Sangue, suor e lágrimas

Christopher Nolan continua a acreditar no cinema como uma experiência em sala e, com Dunkirk, faz um filme “fora de tempo” que envergonha quase toda a concorrência hollywoodiana

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Há qualquer coisa de epidérmico na polarização que Christopher Nolan gera hoje em dia, caso raro no cinema oriundo dos grandes estúdios americanos. Ora rendição incondicional a um (evidente) talento de cineasta e ambição de autor, ora irritação pela precisão calculada ao fotograma de um formalista paciente que parece apenas dispor peças num tabuleiro com vista a criar um efeito. Mas nenhuma das posições inviabiliza que Dunkirk confirme Nolan como um caso singular no cinema que se faz hoje – um “autor” que procura o meio-termo entre o erudito e o popular, que acredita que é possível conciliar o grande espectáculo com a reflexão cerebral.

Mais do que qualquer dos seus filmes anteriores, e na linhagem directa do espantoso Interstellar (2014), Dunkirk é uma aposta no filme como pura experiência comunitária, sensorial, audiovisual, usando as forças do cinema para criar um envolvimento imersivo que não precise de “truques” externos. O diálogo que existe é puramente funcional, a montagem paralela de três tempos narrativos diferentes é quase intuitiva no modo como torna tudo legível ao espectador, numa lógica que (como Luís Miguel Oliveira correctamente apontou nestas páginas) vem de Griffith e dos tempos (demasiado esquecidos) do mudo. Recusando a bengala do 3D mas aproveitando sagazmente as potencialidades dos écrãs gigantes, Dunkirk prolonga uma ideia de cinema-espectáculo-de-prestígio que existiu nos anos 1950 e 1960, usando o IMAX como um equivalente contemporâneo do 70mm (e o filme é uma carta de amor à película e aos 70mm). Está mais perto de David Lean (lembrámo-nos sobretudo do demasiado esquecido Sangue, Suor e Lágrimas de 1942) que de Stanley Kubrick (e o crítico Mark Cousins falava no Twitter de Akira Kurosawa). E, por onde o quisermos ver, é um filme “fora do tempo” em que foi feito, que retorna ao passado (e ao passado do cinema) para aí (re)descobrir o essencial do que significa contar uma história em imagens.

É verdade que Nolan não inventa nada em Dunkirk, mas dispõe os elementos com tanta desenvoltura e precisão que não precisa de inventar, basta saber o que está a fazer. É também verdade que Dunkirk não é um filme perfeito, sobretudo por uma opção de fundo que está longe de, aos nossos olhos, ser inteiramente conseguida: não há silêncio nem pausas sonoras, a música de Hans Zimmer está permanentemente presente. Sim, a presença da banda-sonora é importante na construção da tensão. Mas há momentos (como nas extraordinárias cenas de aviação ou na viagem do barquinho do Sr. Dawson) onde a sua presença se torna supérflua, patuda, como se quisesse sublinhar aquilo que não precisa de ser sublinhada, minimizando a força das imagens de Nolan e do seu director de fotografia Hoyte van Hoytema. Dunkirk não é apenas uma atracção de feira, e é pena que a inteligência demonstrada na sua construção deixe aqui e ali os “fios” à vista. Mas, goste-se ou não, há que tirar o chapéu a um realizador que não quer apenas fazer mais do mesmo, cuja reconciliação entre a cabeça e o coração faz pensar no Metropolis de Lang e que chega, aqui, muito mais próximo da ideia do cinema puro do que muito autor autista celebrado pelos festivais.

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