Retrospectiva ortográfica

Rapidamente se percebe a inexistência de semelhanças entre a motivação para promover um acordo ortográfico e os resultados obtidos com o AO90.

1. Há alguns dias, prestes a instalar-me defronte de uma porta de embarque do aeroporto de Lisboa, entrei num quiosque, com o único intuito de comprar o PÚBLICO. Contudo, antes de adquirir o jornal, dei por mim a percorrer com o olhar os escaparates do estabelecimento, sendo atraído por uma das publicações expostas e sentindo uma familiaridade grafémica com o título escolhido para o topo da capa de uma revista brasileira — familiaridade que não sinto, por exemplo, quando leio (de lápis em riste), por razões profissionais, textos putativamente redigidos em português europeu que, de facto, estão afectados pela adopção do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90). O título em apreço? “Retrospectiva 2015”. Peguei na revista Veja e no PÚBLICO e trouxe-os para Bruxelas.

Exactamente como acontece com ‘aspecto’, ‘concepção’, ‘confecção’, ‘excepcional’, ‘facção’, ‘infeccioso’, ‘percepção’, ‘perspectiva’, ‘recepção’, ‘respectivo’ ou ‘ruptura’, ‘retrospectiva’ pertence àquele apreciável conjunto de palavras que se mantêm indemnes na ortografia do português do Brasil, mas cuja utilização deixou de ser admitida na ortografia portuguesa europeia, quer pelo AO90, quer por instrumentos auxiliares para a sua aplicação — quando chego à entrada ‘retrospectiva’, um dos dicionários portugueses consultados, em vez de me dar acesso directo ao significado, dá-me uma descompostura: “a nova grafia é retrospetiva [sic]”.

Para quem desconsidera as abundantes diferenças ortográficas criadas pelo AO90, recordo as palavras proferidas por Lindley Cintra, em 1981 – e que tive a oportunidade de salientar, na Academia das Ciências de Lisboa, em Novembro do ano passado –, relativas a um problema a ser resolvido por um acordo ortográfico: “No estado presente, seja qual for a solução adoptada, o aluno inevitavelmente vai encontrar-se perante textos portugueses em que as mesmas palavras aparecem escritas de duas formas diversas, com as naturais confusões e possível desorientação”. Rapidamente se percebe a inexistência de semelhanças entre a motivação para promover um acordo ortográfico e os resultados obtidos com o AO90.

Felizmente, em órgãos de comunicação social de língua portuguesa, a palavra ‘retrospectiva’ pode ser outrossim encontrada, por exemplo, na agência de notícias de Angola (“o destaque da retrospectiva noticiosa de 2015”, Angop, 3/1/2016) ou em jornais portugueses de referência, como o PÚBLICO. Nos últimos dias, quer a propósito do falecimento de Pierre Boulez, quer acerca da Direcção-Geral do Património Cultural, podia ler-se, respectivamente, “projectava a apresentação de uma retrospectiva da obra do compositor francês na Casa da Música” (PÚBLICO, 7/1/2016, p. 7) e “exposição mais vista de sempre em Portugal com a sua retrospectiva no Palácio da Ajuda” (PÚBLICO, 6/1/2016, p. 27).

De igual modo, na última página do tal PÚBLICO adquirido no aeroporto de Lisboa, lia-se: “a retrospectiva habitual” (PÚBLICO, 4/1/2016, p. 48). No entanto, depois desta última ‘retrospectiva’, encontrei ‘diretiva’ (sic). Em princípio, poderia estar perante um texto de um escrevente de português do Brasil, cuja norma admite ‘retrospectiva’ e ‘diretiva’. Contudo, o texto do PÚBLICO em apreço é de um autor português que, além de adoptar o AO90, tem-no amiúde defendido, decidindo igualmente rebaptizar a sua coluna neste jornal com um espirituoso “Consoante Muda”.

Ao escrever ‘retrospectiva’ em vez de ‘retrospetiva’, Rui Tavares, além de ser quem afinal acaba por cumprir a “summa [sic] missão de salvar as consoantes mudas que resistem” (PÚBLICO, 6/2/2012), confirma, de forma peremptória, a interiorização, comum a qualquer escrevente de português europeu, da função grafémica (neste caso, diacrítica) da letra consonântica ‘c’ de ‘retrospectiva’ e o factor de perturbação que a sua supressão constitui. Trata-se de circunstância muito semelhante à de ocorrências como *‘deflacção’ ou *‘ilacção’ (em vez de ‘deflação’ e ‘ilação’), ilustrativas da estranheza sentida por escreventes de português europeu em relação a formas ortográficas excepcionais e da vincada percepção existente sobre a função da letra 'c' nas palavras terminadas em –acção. A diferença relativamente a ‘retrospectiva’ é que *‘deflacção’ e *‘ilacção’ correspondem, de facto, a formas ortograficamente incorrectas.

A esta ocorrência de ‘retrospectiva’, em texto escrito ao abrigo do AO90, também não é possível aplicar o aforismo “Eu digo aquele ‘c’ em espectador e aquele ‘p’ em conceptual? Se sim, escrevo-o. Se não, omito-o”, de Rui Tavares (PÚBLICO, 27/10/2010, p. 40), por dois motivos: 1) ao contrário daquilo que acontece com o ‘c’ de ‘espectador’ e o ‘p’ de ‘conceptual’, em português europeu actual, não é nem admissível, nem aceitável qualquer prolação [k] que reflicta o ‘c’ de ‘retrospectiva’; 2) mesmo que tais admissibilidade ou aceitabilidade houvesse, Rui Tavares não pronuncia (pelo menos, de forma sistemática) o ‘c’ de ‘retrospectiva’: isto é perceptível, por exemplo, durante um debate em Estrasburgo, em Março de 2014: “eu gostaria de, neste curtíssimo minuto, fazer alguma retrospectiva [em que ‘c’ = [Ø]] do que foi este mandato”.

2. Por razões familiares, há cerca de onze anos, passei a estar atento às notícias do trânsito com menção a conceitos como “2.ª Circular”, “Eixo Norte-Sul” ou “IC19” — antigamente, a minha atenção centrava-se exclusivamente no núcleo “Arrábida/Freixo”, “Freixo/Arrábida, “nó de Francos”, etc. Por esse motivo, decidi embrenhar-me no projecto de intervenção da 2.ª Circular que a Câmara Municipal de Lisboa “colocou em consulta pública”. Recomendo cautela. Além de pérolas como ‘características’ e ‘caraterísticas’ (sic) na mesma frase, ‘carácter’ e ‘caráter’ (sic) no mesmo parágrafo ou “Arquitetura [sic] Paisagista (NPK, arquitectos paisagistas associados)”, encontramos “esquema das adoções [sic] de água ao separador”, quando aquilo que se pretende de facto referir é o “fornecimento de água do ponto de captação para o local onde é feita a distribuição”, isto é, ‘adução’, ou seja, ‘aduções’.

Apesar de o próprio texto do AO90, na base V, copiar a base IX de 1945 e admitir que o emprego do “do o e do u, em sílaba átona” é regulado “fundamentalmente pela etimologia e por particularidades da história das palavras”, na redacção da base IV, esse factor não foi considerado, eliminando-se letras com importante valor grafémico. Aquilo que verificamos é que um escrevente de português europeu grafou ‘adoções’ (sic) em vez de ‘aduções’, cometendo um erro ortográfico, mas identificando correctamente aquela letra ‘o’, em posição átona, como equivalente a ‘u’. Neste padrão, em português europeu, o diacrítico ‘p’ impede tal percepção. Isto é, ‘adoções’ corresponde a um dois-em-um: erro ortográfico (por ‘aduções’) e erro grafémico criado pelo AO90 (por ‘adopções’).

3. Por falar em adopções, o Diário da República anda há quatro anos a tentar adoptar o AO90, com abundância de grafias exclusivas do homólogo brasileiro (o Diário Oficial da União), como ‘fato’ e ‘contato’. Trata-se de facto que não constitui novidade: denunciei-o no PÚBLICO (“Contra fatos: os argumentos”, 13/11/2012, p. 47) e em documento enviado à Assembleia da República (cf. L. M. Queirós, “Adversários do Acordo Ortográfico querem referendo”, PÚBLICO, 20/4/2015, pp. 26-7). Apesar disso, o espectáculo continua, com o primeiro número de 2016 do Diário da República a trazer-nos “valorização dos fatos constantes nos números precedentes” e “registo contabilístico dos fatos patrimoniais”.

A opaca e inadequada redacção da base IV do AO90, o rotundo fracasso das acções de formação e a impreparação de agentes políticos difusores da convicção de ‘fato’ ser a nova grafia de ‘facto’ reflectem-se, não só na perpétua profusão de ‘fatos’ e ‘contatos’, mas também noutros factos insólitos: em 6/1/2016, a Câmara Municipal de Ovar viu-se obrigada a apresentar uma declaração de rectificação de edital publicado no Diário da República de 7/12/2015, no qual se grafara ‘contatar’, em vez de ‘contactar’.

Em 21/3/2013, o ILTEC garantia-nos que o AO90 “já foi quase plenamente aplicado, como o Estado determinou, sem problemas de maior”. Efectivamente, sem problemas de maior. Tendo o actual primeiro-ministro admitido recentemente que não toma “a iniciativa de desfazer o acordo ortográfico”, então, tomemo-la nós.

Autor de Demanda, Deriva, Desastre - os três dês do Acordo Ortográfico (Textiverso, 2009)

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