Samar Yazbek: “Só um narrador fictício pode contar a Síria real”

Queria escrever romances, mas a guerra obrigou-a a outro género literário. Após o exílio, fez três viagens ao seu país para redigir um testemunho cuja leitura é essencial para compreender o conflito sírio: A Travessia- Viagem ao Coração Estilhaçado da Síria

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FOTO: Gregório Cunha

Samar Yazbek queria escrever romances, mas a guerra obrigou-a a outro género literário. Após o exílio, fez três viagens ao seu país para redigir um testemunho cuja leitura é essencial para compreender o conflito sírio. A Travessia- Viagem ao Coração Estilhaçado da Síria foi editado em Portugal pela Nova Delphi, e apresentado do Festival Literário da Madeira. O Ípsilon falou com a autora no Funchal.

O que acontece à verdade quando contada por um narrador fictício? Talvez sobreviva, diz Samar. Talvez isso represente mesmo a sua única possibilidade de sobrevivência. Pelo menos quando a realidade, de tão inaceitável, passa os limites do cognoscível. Pelo menos num lugar como a Síria.

Samar Yazbek sempre quis ser romancista. “Cosmopolita, intelectual, escritora”, era assim que se imaginava no futuro, quando, muito jovem, lia Virginia Woolf e participava, com os estudantes de Raqqa e Latakia, em acções de protesto contra o regime de Bashar Al-Assad. O seu sonho, que agora se transformou em pesadelo, era viver no estrangeiro.

Em 2011, envolveu-se nas manifestações pacíficas da “primavera síria”, que cedo degeneraram em confrontos violentos com as forças do regime. Assad não se conformou com um destino igual ao dos ditadores do Egipto e da Líbia, e reprimiu os protestos de forma sangrenta, iniciando uma guerra civil que dura até hoje, com um balanço de cerca 250 mil mortos e mais de 4 milhões de desalojados e exilados. Samar foi obrigada a fugir do país.

Nasceu na pequena cidade costeira de Jableh, em 1970, o ano em que Hafez al-Assad, o pai de Bashar, tomou o poder em Damasco. “Sempre vivi em ditadura”, diz ao Ípsilon. “Num país dominado pela corrupção e a injustiça, o desemprego e a pobreza, onde os cidadãos se sentiam inseguros no seu próprio país”.

Uns mais que os outros, é certo. A minoria alauíta, a que pertence o presidente e a sua clique, vivia no privilégio. Estava sempre em vantagem em relação à maioria sunita, em benesses económicas, ou de poder e prestígio. “A estratégia de Assad em relação aos pobres alauítas era dar-lhes emprego nos serviços de segurança”, explica Samar. “As famílias alauítas ricas controlavam quase tudo no país. Mas também havia uma burguesia sunita, que estabeleceu uma espécie de aliança com o regime. Dessa forma, o povo era mantido dominado”.

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FOTO: Gregório Cunha

Quando rebentou a revolução, elementos sunitas e alauítas (que pertencem ao ramo xiita do Islão) estavam unidos no mesmo objectivo, de derrubar o regime, diz Samar. “A Síria é muito diferente do Egipto, Tunísia ou Líbia, quer pela sua situação geográfica, quer pela diversidade religiosa e cultural. Há muitos grupos - alauítas, sunitas, cristãos, curdos, etc. E não vou dizer que não havia problemas entre eles, mas eram solucionáveis. Agudizaram-se por acção do próprio regime, que incentivou o ódio religioso, para fortalecer o poder”.

Com o avançar da guerra, o conflito tornou-se essencialmente religioso. “No início, a revolução era pacífica. Lutava-se por um estado democrático e livre. Foram ultrapassadas as diferenças religiosas, sairam todos para protestar. Mas a reacção do regime foi bárbara. Prenderam, torturaram, mataram. Isso obrigou os revoltosos a pegarem também em armas, tornando-se violentos e radicais”.

Numa passagem do livro, um jovem guerrilheiro explica a sua mudança de atitude: “Não tinha intenções de matar ninguém quando me alistei no batalhão. Sempre que entrávamos numa batalha, assegurava-me de que não apontava as nossas armas para uma parte letal do corpo. Todos concordámos em apontar as armas aos pés, mas depois as coisas mudaram. Sabe… Eles bombardearam-nos, prenderam-nos e mataram os nossos meninos, e as coisas ficaram fora de controlo. Eles eram brutais e nós deixámos de nos preocupar para onde apontávamos as nossas balas”.

Noutros momentos do livro, percebe-se também o processo de transformação de um combatente pela liberdade num jihadista. E a forma como, na lógica do combate, se constrói a imagem do inimigo, que para a maioria dos grupos guerrilheiros é identificável com os alauítas.

“Os democratas e os combatentes do Exército Livre da Síria pediram ajuda à Europa e aos EUA em recursos e armas. Porque estavam praticamente desarmados, numa colossal desproporção de meios com as forças do regime. Como a ajuda e o apoio não chegaram, muitos combatentes foram-se aliando aos grupos jihadistas, como a Frente Al-Nusra (ligada à Al Qaeda) e o Estado Islâmico, grupos que estavam bem armados, e tinham possibilidade de conquistar territórios aos exércitos de Assad. Foi assim que a revolução nos foi roubada”, disse Samar.

Para ela, é clara a responsabilidade dos governos ocidentais na deriva jihadista, fundamentalista e terrorista do conflito, ao não terem concedido apoio suficiente aos grupos moderados. “Tiveram uma oportunidade única, quando Assad usou comprovadamente armas biológicas contra as populações, de julgá-lo como criminoso de guerra”.

Mas se há fenómeno que está analisado e desmontado de forma surpreendente e desconcertante no livro de Samar Yazbek é o da artificialidade da construção do ódio aos alauítas.

A autora, que, nas viagens que fez para o livro, atravessou zonas controladas pelos jihadistas e acompanhou guerrilheiros radicais sunitas, é ela própria originária de uma família alauíta. Por razões de acesso e segurança, quase sempre ocultava este facto, mas algumas das ocasiões em que o revelou deram origem a momentos narrativos eloquentes. Como este, à despedida de um encontro, marcado por uma grande empatia e intensidade emocional, com uma brigada de jovens jihadistas:

“- Mas diga ao mundo, minha senhora, que estamos a morrer sozinhos e que os alauitas nos mataram, e que há-de vir o dia em que eles serão mortos. Vamos retribuir-lhes o mal por igual, a eles e aos xiitas infiéis, a eles e às prostitutas das mulheres deles.

- Vá lá, homem - disse Abu Khaled [o guia]. Esse tipo de conversa é muito ofensivo

- Não, não é - respondeu o tipo bruscamente.

Olhei-o fixamente.

- Que Deus proteja todos os jovens, e que vos recompense - disse eu.

- Ámen, minha senhora - retorquiram eles. Que Deus a proteja. Juramos que foi um prazer tê-la aqui. Devia ficar e quebrar o jejum connosco

- Abençoado iftar - disse eu, e em seguida inclinei a cabeça para me dirigir para o carro. Voltei para olhá-los. Uma bala voou sobre as nossas cabeças.

- A minha família é alauíta - disse rápida e espontaneamente. Entrei no carro e dois deles correram atrás de mim e enfiaram a cabeça na janela aberta do carro.

- Por favor, não se ofenda, minha senhora. Juro que não era para si! Juro que não odiamos todos os alauítas. Temos por si e pela sua família todo o respeito.

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FOTO: Gregório Cunha

Eu fiquei calada como uma estátua, ouvindo o bater do meu coração e o som das balas.

- Não se chateie. Juro que eles não estavam a falar a sério - disse Abu Khaled.

- Não estou chateada- respondi calmamente.

Mas a torrente de desculpas nunca mais parava. Anas, o jovem de 25 anos, inclinou-se para dentro do carro, os olhos a reluzirem de lágrimas.

- Juro, minha senhora, que nós a protegeríamos com as nossas almas. É uma filha deste país.”

Depois de ter saído da Síria, para se refugiar em Paris, Samar Yazbek resolveu voltar, em Agosto de 2012, para escrever uma série de reportagens para jornais europeus, e trabalhar com mulheres sírias nas “zonas libertadas”, ajudando-as a criar projectos profissionais que lhes garantissem a subsistência. Planeava regressar a Paris para escrever um romance, mas no final dessa primeira “travessia” percebeu subitamente que tinha de escrever um livro de não-ficção sobre o seu país.

“No tempo que vivi em França constatei que os media ocidentais só estavam a contar uma parte da história. A partir de certo momento, concentraram-se na guerra dos jihadistas e do Estado Islâmico, esquecendo a luta dos sírios contra a ditadura, e as condições reais em que as populações viviam. Senti que tinha de ser eu a dar esse testemunho”.

Regressou mais duas vezes ao país, percorrendo várias regiões, entrevistando os protagonistas da guerra, mas principalmente relatando o dia-a-dia das pessoas sob os bombardeamentos, o medo, a morte, o desespero e as rotas da fuga.

“Escrevi este livro com alma de romancista, não de jornalista. É um género de literatura que associa reportagem, testemunho, interpretação, narrativa. É destituído de ideologia, mas pretende dar voz aos que a não têm. Pessoas simples e humilhadas, de que ninguém realmente quer saber, que vivem abandonadas. Esta é uma visão completamente diferente da dos jornalistas. Posso falar da vida, do amor, do futuro”.

Sente-se, nas páginas de A Travessia, a especificidade da visão da escritora, mas também da mulher. Sem nada em comum com as habituais narrativas femininas sobre o mundo islâmico e os seus conflitos, num género literário muito popular, em que a mulher surge no papel de vítima, de escravidão, abusos, violações.

A escrita feminina de Samar Yazbek é definida, por ela, como “um discurso de coração quente e cabeça fria”. A perspectiva das mulheres numa guerra (na qual geralmente não participam activamente) é forçosamente diferente da dos homens. Por falar com elas e por as compreender, porque é uma delas, Samar está atenta a outras camadas da realidade, mais próximas do privado, do íntimo, do sentido mais profundo da existência, e da perda desse sentido.

“Este livro apela às várias identidades que tenho em mim”, disse Samar com os olhos a encherem-se de lágrimas. “Estas pessoas de que conto as histórias fazem parte de mim. Ao contrário da ideia que temos de que o exercício da literatura é uma forma de aliviar a dor, para mim a escrita aprofunda a dor”.

São um método de investigação e um estilo literário que tocam o paradoxal, só possíveis sob a regra de uma certa esquizofrenia narrativa.

“Tudo o que relato é real”, diz Samar. “A única personagem fictícia é o narrador, eu: uma figura implausível capaz de atravessar a fronteira no meio de toda a destruição, como se a minha vida fosse o enredo de um romance. Só um narrador fictício pode contar a Síria real. Só colocar-me como autora, e não como pessoa real, cidadã síria, ajudou a suportar a dor. Ao absorver o que acontecia à minha volta, deixei de ser eu própria. Era uma personagem imaginária, com um papel a desempenhar, em representação de algo externo e superior - a justiça, a vergonha, a sanidade”.

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