Questões de atitude

A crítica enquanto experiência fundamental de autonomia é o ponto de partida de todos os contributos reunidos neste importante volume.

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Judith Butler desenvolve uma ideia da crítica como exercício do direito à dissensão MIGUEL MANSO

A questão da crítica — em todas as suas declinações: o suposto desaparecimento, a crise, dissolução, etc. — tem conhecido um importante debate que a fez extravasar o domínio estrito da filosofia e transformar-se numa questão cujo domínio disciplinar é impossível de estabelecer. Na realidade uma das suas primeiras dificuldades relaciona-se com a inexistência de uma disciplina crítica no sentido mais estrito, ou seja, a crítica diz respeito às artes, à filosofia, à política, ao quotidiano. Este desenraizamento disciplinar — a que não corresponde um desnorte — é a sua coroa de espinhos e a sua coroa de glória: de espinhos porque impede a total autonomia da crítica enquanto domínio próprio, e de glória porque lhe possibilita poder navegar — conforme as circunstâncias, objectos e propósitos — entre diferentes metodologias e, assim, estar em permanente transformação.

Este volume com contribuições de Rudolph Gasché, Judith Butler, Márcio Seligmann-Silva, Andreas Arendt, Denis Thouard, Christian Berner, Diogo Sardinha e João Pedro Cachopo não tenta dar uma resposta unificadora aos problemas da crítica, mas parte da inquietação presente na pergunta: que experiência é possível ter da própria crítica? (p.45) Tendo esta pergunta em mente podemos entender que todas as contribuições dão a ver, sobretudo, o esforço de desenvolver a constatação de que quando se olha para o conceito de crítica não se é confrontado com um conceito ou método unívoco, mas com uma longa narrativa. A qual revela a topografia incerta da crítica que é, como afirma Bruno Duarte, organizador e editor deste volume, espelho da substância desigual e incerta de que é feita (p.40). Descobrindo-se não um método, sistema ou doutrina, mas, seguindo a proposta de Schlegel, uma faculdade dispersiva.

Uma faculdade descrita na introdução do volume como acto de separar, distinguir, diferenciar, dividir, decompor. Esse acto não nasce com o seu objecto, mas está sedento dele, e sabe que só o pode encontrar no momento em que se vê confrontado com ele. É por isso que qualquer um, em qualquer lugar, acredita ser ou poder ser um sujeito crítico — e aí se esconde também a razão pela qual ninguém sonharia sequer declarar-se ignorante quanto ao que possa ser a crítica. Todos a conhecem, todos a praticam a partir do momento que um dado objecto lhes é dado, e todos sabem que só nesse momento se podem lançar sobre esse mesmo objecto, para o nobrecer ou para o estilhaçar. (pp.30-31)

É neste sentido que na crítica jaz dissimulada a crise, porque se trata de uma disciplina — mesmo abusando desta fixação provisória de limites — sem coesão, destituída de um paradigma unificador quer em termos disciplinares, como em termos de metodologia e dos objectos a que se dedica.

Por isso, a proposta é entender a crítica como experiência de reflexão e enquanto juízo, ou seja, criticar é julgar mas ao contrário do pensamento corrente, e pouco rigoroso, este julgar não diz respeito ao estabelecimento de um pensamento hierárquico sobre o mundo, nem tão-pouco à sua condenação, mas, como sugere Hannah Arendt, é a forma do pensamento chegar ao mundo, de se fazer mundo, de chegar a ele. Trata-se de um entendimento herdeiro da viragem provocada por Kant em que a crítica, entendida enquanto missão filosófica, se dedica à reflexão sobre o pensamento, seus limites e objectos.

Certo é que, como quer que a entendamos, a crítica é sempre crítica de alguma coisa, distinta dela própria: para poder existir, faz-se refém de um objecto, mostra-se pronta a ocupar o seu lugar — e é este que a determina e ela mostra não poder viver sem ele. Esta dependência deve ser entendida não enquanto menorização da sua actividade, mas uma forma de assinalar a sua ambição em nunca perder de vista os objectos — constituídos enquanto problemas — que a provocam e desenvolvem. E é neste contexto mais geral que todas as contribuições deste livro se apresentam objectos variados, ou seja, tendo em conta um âmbito disciplinar genérico, e desenvolvem uma atenção comum à crítica não enquanto um corpo de conhecimentos mas como uma proposta de actividade reflexiva permanente.

As contribuições começam com uma reflexão acerca da relação originária da crítica com a hermenêutica e o pensamento do iluminismo e, sobretudo, a identificação  dos anos de 1800 como marco de uma viragem a que Andreas Arndt chama uma viragem romântica ou transcendental. Trata-se de um momento fundamental porque o desenvolvimento subsequente da crítica é feito em diálogo, prolongamento ou em confronto com a herança desta viragem. Se aqui se dá conta da relação disciplinar entre crítica, filologia, hermenêutica, teorias da interpretação, entre outras, no segundo momento, à mão de Judith Butler, segue-se na direcção de uma prática de liberdade e possibilidade de dissensão. Esta é uma contribuição essencial porque liberta a crítica da sua estrita génese filosófica mostrando-a enquanto prática política que, a lembrar a 3ª crítica de Kant, tem no livre exercício da razão o objecto da sua ambição. Para Butler a crítica longe de designar uma prática cingida e estabelecida por um qualquer domínio disciplinar e seus métodos é apresentada através da liberdade da razão: a crítica tem lugar sempre e em qualquer sítio em que ocorra um livre exercício da razão.

Neste texto Butler, em diálogo com Derrida e Foucault, desenvolve uma ideia da crítica como exercício do direito à dissensão: e é-o relativamente não só aos sistemas ideológicos, políticos e culturais, mas também contra a imposição de modelos de racionalidade e às obrigações impostas por diferentes formas de autoridade. E é neste sentido que o exercício da crítica se constitui como, escreve Butler, nova possibilidade para o desenvolvimento do sujeito, ou para aquilo a que ele [refere-se a Foucault] chama a criação de uma nova subjectividade e, mais à frente, afirma que a crítica, enquanto prática de dissensão, pode implicar uma alteração quer no sujeito, quer do sujeito, e pode provocar e reformular historicamente modos específicos de racionalidade. (p.115)

Torna-se necessário esclarecer que estas operações de transformação do sujeito, do pensamento e da governabilidade não resultam da instauração de uma nova ordem, lei ou sistema, mas, precisamente, a crítica é entendida como prática ou exercício individual: operação do sujeito sobre si mesmo, sobre a sua percepção e visão do mundo traduzidos na liberdade em consentir ou em retirar o seu consentimento. Portanto, a crítica não é a aplicação de um conjunto de leis (estéticas, culturais, políticas, ideológicas, filosóficas, etc.) mas um exercício de liberdade subjectiva e individual.

É muito interessante que no final deste importante conjunto de ensaios o leitor se veja confrontado com uma tentativa de apresentar a crítica como sendo fundamentalmente uma atitude ou, como escreve Foucault, a crítica como questão de atitude. E é esta atitude, e as suas transformações em teoria da literatura, estética, filosofia da arte, teoria política, etc. que todos estes textos tentam acompanhar e caracterizar.

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