"A Tempestade" é uma espécie de exorcista teatral

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Próspero (Cintra), o protagonista, é um mago que controla as outras personagens Paulo Cintra

A peça que é considerada a última e uma antologia das obras de Skakespeare, "A Tempestade", também é uma espécie de balanço dos 35 anos do Teatro da Cornucópia. Estreou ontem dando continuidade ao ciclo "A Caverna do Mágico"

Não há a certeza de que "A Tempestade", escrita em 1611, seja a última peça de William Skakespeare (1564-1616), mas o que é certo entre as pessoas que já a estudaram é que o texto é uma síntese das obras anteriores do dramaturgo inglês. E é neste sentido que se pode entender esta antologia como um "reflexo" do Teatro da Cornucópia, em Lisboa. Esta peça que está em cena desde ontem funciona como uma metáfora dos 35 anos da companhia. É uma espécie de "exorcismo teatral", onde o actor pode ser actor e não simplesmente uma personagem.

A peça faz parte do ciclo "A Caverna do Mágico", iniciado em Novembro com "Gigantes da Montanha", de Luigi Pirandello (encenada por Christine Laurent). As duas peças têm muitas semelhanças entre elas: são consideradas as últimas peças que fazem uma síntese das obras dos respectivos autores, tratam do teatro dentro do teatro, falam de magia e têm como personagem principal um mago. Em ambas, Cintra interpreta o papel de mago, aquele que no teatro dentro do teatro comanda os actores. Daí surge a auto-reflexão.

A proposta do ciclo "foi fazer uma espécie de balanço". Mas à medida que o encenador se familiarizou com o texto percebeu que as peças não são só sobre o teatro. "O teatro dentro do teatro serve como artifício para falar de temas gerais", diz.

Em "A Tempestade" fazem-se referências aos espectáculos anteriores da companhia. No cenário, trabalhado por Cristina Reis, são usados elementos de vários espectáculos da companhia, sobretudo dos outros seis espectáculos a partir de Shakespeare que já produziram. "A maneira como estou vestido, e o lugar em que estou no início do espectáculo, é igual ao que tinha quando iniciava 'Público' de Federico García Lorca, uma peça que também tem um encenador de teatro ou mágico - que no fundo é a mesma coisa - em cena."

Talvez uma das coisas que se pode ler nas entrelinhas do espectáculo é a ideia de se "livrar do teatro". "Ao fim de tantos anos de fazermos teatro e chegarmos aos 60 anos como chegarei este ano, uma pessoa tem a sensação de que uma grande parte da vida escapa à nossa vida de teatro. A ideia do fim da vida torna-se mais importante do que eu julgava."

Próspero (Cintra), o protagonista, é um mago que controla as outras personagens, "como se estivesse a manipular peças de um xadrez". Isto, porque tem em seu poder um "espírito do ar", o Ariel (Dinis Gomes), que pode metamorfosear-se e que só pode ser visto por Próspero. Ariel é quem provoca o naufrágio do barco, onde estão os inimigos e traidores políticos de Próspero, e é assim que estes são levados à sua ilha.

Próspero é aquele que se mantém longe do centro da acção, mas ao dar ordens a Ariel para que provoque o naufrágio ou que junte pessoas num local determina a acção de forma mágica. E é por isso que para Cintra quando, no fim da peça, Próspero liberta Ariel ele consegue livrar-se do teatro para lidar com as coisas mais fundamentais do pensamento: o que pensar dos outros, como se relacionar com os outros, a relação da arte com a vida. "A relação de Próspero com Ariel está associada aos artifícios do teatro" e ao deixar Ariel ir embora Próspero abandona os "truques".

Próspero versus Caliban

Existe muita especulação em relação à personagem principal de "A Tempestade". Será Próspero, o mago, ou Caliban (Nuno Lopes), um selvagem que é escravizado por Próspero depois de violar Miranda (Sofia Marques), sua filha?

Luis Miguel Cintra não conhece outra personagem com um protagonismo absoluto como Próspero. "Um protagonista que é dividido em dois", porque Ariel pode ser visto como um duplo de Próspero. Mas acha que "o grande papel da peça para um actor é o de Caliban, que permite ser forte, violento". O problema fundamental é a forma que se dá ao Caliban, que tem tido diversas representações ao longo dos anos. "Há alguns que lhe dão a forma de bicho ou um índio do Brasil e há outros que colocam um actor negro a representá-lo." Isto porque há quem defenda que Shakespeare criou Caliban em referência ao colonialismo. "Caliban é considerado diferente das outras personagens. Acho que Skakespeare não limitaria esta personagem" só à questão colonialista.

O poeta britânico W.H Auden, estudioso das obras de Shakespeare, disse que, em "A Tempestade", o dramaturgo, mais do que uma peça de teatro, conseguiu escrever um mito. O encenador não sabe o sentido deste mito, mas explica que a história de "A Tempestade" é construída de uma forma que pode ser "vestida" com uma diversidade de assuntos que têm a ver com a nossa civilização. E diz que talvez tenha falhado na encenação de "A Tempestade" por ter dado uma representação limitada ao mito criado por Shakespeare. "Quando eu digo que, se calhar, falhei, é porque tenho demasiada consciência que ao dar forma a um mito o limitamos a um determinado sentido. A maneira de vestir um mito deveria ser a mais simples possível. Peter Brook diz que a única maneira de fazer um mito é com pura fantasia. Acho que ele tem razão, mas não sou capaz de fazer isso. E isto não é a sensação de que falhei, mas de que não sou capaz."

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