gesto. Acho que estou sempre a trabalhar na mesma coisa, desde as minhas primeiras esculturas de sempre, em mármore. Eram uns paralelipípedos em mármore que passaram a ser caixas de madeira e, depois, estruturas em vidro, mas continuam a ser sempre paralelipípedos. Acho que há apenas uma pequena nuance: no caso do desenho há o registo da mão a passar sobre o papel — nesse sentido, aquele gesto já traz a minha presença, uma presença humana que num determinado momento e a determinada velocidade se desloca sobre o papel, que vai de cima a baixo, ou da esquerda para a direita. Quando pego em móveis, que em geral são usados — nunca móveis novos —, agarro em memórias de terceiros, que desconheço e que uso a meu favor. São sempre relações antropomórficas que existiram em todos os gestos, do desenho à escultura. Relações muito claras, porque as mesas, as cadeiras, são objectos que servem para uso humano e têm a nossa medida. E [nas minhas esculturas] são sempre objectos que estão desenquadrados, transformados em objectos inúteis. E que ao serem inúteis ganham uma liberdade que, antes, não tinham. Tudo o que é funcional de alguma maneira está refém, da sua função. Tudo o que não tem função é mais livre — essa é também a beleza da poesia. Já as portas trazem-me a presença da arquitectura. É outra coisa. Uma porta que antes servia para fechar ou abrir, dar passagem ou impedir passagem, quando se vê ligada a uma cadeira ou mesa passa a ser livre. Mesa, cadeira e porta, ficam a rodar livres.

“A rodar livres”: soa a coreografia, a dança.
E é. Uma porta que não está ligada a uma arquitectura é como uma figura sem sombra projectada. É como se fosse Photoshop. Mas eu não tenho bem noção [do processo de transformação]. Vou para o atelier trabalhar diariamente. Todos os dias têm continuidades e descontinuidades e eu, em cada vez, entrego-me ao trabalho. Acho que me ponho lá dentro. É um sentido de vida

O que é que quer dizer um “sentido de vida”?
Quando eu e toda a minha geração decidimos ser artistas, a possibilidade de podermos vir a viver do nosso trabalho era uma coisa difícil e remota. Não havia museus, não havia fundações, não havia galerias, não havia coleccionadores. Quando decidimos que queríamos fazer disto a nossa vida, assumimos um sentido de vida

Mas estava a associar essa expressão ao próprio acto de entrar no atelier, ao trabalho em si.
Quando te metes no trabalho, mesmo que seja um desenho pequeno, na verdade, é como entrar num mundo paralelo. Quando olhas para uma página em branco e te propões fazer alguma coisa — um primeiro gesto, que é uma linha, que depois é uma mancha, que leva a outra linha... —, é como se fosses olhando para fora para te ires afinando por dentro. Ou como se te fosses afinando por dentro para poder registar fora. É um jogo de dentro e fora.

Essa perspectiva implica uma identificação de 100% entre criador e criação, artista e obra.                                                                                   Claro que sim.

Não há distância, dissociação?
Não. E o que é curioso é que por vezes há rejeição. Muito frequentemente os desenhos são gestos frustrados, que não levam a lado nenhum. O que eu faço é pôr de parte. Às vezes, cinco ou seis anos depois vejo coisas que não consegui ver na altura. Ou seja, é como se o meu inconsciente e a minha mão soubessem coisas que eu ainda não tenho capacidade de perceber.

Uma presciência?
Não. A consciência que temos daquilo que fazemos tem tantas grelhas e pesos em cima que muitas vezes bloqueia um lado automático que tem uma força que não reconhecemos.

E o que é que faz de determinada obra um gesto fracassado?
O julgamento. Que é muito frequentemente perverso, porque aceita códigos sobre o que é bom ou mau. Por isso é que é importante o banho-maria. Muitas vezes acontece-me com a escultura. Não consigo perceber imediatamente se o que fiz é interessante ou não. Tenho de deixar as esculturas no atelier até elas ganharem direito a existir.

Ou não?
Ou não.

O que faz com as esculturas que não ganham esse direito?
Destruo-as. E algumas que ganham direito a existir passados uns anos acabam também destruídas.

O desenho guarda, mas a escultura destrói.
Só porque o desenho é fácil de arrumar e a escultura não. Mas não tenho nenhuma nostalgia. Às vezes há fotografias, registos.

Falou nas continuidades ou descontinuidades de cada dia. O que queria dizer com isso?
A continuidade é ir todos os dias ao atelier — eu trabalho como os operários, chego de manhã e trabalho até por volta das seis da tarde. A descontinuidade é tudo o que acontece entretanto, que é tudo aquilo que não programas e te chama — pode ser uma chamada telefónica, um livro, um bocado de luz, pode ser olhar pela quinquagésima vez para a mesma cadeira e, de repente, ver uma cadeira que não estava lá antes.

Trabalhar todos os dias, começar de manhã cedo, acabar ao fim da tarde — é uma questão de personalidade ou de maturidade enquanto artista?
Não fui sempre assim. Até porque quando comecei dava aulas num liceu e não tinha carro, por isso o meu dia era muito disperso. É uma disponibilidade que fui conquistando. E a consciência de ter hoje menos energia do que há dez anos, sabendo que daqui a outros dez vou ter ainda menos. Há dez anos não usava óculos, hoje pô-los é a primeira coisa que faço... É outro momento. É saber que já tenho um passado e hei-de ter um futuro, mais curto ou mais longo. Vais ganhando uma noção, com alguma clareza, de que estar aqui é uma passagem.

Faz pensar na extraordinária frase com que o Delfim Sardo acaba o texto dele no catálogo: “E o transcendente abre-se como uma porta a partir desse fosso ancorado no quotidiano, no fracasso, no realismo que reside na temporalidade destas obras, imediatas como objectos da nossa, agora aqui aberta, vida.” Acredita na obra de arte como via para a transcendência?
O que eu acho é que a vida sem transcendência não é vida. Somos bombardeados diariamente por questões como ratings, funcionalidade, competência, competição, e tudo se esgota entre pagar contas de electricidade, rendas de casa e impostos. É um ciclo vicioso em que somos agredidos diariamente. Ainda o dia não acabou e já estão a começar os problemas do dia seguinte. E a vida assim não faz sentido. A vida é muito mais rica do que isso. Se alguma função a arte pode ter na sua radical inutilidade é dizer que há muito mais. E que uma vida não é o somatório dos dias e das horas que a pessoa vive. Os dias têm realmente todos 24 horas, mas não são todos iguais. E nem todas as vidas são iguais. Nem todas são igualmente felizes ou infelizes. Não consigo conceber a existência sem conceber a transcendência. Mas é uma transcendência que se faz caminhando aqui — não é uma transcendência do sublime, é uma transcendência pedestre. É preciso caminhar, ir por cima dos pedregulhos.

O caminho sobre as pedras não pode ser sublime?
Queria só dizer que estou a falar do contrário de um sublime entendido como imanência, como os místicos que têm uma visão das figuras no céu, os anjos e os demónios, tudo aquilo em grande festa e delírio a descer sobre a terra. Não. Isto é outra coisa. É ir cultivando a terra, deitando a semente, ir apanhando as batatas.

Donde a utilização nas esculturas de elementos prosaicos como portas? Afinal, é um dos elementos mais banais da construção: uma porta.
Mas cada uma [das portas que uso] é única. Têm memórias. A tinta salta e há outra cor por baixo, têm gretas como as pessoas têm rugas. Têm uma história, já tiveram o seu tempo de função e de ranger, agora têm a possibilidade de descansar noutro sítio.

Dizia, no início, que faz o mesmo gesto desde as primeiras esculturas, em mármore. No entanto, os diferentes materiais e presenças têm diferentes energias. A madeira das portas, por exemplo, tem uma energia diferente da pedra.
Claro. E a mim interessa-me ir registando todas [essas energias]. Ponho portas por cima da napa de uma cadeira. Para começar, já há aqui vários registos históricos: a cadeira é dos anos 1950, as portas são do século XIX. Portanto, estamos a sobrepor várias camadas com várias densidades e a misturá-las todas. Quando olhas, recebes todas essas camadas de uma só vez, em simultâneo, como vários estratos geológicos misturados, sem ser por ordem cronológica. O meu trabalho, ao longo destas décadas, tem passado pelo domínio da técnica, por ganhar a capacidade de ter uma forma e passá-la a bronze, agora há acoplagens de elementos. É como se, de repente, a expressão pudesse ser mais leve, nesta maneira de fazer, misturando diferentes materiais.

Mas, enquanto escultor, as operações são muito diferentes: trabalhar a pedra é uma coisa, outra é lidar com presenças que são já forma, por assim dizer.
Mas o assunto não tem a ver com a pedra. Quando comecei, os meus assuntos tinham a ver com escala, com proporção, com capacidade de modelação, capacidade de pegar num bloco, escavar, tirar aquilo que não me interessava. Agora ficou mais complexo. Porque não se trata só de trabalhar as relações internas de um bloco de pedra, trata-se também de saber se agarro numa pedra e a ponho contra a parede, se a deito no chão, se a ligo a uma peça de ferro que aponta para um espelho, uma peça de ferro e um espelho que nem sequer estão ligados um ao outro, mas separados no espaço, com uma ligação de métrica, mas não física, a não ser através de um reflexo que vejo em determinada posição. Portanto, é como se os jogos espaciais fossem transbordando e fossem crescendo as possibilidades. Como se eu cada vez fosse misturando mais. E posso misturar uma fotografia com madeira, e papel com pedra, e espelho e vidro e bronze, e todos ao mesmo tempo, e aproveitar a arquitectura da sala de exposições para fazer uma peça e ela ser remontada de forma completamente diferente noutro local. Isto implica uma maior flexibilidade e uma maior abertura de espectro, digamos assim.

Há uma grande peça em bronze na exposição.
Trata-se de transpor escalas. Como é que se pega num desenhinho e se transpõe para uma escala que é monumental? Como é que se faz para manter a frescura, a leveza e a espontaneidade de um desenho? Acho que é o que se passa nessa peça. É um bronze de três metros de comprido e, no entanto, levei uma hora e meia a fazê-lo. Não pensei muito. E não voltei a olhar para ela.

Acredita na bondade da espontaneidade do gesto? Não desconfia dela?
Claro que acredito. Nós [os artistas] estamos sempre ir ao sítio da inocência. O que nós [artistas] estamos sempre a tentar é recuperar a nossa inocência, estragada por uma série de coisas que formatam e fecham.

Mas não é a inocência do desconhecimento, a inocência de uma criança, por exemplo. Que inocência é essa?
É fazer as coisas sem ter julgamento sobre elas. É não ter medo do ridículo. É pores-te num sítio fora do julgamento, que é onde os artistas deviam estar sempre.

Ser ridículo pode abrir muitas portas. Ser politicamente correcto fecha de certeza muitas, congela.
É um trabalho duríssimo de conquista.

Sente o peso dessa batalha?
Todos os dias. Não tenho nada como garantido ou seguro.

Nada?
Nada. Todos os dias tens de sentir que avanças mais qualquer coisa do que no dia anterior e nunca sabes se vais melhorar ou piorar o que começaste, mas como só sabes quando fizeres...

É como na frase do Churchill: “Se estás a atravessar o Inferno, continua a andar.”
Completamente. E há uma questão sobre a qual o Amador Vega escreve que é: sem destruição não há criação. Primeiro tens de destruir para depois teres a possibilidade de criar. “A possibilidade.” Não tens nada garantido. Mesmo assim, primeiro tem de haver morte para que haja as sementes que talvez floresçam e tragam uma nova Primavera. É preciso passar por este processo. O Amador Vega fala nisto a propósito de Cristo, das chagas e da lança como sendo objectos desse projecto de criação e de passagem pelos infernos. Sem a lança a trespassar o corpo e a fazer chaga não é possível a criação. Também não é possível a criação se tiveres o que quer que seja como garantido. É preciso pores-te à prova, pores-te em causa. E tens apenas pontos que vão sinalizando o percurso, luzes aqui e ali.

É esse processo de morte rumo à possibilidade de uma nova vida que espelham as chapas de gravura rasuradas e refeitas?                                 Claro. E estou a destruir com o mesmo gosto com que as construí. É como se houvesse umas alturas em que tens de desenhar com lápis e outras em que tens de desenhar com borracha. Quando desenhas com borracha, aquilo que apagas já deixou de estar, ficam só uns restinhos. Isto também porque o assunto arte não é só fazermos coisas lindas. Não somos iconoclastas. Não é na forma que reside o assunto. Usamos as formas para falar de outras coisas.

Essa imagem de desenhar com borracha pode referir-se também a uma luta contra maneiras de fazer, contra a história de uma disciplina. Na escultura contemporânea, por exemplo, coloca-se sempre a questão do monumento, de ir contra o monumento. É uma questão relevante para si, a do monumento?
É, porque é um assunto presente há muitos milhares de anos. Não decidi ser escultor por acaso. Foi a profissão que me apaixonou. Não foi outra coisa — foi mesmo a escultura, que tem uma tradição, que é também muito incompreensível.

Incompreensível?
Sim, incompreensível. Tens um objecto tridimensional igual a outro, também tridimensional, só que a um chamas escultura e ao outro não. [risos]. É bom trabalhar numa área que achamos incompreensível, mas da qual não desistimos. É como estar à frente de um muro. Sei que o muro não me vai trazer nenhuma revelação, mas não saio dali.

Um Muro das Lamentações?
Sendo que na relação com o Muro das Lamentações há a fé. Acredito que se lá puser a minha oração dobrada obterei a salvação. Aqui [em arte], não tenho nada essa certeza.

Cada nova escultura não é essa oração dobrada?
Perguntas bem. Cada uma daquelas orações dobradas e metidas entre as pedras do Muro das Lamentações é como uma comunicação com Deus, que as vai receber. O crente acredita que vai ser salvo. Eu, é mais o não poder deixar de fazer. É outra coisa.

Estava a pensar na História da Arte como o Muro e em cada obra como uma oração, uma tentativa de diálogo com a tradição.
Ah! Isso é com certeza. Absolutamente. Porquê a necessidade de fazer escultura e não sair deste campo tão fechado, tão arcaico? Na realidade, é um trabalho de resistência. A arte é uma coisa difícil, incómoda, que não serve para nada. Mas é o sítio onde podemos afirmar que certos assuntos não são descartáveis.

Porquê um “campo fechado”? Ao longo do século XX a escultura não sofreu um imenso processo de abertura?
Não é que não tenha milhões de possibilidades. Mas os assuntos que trata não permitem grandes distracções nem desvios. Há muitas coisas associadas ao mundo da escultura que, de repente, tornam o que poderia ser uma peça forte e contundente numa peça derivativa. Por exemplo, o Paul McCarthy, que teve agora esta polémica na Place Vendôme. Há ali um choque, em Paris, por [aquela peça] ser um objecto sexual. Chocou pelo lado mais puritano e conservador e não pelo verdadeiro motivo, que é não ser uma escultura, apenas um equívoco. [Escultura] pode ser um papel amarrotado, pode ser o cubo do Cildo Meireles ou uma peça do Richard Serra. Há milhões de possibilidades. Digo “fechado” porque todos [os escultores] tratam exactamente do mesmo assunto. A diferença nos 50 metros de uma peça do Serra [em relação ao Cildo Meireles] é só uma questão de escala. São sempre exactamente os mesmos temas.

Quais são os temas da escultura?
Se pudesse falar não era preciso fazer escultura. E esse é o lado mágico, que me faz não abdicar de estar à frente deste muro tão incompreensível e fascinante. Como aquele paralelipípedo que aparece no [filme] 2001: Odisseia no Espaço [de Stanley Kubrick], aquele objecto fascinante e incompreensível.

Falávamos há pouco de tradição. Quando pensa em tradição em escultura pensa em quê?
Penso tanto no Rodin, como na escultura egípcia, como nas fotografias da Helena Almeida, no seu uso do corpo, na relação do corpo com o espaço, a ausência.

E o Minimalismo?
É outra conversa. O Minimalismo interessa-me na mesma medida que a escultura — por o achar incompreensível, fascinante e mágico. É uma coisa que não tem “expressão”. O mais próximo que posso encontrar da escultura minimalista é um objecto autodescritivo, no sentido em que se enuncia no seu próprio volume e aí se esgota. O que é falso! [As esculturas minimalistas] são inexpressivas, porém, queimam. Mas no Minimalismo é tudo feito por máquinas. Não há pecado possível. O pecado do defeito não existe. As minhas esculturas estão cheias de pecado.

Pecado? É uma palavra cheia de carga.
Para o Minimalismo, qualquer defeito, qualquer ângulo ligeiramente desviado, baixava imediatamente um objecto do sublime, da grande obra de arte, para objecto menor, a ser destruído. Eu, é no erro que me entendo e que gosto de viver.

É no erro que vivem os homens.
Exactamente. E é aí que eu quero viver. Interessa-me que os meus trabalhos partam de um objecto defeituoso sobre o qual opero. E, no fim, preciso de sentir que podia não ter parado ali, que esse trabalho ainda é passível de nova intervenção. Isto deixa sempre uma porta aberta. Só quando eu tiver a sensação de que um trabalho não está acabado é que o dou por completo. Porque, assim, posso lá voltar, para continuá-lo. Ou as pessoas podem pôr lá essa continuação, podem pôr a história delas dentro da minha. 
 


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