Reconhecimento: Portugueses músicos, música de Portugal

O maestro Alan Buribayev imprimiu à Orquestra Sinfónica Portuguesa, com precisão e sem precipitação, uma energia e uma unidade absolutamente arrebatadoras, que o público reconheceu com largos aplausos finais.

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Alan Buribayev Simonvan Boxtel

O título atribuído ao último programa da Orquestra Sinfónica Portuguesa, Reconhecimento, bem se pode aplicar a vários eventos ocorridos nas últimas semanas, a começar pelos Dias da Música (que se tornou, por várias razões, uma montra da qualidade atingida pelos músicos portugueses) e a terminar na participação de Salvador Sobral na Eurovisão (onde este fez a defesa da individualidade da arte musical face aos seus sucedâneos, industrialmente formatados para um agrado massificado e fugaz).

Refira-se ainda, num registo menos mediático, o arranque do ciclo de concertos comemorativos dos 40 anos do Instituto Gregoriano de Lisboa, que decorrerá até início de Junho (inaugurado por um recital marcado pela maturidade artística, no qual o barítono Armando Possante, acompanhado ao piano por Luísa Gama Santos, nos presenteou a integral do ciclo Viagem de Inverno, de Schubert, numa interpretação a todos os títulos excelente).

No concerto da Orquestra Sinfónica Portuguesa aqui em apreço, o solista em destaque foi o jovem (e multipremiado) clarinetista Horácio Ferreira, que nos deu a ouvir, com calorosa aprovação do público, o famoso Concerto para clarinete em Lá maior, de Mozart, com expectável perfeição técnica e invejável sensibilidade estética, traduzida em particular na subtileza dos ataques e em dinâmicas buriladas ao pormenor. A iniciar o mesmo concerto, realizado poucos dias depois do 87.º aniversário da compositora Clotilde Rosa, tivemos a estreia absoluta da sua peça Paisagem interior, escrita entre 1999 e 2000.

Que um criador com a longa e rica trajectória de Clotilde Rosa tenha tido que esperar 17 anos para estrear um obra para orquestra, para mais encomendada pela Secretaria de Estado da Cultura, é afinal um sintoma de que o reconhecimento dos músicos e da música portuguesa ainda peca por defeito e que as instituições tuteladas pelo Estado, nomeadamente as orquestras, dão insuficiente visibilidade na sua programação aos autores contemporâneos.

A obra é, de resto, de primeira água, reiterando quer o pendor dramático da autora, quer o seu gosto pela complexidade textural e instabilidade atonal, com vórtices harmónicos ocasionais. Paisagem interior é, no entanto, surpreendente e extremamente variada, com secções diferenciadas em justaposição ou sobreposição, profusas em contrastes tímbricos e expressivos, um caleidoscópio colorido que evoca por vezes a escrita aventurosa de Charles Ives; a frescura desta géstica musical, radicada na evocação biográfica (que explicará porventura a centralidade da harpa e da flauta), faz-nos esquecer que no momento da sua escrita a compositora se acercava dos 70 anos. O espírito não tem idade...

Tal como o concerto de Mozart, a peça de Clotilde Rosa foi muito bem servida pela direcção seguríssima de Alan Buribayev, oriundo do Cazaquistão, cujas qualidades se evidenciaram ainda mais na poderosa interpretação da Sinfonia n.º 6 de Tchaikovski, a Patética. Espantosa e vibrante partitura, famosa tanto pelo retorno do sombrio motivo da fatalidade, como pelo uso de um tempo quinário no segundo andamento, apresenta enormes desafios interpretativos, dada a larga paleta de ambientes expressivos, ritmos e combinações sonoras inusitadas; o maestro imprimiu, contudo, à orquestra, com precisão e sem precipitação, uma energia e uma unidade absolutamente arrebatadoras, que o público reconheceu com largos aplausos finais.  

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