Rodrigo Leão & Scott Matthew encontram beleza na melancolia

Um vive em Nova Iorque e o outro em Lisboa, mas foi através do e-mail que a voz de Scott e a música de Rodrigo se encontraram em Life Is Long, álbum de canções pop orquestrais que, dizem eles, tem tanto de lamento quanto de esperança.

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FOTO: Michael Mann

Rodrigo Leão tomou contacto com a música de Scott Matthew através do filme Shortbus (2006) de John Cameron Mitchell, para o qual o australiano – a residir em Nova Iorque – contribuía com cinco temas. “Mais tarde o meu irmão haveria de me dar um disco dele”, lembra. Muitos anos antes, tinha Scott Matthew 16 anos, e residia num lugar ermo da Austrália, chegou-lhe às mãos uma cassete contendo uma canção, O pastor, pertencente ao álbum Existir (1992) dos Madredeus, que o acompanharia muito tempo.

“Essa canção marcou-me”, diz-nos ele, agora com 45 anos, “e ouvia-a durante meses e meses.” Na altura não fazia ideia que um dos músicos dos Madredeus era Rodrigo Leão, de quem uns anos depois iria receber um e-mail com um convite para uma colaboração. “É engraçado pensar nisso tudo”, ri-se ele. “Vivia no campo, não tinha acesso a muita música e por alguma razão aquela compilação em cassete veio parar-me às mãos e lá dentro estava aquela canção pela qual me enamorei. Essa foi a minha introdução à música do Rodrigo sem o saber. Quando ele me contactou não fiz de imediato a ligação mas depois de alguns minutos no Google percebi quem era e fiquei de boca aberta.”

Anos depois, no Outono de 2016, em Lisboa, Rodrigo e Scott riem-se à nossa frente das contingências da existência, na altura em que acabam de lançar um álbum conjunto, Life Is Long. É uma obra de canções pop orquestrais, marcadas pelos arranjos sumptuosos, por climas nostálgicos e por letras românticas, interpretadas à beira da desesperação por uma voz penetrante.

Às vezes parece ser a voz que impõe dramatismo, enquanto os quadros sonoros pintados a pastel transmitem algum alento. Outras vezes é ao contrário, a voz é mais enlevada e é o som que tinge tudo à sua volta com tonalidades mais sombrias. “A vulnerabilidade não me assusta e ambos temos uma queda para a melancolia, mas é uma melancolia que não fica encerrada sobre si própria, acabando por respirar também esperança”, resume Scott.  

Para trás têm um percurso já longo na música. Rodrigo, para além do seu trabalho solitário, fez parte de várias formações com história (Sétima Legião, Madredeus, Os Poetas) e já andou pela pop, pelo minimalismo, pela música contemporânea, pela aventura electrónica A Vida Secreta das Máquinas, pelas bandas-sonoras para filmes ou pela clássica. Por sua vez Scott foi membro de várias bandas (dos Nicotine aos Elva Snow) antes de se lançar a solo, tendo editado desde 2008 três álbuns de originais. Um deles, curiosamente, chama-se There Is An Ocean That Divides (2009).  

Mas não foi o oceano que os dividiu. Na verdade o álbum agora lançado foi em grande parte feito com recurso ao e-mail. Foi há cinco anos, quando estava a preparar a feitura do álbum Montanha Mágica (2011), que Rodrigo se lembrou da voz de Scott. Nada de espantar. Ao longo dos anos tem feito predominantemente música instrumental, mas em quase todos os seus discos existem canções, recorrendo a convidados vocais.

“Para uma dessas canções imaginei de imediato a voz de Scott”, lembra, “e enviei-lhe um email com sons de sintetizadores e guitarras desafiando-o a colaborar comigo.” A voz de Scott é grave, profunda, vivida, não sendo a primeira vez que Rodrigo opta por esse tipo de timbre (Beth Gibbons, Neil Hannon, Stuart Staples ou Melingo são outros exemplos). Existirá um padrão?

“Não creio”, reflecte, “embora me pareça que esse tipo de vozes combina bem com a minha música. Ao longo dos anos tenho trabalhado com vozes diferentes, estou a lembrar-me do Nuno Guerreiro por exemplo, embora a minha preferência vá realmente para vozes graves como a de David Sylvian ou David Bowie.”  

Do lado de Scott não existiu nenhuma estranheza quando foi submetido à música de Rodrigo. “Gostei muito da peça musical que ele me enviou por e-mail e acabou por ser muito natural a nossa colaboração até porque em termos de ambiente não era algo que estivesse muito longe daquilo com o qual estou habituado a conviver.” E foi assim que, durante uma digressão europeia, acabou por registar a sua voz em Berlim, mesmo a tempo de poder entrar no alinhamento final do álbum de Rodrigo.

Seis meses depois surgiu o convite para participar em alguns concertos em Espanha e Portugal e no ano seguinte, em 2012, outra solicitação para mais uma colaboração. E foi aí que, pela primeira vez, se começou a desenhar a hipótese de um álbum conjunto. Já não se recordam quem foi o primeiro a lançar a ideia para cima da mesa, mas falam de um processo muito orgânico.

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Aos 16 anos, Scott Matthew ouviu uma cassete com O pastor dos Madredeus, que o acompanharia muito tempo. Não podia fazer ideia que um dos músicos era Rodrigo Leão, de quem uns anos depois iria receber um convite para uma colaboração FOTO: Michael Mann

“Parece-me que foi depois de um concerto onde também participaram o Neil Hannon e a Beth Gibbons que, entre amigos, se falou disso e, depois, durante ano e meio fomos trocando alguns e-mails e acabámos por criar estas canções”, diz Rodrigo como se fosse a coisa mais natural do mundo, provocando sorrisos em Scott. A música é de Rodrigo, as letras, voz e melodias são de Scott. O universo foi desenhado instintivamente pelos dois.

Em relação a outras criações da sua autoria, Rodrigo diz que não existiram muitas diferenças. “O processo é sempre muito semelhante, faço peças instrumentais, tento encontrar algumas melodias ou algo que possa funcionar com os arranjos. A diferença é que desta vez tinha uma voz em mente.” Do lado de Scott a orgânica do projecto também é enaltecida.  “A música para mim é quase sempre um acto solitário, é algo de muito pessoal, pelo que me senti confortável com o mecanismo. Claro que quando lhe enviava as vozes nem sempre estava seguro, esperava que ele gostasse, mas acabou por resultar. Foi como se tivéssemos mantido uma relação à distância com música pelo meio”, ri-se.

Claro que nessa troca de e-mails e nos contactos ocasionais que foram tendo tiveram oportunidade de se conhecer melhor. Perceberam que havia referências musicais semelhantes do passado (Smiths, Cure, Clash), ou do presente, perceptíveis quando discutem os últimos álbuns de Nick Cave, dos Radiohead, ou de pianistas como Nils Frahm, mas também ambientes primordiais que estão sempre presentes na música de ambos.

“A melancolia está sempre presente no nosso trabalho”, resume Rodrigo. “É verdade, não sei muito bem porque vou sempre para aí, mas acontece. A minha mãe é que se vira para mim e diz com desespero: filho, por favor, escreve de vez em quando uma canção feliz!”, diz Scott, rindo-se com prazer.  “Encontro algum tipo de conforto ou de beleza na melancolia e é assim desde a infância. Posso analisar isso, mas limito-me a aceitá-lo. A minha infância foi muito isolada na Austrália, talvez tenha mesmo a ver com isso.”

Para ele a tarefa de um escritor de canções consiste em expressar os seus sentimentos e dessa forma tentar entrar em contacto com as emoções de quem ouve. “Todas as canções têm inevitavelmente qualquer coisa de autobiográfico, mas a minha história não é a história dessas canções. Tudo parte de mim – é a minha forma de ser honesto – mas depois transforma-se e espero que tenha ressonância nas histórias de muitas outras pessoas.”

Curiosamente quando os desafiamos a pensar no que os une para lá da música concordam de imediato que é o humor que os aproxima. “Temos um sentido de humor muito semelhante”, ri-se Scott, “é um pouco irónico dizê-lo, mas adoramos rir e definitivamente não habitamos num lugar triste o tempo todo.”

“O humor, o vinho, a comida, o estarmos bem entre amigos, é isso que partilhamos”, acrescenta Rodrigo, recordando que Scott é alguém que toca os outros do ponto de vista humano. “Toda a gente gosta dele”, conclui.  “Mas estava muito nervoso quando vim a Portugal pela primeira vez”, retribui Scott. “Não sabia o que esperar. Não fazia ideia se os admiradores dele, que são muito leais, me iriam aceitar. Mas acabou por acontecer. E sim, depois, conhecer a sua família e amigos, e a história e a arquitectura do país, fez-me sentir bem-vindo. E isso é fundamental para alguém como eu que precisa de se sentir confortável a fazer música.”

Agora têm um álbum em mãos. Não fazem a mais pequena ideia se voltarão a gravar mais algum. Não fazem planos. Querem desfrutar do momento. Depois dos concertos de promoção se verá o que poderá seguir-se. “Ao longo dos anos estive envolvido em inúmeros projectos, mas é o primeiro álbum que faço com um cantor como ele e nesse sentido é um objecto singular no meu percurso”, reflecte Rodrigo. “Não tínhamos grandes expectativas quando começamos e gosto que continue assim”, pondera Scott. “Nunca fui muito consciente dessa coisa da carreira. Sei apenas que esta está a ser uma gratificante experiência e isso basta-me.”

Os ensaios para os concertos já começaram. Em Novembro tocarão em Portugal e Espanha e em Março em vários países europeus. Serão sete músicos em palco e a voz de Scott. E estão os dois confiantes. “Nunca parei de tocar canções pop de estrutura clássica por isso não vai ser diferente de outras experiências”, diz Rodrigo. “Sim, para mim, também não será muito distinto de outros projectos onde participei”, diz Scott.

A diferença é que o universo do Rodrigo é mais amplo do que o seu, ao nível da forma como trabalha os arranjos, por exemplo. “Há nestas canções mais orquestrações do que estou habituado, o que me agrada, mas traz-me novos desafio também”, diz Scott com ar preocupado, para de seguida relativizar o que acabara de pronunciar. “Mas no fim de contas, como sempre, trata-se de tentar encontrar beleza na melancolia, sendo o mais honesto que se consegue com a música, e aí estamos os dois confortáveis.”

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